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Voz da cultura nordestina restituída

publicado: 03/07/2023 09h30, última modificação: 03/07/2023 09h30
Em agosto, selo editorial do Rio de Janeiro lança uma coletânea com seis textos de importantes peças teatrais de Lourdes Ramalho
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Lourdes Ramalho (1920-2019) tratou de temas políticos e comportamentais, utilizando expressões muito regionais, numa linguagem oral característica dos anos 1970 - Foto: Arquivo A União
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Obra traz os textos dos espetáculos ‘A feira’, ‘A eleição’, ‘As velhas’, ‘Festa do Rosário’, ‘Fogo-Fátuo’ e ‘Guiomar – Sem rir, sem chorar’ - Imagem: Besouros Abstêmios/Divulgação
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Lourdes Ramalho - peças reunidas Imagem Besouros Abstêmios.png

por Guilherme Cabral*

Um apanhado de importantes peças emblemáticas que levam a assinatura de Maria de Lourdes Nunes Ramalho está sendo reunido em coletânea com a qual o selo editorial Besouros Abstêmios, sediado no Rio de Janeiro, está marcando sua estreia no mercado nacional. Em Lourdes Ramalho – Peças reunidas (426 páginas, R$ 67), o leitor encontrará os textos dos espetáculos A feira, A eleição, As velhas, Festa do Rosário, Fogo-Fátuo e Guiomar – Sem rir, sem chorar. A edição se encontra disponível em pré-venda no site da editora (www.besourosabstemios.org.br), cuja previsão de entrega é a partir o dia 3 de agosto.

A coletânea contendo os textos das peças de Lourdes Ramalho é uma das cinco obras que a Besouros Abstêmios pretende lançar até o final deste ano. “O nosso selo editorial não tem fins lucrativos e foi criado pela Associação de Escritores Literatura Livre, a qual surgiu inspirada por um paraibano, o cineasta André da Costa Pinto, com quem nos encontramos na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em novembro do ano passado, no Rio de Janeiro, quando sugeriu que, a exemplo de outras categorias, os escritores poderiam se organizar e se estruturar numa entidade”, explicou o presidente da associação, o escritor fluminense Leonardo Valente. “André da Costa Pinto também serviu de ponte para publicarmos Lourdes Ramalho, projeto que sugeri ao conselho editorial, formado por oito autores. Quando foi aprovado, passei a cuidar da edição da coletânea. Ela foi escolhida para ser a primeira publicação do selo porque é uma das mais importantes escritoras e dramaturgas brasileiras, mas ainda desconhecida do grande público”, disse ele.

A escritora e dramaturga potiguar, radicada na Paraíba, morreu na cidade de Campina Grande, em 2019, aos 99 anos de idade. “Lourdes Ramalho fez sucesso na Europa, mas, no Brasil, ela tem sido vítima de apagamento, porque ela enfrentou a ditadura militar, ao abordar em suas peças, principalmente nos anos 1970, temas como misoginia, racismo e meio ambiente. Ela foi vítima até do etarismo, porque começou a escrever suas peças na faixa dos 50 anos de idade, mas desafiou a ditadura e a sociedade. Ela fez sucesso na Europa, para onde foi levada por sua peça mais famosa, que é As Velhas, encenada na Espanha e em Portugal pelo diretor espanhol Mocho Rodriguez”, observou Valente.

O editor do livro explicou que a seleção das peças para a edição levou em consideração alguns critérios, a exemplo dos seis textos estarem entre os mais famosos e premiados da dramaturga e pela importância e qualidade da obra. “Na preparação do livro, encontramos pouco material digitalizado de Lourdes Ramalho e, por isso, tivemos que digitalizar mais materiais. “A nossa proposta, com essa coletânea, é restituir a voz de Lourdes Ramalho no cenário cultural brasileiro. É uma escritora brilhante, que tratou de temas políticos e comportamentais e utilizou expressões muito regionais, numa linguagem oral característica dos anos 1970, e que é de difícil compreensão, mesmo para quem vive atualmente no Nordeste. Ela era conhecedora da língua portuguesa e dominava a linguagem oral do povo, reproduzindo-a com maestria. Isso é uma das grandes marcas da sua obra, além das temáticas. Por isso, o livro tem notas explicativas e, no final, um capítulo para apresentar aos leitores quem é Lourdes Ramalho, que rompeu barreiras, deixou um enorme legado, que deve ser amplamente reconhecida pelas novas gerações e ocupar, merecidamente, o seu lugar. Isso é fundamental”, ressaltou ele.

O selo editorial Besouros Abstêmios também planeja para o fim do ano uma chamada de originais para publicação em 2024, destinará pelo menos 15% das tiragens de todos os seus títulos para projetos sociais de inclusão pela leitura e para bibliotecas públicas e comunitárias, entre as quais comunidades do Rio de Janeiro, e para um projeto de leitura em um presídio feminino de Porto Alegre (RS), dentro do objetivo de estimular a produção literária no país e valorizar autores e suas obras para a formação de novos leitores.

Leonardo Valente admitiu estar ciente das dificuldades de ingressar no mercado. “Não é uma trabalho fácil, pois é de longo prazo, mas vamos atuar em via dupla, a inserção social e a comercial. Não temos receio. Não vamos ter sobras. Se algum livro não for vendido, o autor não deixará de ser lido, porque as obras irão para projetos sociais, onde terão muitos leitores”.

Valorização do regional

Na coletânea, o leitor terá contato com histórias protagonizadas por personagens fortes, inesquecíveis e que ganharam os palcos, a exemplo da sertaneja Filó, esmagada com sua família pela crueldade da cidade grande, representada pela Feira de Campina Grande, na peça A feira; a professora Guiomar, convocada por um juiz a dar explicações no tribunal sobre sua conduta moral e como suas crenças políticas em Guiomar – Sem rir, sem chorar, que são textos combinando o lúdico e a ironia a uma realidade dura e precisa não apenas do Nordeste, mas de todo o Brasil.

Escritora e editora que conheceu Lourdes Ramalho, a potiguar Ezilda Melo, que está radicada na Paraíba, considerou muito feliz a iniciativa do Besouros Abstêmios. “A grande preciosidade de Lourdes Ramalho é valorizar o que é nordestino, regional, o que a faz se aproximar de Ariano Suassuna, ambos porta-vozes da cultura eminentemente nordestina. Um ano depois que ela morreu, lancei o livro Escritoras Sertanejas em Verso e Prosa, no qual, entre 87 escritoras, pude considerar que ela foi a primeira escritora sertaneja a publicar”, afirmou a autora, que também é historiadora.

Ezilda também ressaltou as temáticas tratadas por Lourdes Ramalho em suas obras, que ainda permanecem atuais. “A peça Festa do Rosário aborda o preconceito racial e essa festa é muito emblemática em Santa Luzia e Caicó. Já A feira retrata atividades praticadas pela comunidade numa feira. Essa peça foi inspirada na Feira da Prata, em Campina Grande, e nas feiras do interior, que são os traços mais característicos de uma cultura. No interior não se vai a shopping, então, a feira é valorizada como o lugar de encontro e de efervescência, onde há música, cordel e as pessoas vão para comercializar produtos”.

“Lourdes Ramalho tinha uma forma muito pessoal de analisar os problemas de uma época. Na peça A eleição, alguns aspectos abordados são o apadrinhamento, as falcatruas, troca de votos, pão e circo, ou seja, temas ainda atuais. E As velhas trata de problemas ligados ao fato da aproximação do fim da vida, bem como as dificuldades trazidas com a velhice”, comentou Ezilda Melo.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 2 de julho de 2023.