Ver, ouvir, ler notícias negativas para se informar é normal, mas, quando o desejo de buscar esse tipo de informação se torna compulsivo, passa a ser preocupante, gerando consequências que vão de ansiedade à depressão. Isso tem nome: doomscrolling (doom significa ruína ou condenação e scrolling, rolar a página), termo em inglês que designa exatamente a mania de consumir notícias pessimistas e desanimadoras.
Essas notícias envolvem temas como guerras, desastres naturais, tragédias, crimes, acidentes, política (o lado ruim) e, mais recentemente, a pandemia do novo coronavírus, que provoca a Covid-19. Quanto mais os assuntos são pesquisados, mais o algoritmo vai mostrar publicações com o mesmo teor, transformando a timeline desse consumidor de notícias ruins numa verdadeira cascata de informações pesadas e perturbadoras.
A prática não é novidade e se concretiza há um bom tempo, por exemplo, nos programas policialescos e sensacionalistas, e ganhou força durante o período da pandemia da Covid-19. O fato de ter mais tempo em casa e a busca pelas informações sobre a doença desconhecida, seus efeitos, aumento do número de casos e de mortes, surgimento de novas variantes e toda a repercussão que teve no mundo, aumentou o interesse por notícias relacionadas e, consequentemente, de outras informações negativas também. Quem não viu na tevê ou acessou as redes sociais e portais em busca de informação?
O doomscrolling, inclusive, se tornou tema de estudos e de reportagens mundo afora. No Brasil, a revista Veja publicou, em setembro de 2022, a matéria ‘Vício de ler compulsivamente notícias trágicas ganha força com as redes’, e o texto, assinado por André Sollitto, cita uma pesquisa realizada por cientistas da Universidade Texas Tech, nos Estados Unidos. Nela foi constatado que 16,5% dos norte-americanos são plenamente viciados em notícias perturbadoras e 27% manifestaram dependência moderada.
“O noticiário 24 horas por dia pode provocar um estado constante de alerta em algumas pessoas, fazendo com que o mundo pareça um lugar extremamente perigoso”, escreveu Bryan McLaughlin, principal autor da pesquisa. O estudo aponta que 74% dos que têm vício grave apresentam problemas de saúde mental, como ansiedade, estresse e dificuldade em se desconectar do noticiário. Outros 61% desenvolvem danos físicos, como fadiga, dores pelo corpo e desconforto gastrintestinal.
Estudo aponta que 74% dos que têm vício grave em notícias perturbadoras apresentam problemas de saúde mental, como ansiedade e estresse
Em estudo realizado anteriormente e citado na mesma reportagem, a psicóloga Roxane Cohen Silver, da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, constatou que, após o atentado à Maratona de Boston, pessoas que acompanharam pelo menos seis horas de cobertura de notícias relacionadas apresentaram estresse mais agudo que aquelas que estavam na linha de chegada da corrida, onde as bombas explodiram.
Outro estudo também publicado em 2022 pela Universidade de Deakin, na Austrália, aponta que limitar o consumo de notícias trágicas no auge da pandemia, quando houve um lockdown rígido no país, contribuiu para o bem-estar dos entrevistados. O resultado de quem optou por notícias oficiais, reduzindo o tempo com as trágicas, foi de mais calma e menor distração nos afazeres domésticos e no trabalho. Conforme o estudo, dedicar menos tempo a esse tipo de conteúdo e selecionar fontes confiáveis são opções que ajudam, embora as redes sociais sejam empecilho para que a estratégia dê certo.
A revista Super Interessante publicou, em setembro de 2022, a reportagem ‘Doomscrolling é ruim para seu cérebro - e para o seu corpo também’, baseada na pesquisa de McLaughlin, ressaltando que foram 1,1 mil entrevistados, e aqueles 16,5% viciados em informações negativas mostraram sinais de consumo “severamente problemáticos” desse tipo de notícia, elevação dos níveis de estresse, ansiedade e questões de saúde, entrando num círculo vicioso por esses assuntos.
Na reportagem, McLaughlin analisa que “para aliviar seu sofrimento emocional, essas pessoas continuam verificando atualizações o tempo todo. Mas isso não ajuda, e quanto mais elas checam as notícias, mais elas começam a interferir em outros aspectos de suas vidas”. Dos entrevistados, 27,5% foram minimamente impactados e 28,7% não tiveram problemas.
Algoritmo garante doses de dopamina
O jornalista e escritor Felipe Gesteira, consultor nas áreas de comunicação e marketing político, afirma que não é de hoje que as pessoas se interessam por notícias ruins, mas quando se trata de um noticiário, seja televisivo ou impresso, em dado momento o conteúdo acaba, e aí quem consome esse tipo de informação se vê obrigado a buscar mais fontes, ou parar ali mesmo.
“No caso das redes sociais digitais, o hábito de ‘rolar a tela’ é fomentado por um algoritmo que entende o que fascina o usuário e oferece a ele cada vez mais daquilo, numa escalada de tragédias em troca de tempo conectado de olho na tela e pequenas doses de dopamina. Além da falta de checagem dos fatos, o perigo de consumir notícias por meio das redes sociais digitais tem o agravante de a fonte de conteúdo ser infinita”, observa.
A realidade de que atualmente muitos veículos de comunicação, sejam tevês, portais, rádios, apostam nesse tipo de notícia em busca de audiência e cliques, é vista por Gesteira como uma falta de responsabilidade com o bem-estar social. “Existem muitas formas de entregar a informação, e se os veículos sabem que o sensacionalismo dá audiência e exploram esse viés expondo o público a excessos que podem não fazer bem, o compromisso não é de informar, mas gerar números”, aponta.
Para Gesteira, é difícil dizer o que é saudável ou até que ponto há equilíbrio, pois a pessoa pode consumir notícias ruins e mesmo assim não ser bem informada. Ele defende que o consumo de informação seja feito a partir de mídias que permitam ao usuário manter o controle de seus interesses.
O jornalista comenta que a maior parte das redes sociais digitais utiliza ferramentas que detectam o interesse do usuário e passa a oferecer mais conteúdo similar, seja no “rolar da tela” ou mesmo nos vídeos seguintes, com base em mecanismos de reprodução automática. “Dessa forma, o usuário é colocado num poço sem fim, em que o vício se retroalimenta dentro da mesma rede”, constata.
“O ideal é buscar o conteúdo de interesse nos veículos, seja tevê, impresso ou mesmo digital, nos quais a informação se encerra. E se a pessoa quiser mesmo se informar por meio das redes sociais, a solução é configurar filtros para que o conteúdo seja oferecido pelo critério da linha do tempo, e não pelo que o algoritmo aprendeu que irá agradar ao usuário”, ensina.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 22 de outubro de 2023.