Em 2001, o Brasil adotou a Lei no 10.216, que garantiu a reforma psiquiátrica e estabeleceu a humanização e a convivência familiar no tratamento dos doentes mentais. Nesses mais de 20 anos, toda a Rede de Saúde Mental passou por uma grande reformulação, incluindo, tratar o adoecimento mental sem tantos estigmas e preconceitos. Nesse mês, a campanha do Janeiro Branco tem o objetivo de alertar as pessoas sobre o autocuidado com a saúde mental.
Em entrevista ao Jornal A União, a médica psiquiatra Larissa Laíra, coordenadora clínica do Complexo Juliano Moreira, conversa sobre o diagnóstico e tratamento da saúde mental, como a vida moderna e as relações de trabalho estão adoecendo a população, e o impacto negativo do uso exagerado dos aparelhos celulares por crianças e adolescentes. A médica também comenta sobre os serviços do Complexo Juliano Moreira, que em 2023, realizou mais de 20 mil atendimentos e quais as ações previstas para a campanha do Janeiro Branco na Paraíba.
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Como funciona o processo de diagnóstico relativo à doença mental?
O diagnóstico da psiquiatria é muito diferente do que estamos acostumados a ver na medicina geral, que tem exames específicos. Na psiquiatria é um pouco diferente porque não existe um exame em que mostre, por exemplo, uma depressão. Não é algo palpável.
Os diagnósticos da psiquiatria são observados na anamnese, ou seja, no diálogo, na conversa, na consulta que é feita com o médico. Os exames são feitos para que se exclua condições clínicas e orgânicas. Antes de dizer, por exemplo, que um paciente tem esquizofrenia, eu preciso ter certeza que todas as outras condições da medicina clínica já foram descartadas, e os exames clínicos entram nesse rol, mas o diagnóstico é basicamente clínico.
Existe alguma diferença entre transtorno mental e doença mental?
Na psiquiatria, no geral, esses dois termos são usados como sinônimos. Porém, o que vemos na prática, é que a palavra “transtorno” carrega um peso muito grande. Falamos de doença mental, de diagnóstico, patologia mental. A própria psiquiatria já possui muito estigma.
Quando você vai para um endocrinologista e se já possui alguma condição clínica em que precise procurar um atendimento de urgência, ninguém vai falar em “paciente endocrinológico”, mas se você faz uso de qualquer remédio de saúde mental, vão chamar “paciente psiquiátrico”.
Seria o caso de abolir o uso dessa palavra ao se referir aos pacientes?
Eu não gosto, mas nos livros e grandes manuais ainda encontramos o termo “transtorno mental” sendo utilizado. Na prática, eu evito pelo peso que a palavra carrega historicamente. No final, é só uma questão de escolha de palavras porque não há diferença. É tudo um grande diagnóstico de doenças mentais.
Como a família, os amigos e as pessoas mais próximas podem auxiliar no tratamento e acompanhamento das pessoas com doenças mentais?
A presença da família é muito importante e isso a gente vê, inclusive, quando falamos de epidemiologia das doenças mentais. Por exemplo, um paciente com um quadro depressivo que tenha o suporte familiar, apresenta uma evolução muito melhor do que aquele que não possui uma rede de apoio, e essa rede vai além da família.
O que vemos muitas vezes é que a família não está pronta para lidar com aquele familiar que está passando por uma doença mental, então, é preciso fazer um trabalho de psico-educação com essa família. Se o paciente passou por um quadro de surto e precisou se internar em um hospital psiquiátrico, é importante saber que ele não vai ficar para sempre ali.
Hoje, pela Lei no 10.216, que é a lei que rege a reforma psiquiátrica, a internação deve ser o último recurso a ser utilizado, e pelo menor tempo possível. É preciso tirar da cabeça dos familiares aquela ideia que se tinha de que os pacientes iam ficar meses e anos internado. É todo um trabalho que precisa ser feito e que quando a família entende e participa tudo flui de uma forma muito melhor. A família tem um outro olhar, inclusive, ela consegue nos dizer de fato se o paciente está bem. Esse apoio é fundamental.
A senhora falou sobre algumas famílias que não estão prontas para lidar com esses pacientes. Seria o caso dos familiares também procurem um tratamento de saúde mental?
Costumo dizer que o cuidador também precisa de cuidado. Muitas vezes, lidar com um paciente com uma doença mental pode não ser tão fácil, e não pode romantizar e dizer que são mil maravilhas. O cuidar de um paciente com alguma doença mental pode ser desgastante, e é importante que os profissionais tenham essa interação com a família até para orientá-lo sobre o autocuidado. Sobre procurar uma terapia, um psicólogo, alguma prática integrativa que possa diminuir o estresse e que ele consiga ter uma rede de apoio saudável para cuidar daquele paciente, e não correr o risco de adoecer todo mundo daquela família.
A senhora também afirmou que o tempo de internação dos pacientes precisa ser o menor possível. Existem casos em que as pessoas precisem ficar internas? Como está a situação atualmente aqui na Paraíba e no Brasil?
Existem sim situações de pessoas que precisam ficar internas, mas não existem mais moradores de hospital, e isso é importante frisar. O último morador que tínhamos aqui no Complexo Juliano Moreira saiu antes da pandemia, em 2018, e foi o último paciente que passou pelo grupo de desinstitucionalização e, hoje, não temos mais pacientes moradores.
Mas, pacientes que estão em sofrimento mental, sem condições de estar em casa por oferecer risco a si ou a terceiros são pacientes que ficam internados baseado na Lei da Reforma Psiquiátrica: pelo menor tempo possível. Outro ponto é que essa internação só vai ocorrer depois que tudo já foi tentado antes: fez uso correto da medicação? Manteve a frequência adequada no Caps (Centros de Atenção Psicossocial)? Nada disso funcionou? Aí sim, vem a internação, até que esse paciente se estabilize e receba alta.
As instituições públicas estão aptas para receber e lidar com essa população?
Os Caps estão preparados a partir do momento que a equipe é composta por integrantes que são especializados para realizar esse trabalho. Psicólogo, psiquiatra, enfermeira, educador físico, terapeuta ocupacional, profissionais com formação para cuidar de pessoas com doença mental. O que pode acontecer é um aumento da demanda, como ocorreu na pandemia (da Covid-19). De modo geral, as equipes que atuam nos Caps possuem um preparo para isso. O que pode acontecer é uma quantidade aumentada de procura e, nesses casos, precisamos saber direcionar pacientes sobre qual o perfil necessário e fazer essa redistribuição.
Existe a possibilidade de um caso “leve” de saúde mental evoluir para um caso mais grave? Como fazer essa observação?
Geralmente, a doença mental vai acentuando e evoluindo até que esse paciente não aguente mais, procure ajuda ou tenha o quadro mais agravado, ou um surto. Na psiquiatria, é muito difícil você dizer “ele estava ótimo até ontem, foi do nada”. Quando acontece esse “do nada”, quase nunca tem a ver com a condição psiquiátrica. Condições como uma diabetes não controlada pode fazer com que você se desoriente, principalmente, em idosos. Quadros infecciosos, como pneumonia e infecção urinária, também em idosos, podem sofrer com essa mudança de comportamento, mesmo em pacientes que não tinham nenhum histórico prévio. No geral, o que vemos é que o comportamento vai mudando aos poucos, piorando, até que se chega ao ponto de procurar ajuda ou de precisar do atendimento de uma emergência.
Como a senhora citou, a Covid-19 foi um fator que desencadeou o adoecimento mental das pessoas. Já é possível mensurar o impacto do vírus na nossa saúde mental?
O ser humano é um ser social e precisa do contato. Muitas vezes vivemos no automático daquela rotina de acordar, tomar banho, sair para trabalhar, encontrar os amigos no final de semana e se divertir. Do nada você se vê numa situação em que isso não é mais possível e junto vem a insegurança da sua saúde, da saúde das pessoas que você convive e ama, a insegurança financeira, um vírus que ninguém sabia como tratar, a vacina que ainda estava em fase de desenvolvimento... foram muitas incertezas em um curto prazo de tempo.
Pessoas que já possuíam diagnósticos que se agravaram com a pandemia e outras que não tinham diagnósticos e que começaram a desenvolver alguma doença mental por conta do vírus. Vimos muito o aumento de casos de ansiedade, depressão, TOC (Transtorno Obsessivo-compulsivo), sobretudo, TOC de limpeza, porque precisávamos ter todo aquele cuidado.
Mas, houve um movimento inverso, de pessoas que começaram a cuidar melhor da alimentação, em fazer uma atividade física mesmo dentro de casa. Temos hoje pessoas mais antenadas em cuidar da própria saúde, da sua alimentação e de entender que a saúde mental também faz parte da saúde como um todo porque se pensa que saúde é só ausência de doença e tudo está relacionado.
Um dos pontos mencionados sobre o adoecimento mental causado pela Covid-19, foi a instabilidade financeira e econômica. De acordo com o Observatório de Segurança e Saúde do Trabalho, relativos a 2021, os transtornos mentais foram a terceira maior motivação para afastamento do trabalho no Brasil. Por que o trabalho está adoecendo as pessoas?
Acredito que o mundo moderno, e aí entra a questão do capitalismo e do mercado exige cada vez mais do trabalhador. Coloco nesse rol, as tecnologias: você sai do trabalho, mas leva o trabalho para casa, no telefone. Não nos desligamos mais do trabalho. Apesar de não estar no ambiente, você continua trabalhando, e vem aquela pressão de bater a meta, de ser o melhor. Então, você começa a cada vez mais entrar nesse ciclo, de ter que trabalhar para garantir o sustento da família e esquece de se cuidar. O trabalho acaba adoecendo quando você esquece de olhar pra você mesmo e pensar que precisa estar bem para desempenhar bem sua função. Outra coisa importante é estabelecer limites. Hoje, não se romantiza mais aquele estilo de funcionário que vive para o trabalho. As pessoas estão começando a entender que não dá para ser 100% trabalho e esquecer de cuidar de si.
O mundo moderno, a tecnologia, o capitalismo, essa demanda de sempre ter que bater meta, o medo e a instabilidade econômica, tudo isso acaba levando ao adoecimento.
No geral, as pessoas estão mais adoecidas?
O Brasil está mais adoecido. Se pegarmos dados estatísticos, o Brasil é o país mais ansioso do mundo e o com mais pessoas depressivas na América Latina. Os dados não mentem e estão aí para provar que de fato, algo precisa ser feito. A má alimentação, a pressão do trabalho, a instabilidade econômica, a falta de tempo para realizar uma atividade física ou ter momentos de lazer e descanso, sono irregular, podem ser os causadores desse adoecimento mental porque ele é multifatorial. Muitas vezes, pensamos que as doenças mentais são genéticas e hereditárias, mas esses lados precisam de um cuidado.
E no caso de crianças e adolescentes?
Existem estudos que comprovam que a exposição às telas influencia no sono e no humor de crianças e adolescentes. Costumo dizer que o aparelho celular se transformou na chupeta digital. A criança chora e dá trabalho? Coloca para assistir algo no YouTube que ela vai parar de chorar. Mas, onde está o diálogo da família para entender o que está acontecendo? Todo aquele ritmo de trabalho, muitas vezes faz com que não tenhamos tempo de qualidade com as nossas crianças e nossos adolescentes, e isso acaba refletindo de uma forma negativa na construção mental daquela criança.
Um pai e uma mãe cansados, que não têm tempo, e os filhos ficam nas redes sociais vendo um mundo que não mostra suas imperfeições. É uma ausência da figura materna e paterna. É uma visão de mundo perfeito que não existe, uma alteração do padrão de sono, não tem ninguém controlando quanto tempo aquela criança está consumindo todo tipo de conteúdo, e a soma disso é uma ansiedade, uma depressão e outras doenças mentais que vemos nesse grupo.
Esse mês celebramos o Janeiro Branco, dedicado ao cuidado da saúde mental. Como irá funcionar a campanha aqui na Paraíba?
É uma ação que já conta com 10 anos e que partiu da iniciativa de um grupo de psicólogos de Minas Gerais e desde o ano passado, começou a valer a Lei no 14.556/23 que regulamenta a campanha do Janeiro Branco. Basicamente, o principal objetivo é alertar as pessoas sobre o autocuidado com a saúde mental. A proposta é divulgar ainda mais esses serviços que oferecemos, sobretudo, o do ambulatório, que funciona por demanda espontânea.
Os pacientes do interior podem trazer documento com foto, cartão do SUS e comprovante de residência, e com esses três documentos, é só marcar no nosso ambulatório e passar por atendimento médico e multidisciplinar.
Qual a estrutura desse atendimento? Quais serviços o Complexo Psiquiátrico Juliano Moreira oferece?
Hoje, o Complexo oferece atendimento para todas as esferas que envolvem a saúde mental. Se o paciente está em surto, em um quadro de urgência e emergência, temos nosso prontoatendimento e esse paciente pode, ou não, ser internado. Se não for caso de internação, ele será encaminhado para a Rede de Saúde Mental, vai passar por todo atendimento da nossa equipe multidisciplinar, que envolve psicólogos, enfermeiros, médico, assistente social. Esse paciente será acolhido, a demanda será entendida e ele será encaminhado. Se for o caso de internação, internamos.
Também temos nosso serviço de ambulatório, que funciona para todo o estado (exceto João Pessoa, Cabedelo, Santa Rita e Bayeux). Também oferecemos as práticas integrativas, que não são exclusivas para quem vem do interior. De segunda à sexta-feira, o paciente pode chegar a partir das 16h, pegar sua ficha e passar por todo esse atendimento, que inclui terapias com massagens, reiki, auriculoterapia, toda uma rede de suporte que ajuda a reduzir os níveis de estresse e tensões. Tudo para que esse paciente não precise passar para outro nível de complexidade e necessite de tratamento medicamentoso, mas se for o caso, também fazemos esse encaminhamento. Ainda estamos fechando os dados, mas posso adiantar que ultrapassamos os 21 mil atendimentos em 2023.
*Entrevista publicada originalmente na edição impressa de 14 de janeiro de 2023.