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Volta a Catolé

publicado: 10/04/2024 09h20, última modificação: 10/04/2024 09h20
Chico César e Escurinho fazem show juntos na cidade sertaneja amanhã para a Casa do Béradêro
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Escurinho e Chico César se conheceram em Catolé do Rocha em 1973 e viveram uma infância de jogar bola na rua e tomar banho no Rio Agon | Foto: Natália de Lorenzo/ divulgação

por Esmejoano Lincol*

Na canção “Béradêro”, incluída em seu primeiro disco, Aos Vivos, o cantor paraibano Chico César entoa esses fortes e enigmáticos versos: “Catolé do Rocha/Praça de guerra/Catolé do Rocha/Onde o homem-bode berra”. E é justamente para a terra do “homem-bode” que Chico e o músico Escurinho, seu amigo de longa data, retornam amanhã, num show beneficente, a partir das 21h. A atração terá como palco a quadra do Colégio Francisca Mendes, em Catolé do Rocha, e os ingressos estão disponíveis no site Sympla, a partir de R$ 20.

Os artistas serão acompanhados pela Camerata Gente que Encanta, com músicos egressos do Instituto Cultural Casa do Béradêro, ONG fundada há 23 anos por Chico e por sua primeira professora de música, a irmã Iracy de Almeida, na cidade natal do artista. O show celebra os 85 anos do Colégio Francisca Mendes e terá sua renda revertida em prol do instituto, que utiliza a metodologia de ensino criada por Iracy. No número de abertura, se apresenta a banda O Pantim.

A expressão estilizada “béradêro” é uma gíria que define habitantes de periferias ou moradores do interior, mas também pode ser utilizada de forma pejorativa, no sentido de pessoa inculta ou rude. Não é por acaso que esta palavra esteja no título de sua canção e no nome de sua ONG. “Eu próprio sou um beradeiro, da zona rural do Sertão paraibano, do Sítio Rancho do Povo, de Catolé do Rocha. É um jeito de ser, não é ser menos ou mais do que qualquer um. É uma pessoa que percebe o mundo a partir dessa perspectiva, de se estar ‘na beira’. Por isso quis que a minha música e a instituição criada por mim e pela irmã Iracy se chamasse assim, um lugar para acolher pessoas que vivem à margem, ‘na beira’”, explica Chico.

Chico, que este ano completou 60 anos, se mudou de Catolé para a capital em 1980, para terminar o Ensino Médio no antigo Colégio Tambiá e posteriormente fazer vestibular. “A minha mudança para João Pessoa foi pra estudar e pra ficar mais perto da cena cultural. Foi uma decisão da minha mãe, ela achou que Catolé tinha ficado muito pequena para mim. Aqui, mantive contato com o pessoal do Teatro Piollin, liderado por Luiz Carlos Vasconcelos, e com outros paraibanos que já tocavam por lá, como Tadeu Mathias, Ivan Santos e Pedro Osmar”, rememora o cantor.

Sobre seu encontro com Escurinho, Chico diz que na infânica o amigo jogava bola muito bem e que foi assim – como ídolo dos campinhos de Catolé do Rocha – que ele passou a conhecer e a admirar o colega de profissão antes de começarem a tocar juntos. “Mesmo criança, ele já era muito consciente da questão racial. Se percebia negro, mantendo uma atitude mais radical. Alguns anos depois, fizemos parte de um grupo de teatro montado por Edison Dias Fernandes (ator), o Chão Pó Poeira. Apresentávamos uma leitura dramática do livro Morte e Vida Severina nas escolas e feiras de Catolé e de municípios circunvizinhos”, conta Chico. 

Quando o coletivo de teatro se desfez, eles e outros amigos da cidade fundaram o grupo musical Ferradura, com o qual ele fez sua primeira visita a João Pessoa, vindo tocar no palco do Teatro Piollin, aos 15 anos. Tempos depois, já instalado em João Pessoa, Chico foi apresentado por Edilson aos irmãos Pedro Osmar e Paulo Ró, membros da banda Jaguaribe Carne, de onde foi músico. “Eles rapidamente ‘me adotaram’, mesmo sendo bem mais novo que eles. Acho que eles gostaram do meu jeito de ‘menino do Sertão’. E por isso eu ainda me sinto parte do Jaguaribe”, considera Chico. Ainda na capital, Chico, os irmãos Pedro e Paulo e mais uma dezena de músicos paraibanos estiveram à frente do Musiclube, coletivo que movimentou a cena local e ajudou a constituir uma série de políticas públicas culturais nos anos seguintes.

De Serra Talhada para Catolé

Nascido Jonas Epifânio, Escurinho é natural de Serra Talhada, em Pernambuco. Mudou-se para a Paraíba ainda criança, acompanhando o pai, Seu Manoel Jonas, que veio trabalhar na subestação da Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (Chesf) na Paraíba; inicialmente a família de instalou na cidade de Piancó, mudando-se logo para Catolé. “Conheci Chico em 1973. Acho que tivemos uma infância maravilhosa mergulhando do Rio Agon e passeando pelas ruas da nossa antiga cidade”, relembra com saudades.

Pouco tempo depois que os dois amigos estavam em João Pessoa e Escurinho permanecia estabelecido no grupo Ferradura, onde tocava percussão e fazia vocais, Chico se mudou para São Paulo, onde trabalhou como jornalista e posteriormente se profissionalizou como músico, “estourando” nacionalmente na década de 1990. Sobre ter permanecido na Paraíba e ter continuado a trabalhar por aqui, Escurinho diz que durante esse tempo ele esteve em vários lugares, incluindo o Sudeste, mas que devido à sua forte ligação com a família, seu espírito nômade acaba sempre querendo buscar aconchego na terra natal. “Nunca tive o sonho de morar definitivamente em São Paulo. Eu sempre achei que poderia firmar uma ponte para ficar indo e voltando, viajando apenas para tocar”, detalha Escurinho.

Sobre as idas a Catolé, o percussionista de 61 anos conta que visita a cidade menos do que gostaria, mas recorda que sua última estadia foi há dois anos, em um compromisso profissional, com seu Trio de Forró Escurinho. No repertório do show dessa volta, o músico esclarece que ele está dividindo entre as canções de Chico César e outras escolhidas por ele; a banda de apoio conta ainda com o guitarrista Júnior Spinola. “Cantaremos no show ‘Cadê as Flores?’, música que é a minha parceria mais recente com Chico. Também acompanharei a Camerata na percussão. Todos os arranjos foram produzidos pelo professor Alexandre Rocha”, informa Escurinho.

A Casa dos ‘Béradêros’

O Instituto Cultural Casa do Béradêro foi fundado em 2001 e é mantido através de doações. Hoje são atendidos 62 alunos, entre crianças, adolescentes e jovens de baixa renda, matriculados em atividades diárias oferecidas pelo instituto, como os cursos de música, de luthieria (criação e manutenção de instrumentos de corda), e de capoeira. Em um projeto itinerante do Instituto, até  o mês de agosto de 2024 mais de 200 crianças de quatro escolas públicas municipais de Catolé serão atendidas em ações de sensibilização musical dentro das próprias instituições, através de concertos didáticos programados. A Camerata – nome que se dá a um pequeno grupo que executa música de concerto, orquestrada – está composta por dez músicos, entre alunos e professores da Casa.  

Segundo Aline Fernandes, gestora de Projetos Sociais do Instituto, apesar de os conteúdos programáticos terem um tempo para ser ministrados, a casa continua aberta para que  seus alunos continuem a praticar a execução e o conserto de instrumentos, mesmo após a conclusão das oficinas. “A cidade de Catolé do Rocha é uma cidade pequena, com apenas 30 mil habitantes, mas que possui três luthiers, formados pelo instituto. É fascinante pensar que a Béradêro possa provocar tantas mudanças no cenário da cultura local” relata a gestora.

Alguns dos músicos formados pela casa foram posteriormente contratados pelo Programa de Inclusão Através da Música e das Artes (Prima), do Governo do Estado, repassando o conhecimento adquirido para outros jovens instrumentistas. “O instituto gera impacto social em várias esferas e não apenas nos jovens que atendemos, mas também em suas famílias e na economia local. Temos jovens que não tinham perspectivas profissionais antes de conhecerem os nossos trabalhos e que depois de formados em nossos cursos prestaram vestibular para Música em universidades daqui e foram aprovados”, celebra Aline.

Através do link, acesse a campanha de doações da casa.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 10 de abril de 2024.