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Almanaque: Uma dama no teatro sertanejo

publicado: 05/04/2023 11h46, última modificação: 05/04/2023 11h46
Professora e historiadora Íracles Brocos Pires, a Dona Ica, vence a ação do tempo e permanece na história da cidade de Cajazeiras
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Ilustração: Tônio
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Foto: Arquivo de Família
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por Nalim Tavares*

Algumas pessoas vencem a ação do tempo e permanecem na história de um lugar. A memória de Íracles Brocos Pires, por exemplo, está eternizada assim como o seu nome, gravado na fachada do principal teatro de Cajazeiras – o melhor lugar para homenagear a mulher conhecida por muitos como a “Dama do Teatro no Sertão da Paraíba”.

Carinhosamente apelidada de Dona Ica, Íracles Pires foi teatróloga, escritora, radialista, jornalista e professora, formada em Teatro pela Faculdade de Belas Artes do Rio de Janeiro. Ela participou de maneira atuante dos movimentos culturais do Sertão paraibano, até março de 1979, quando morreu em um acidente automobilístico, aos 46 anos, em Jequié, na Bahia.

Natural de Cajazeiras, Ica era descendente da família Matos Rolim, uma das mais antigas da cidade. Em 1953, ela se casou com Waldemar Pires Ferreira, com quem teve dois filhos – a arquiteta Jeanne Brocos Pires e o engenheiro mecânico e advogado Saulo Péricles Brocos Pires Ferreira, conhecido como Pepé.

Para Saulo, Íracles era “uma mulher dinâmica, de liderança notável. Tudo o que ela podia fazer pela cidade, pela comunidade, ela fazia e engajava, estava à frente”. Pepé conviveu com Íracles por 23 anos desde o seu nascimento, e conta que foram muitas as vezes em que viu a mãe fazer a diferença.

De Íracles, Pepé guarda muitas histórias. Entre as décadas de 1950 e 1960, Cajazeiras viveu um momento de intensa atividade cultural, com o Clube 1° de Maio e o Cajazeiras Tênis Clube, onde as primeiras companhias de teatro locais começaram a se apresentar. Havia, também, o Teatro de Amadores de Cajazeiras (TAC), fundado em 1953, contando com a incontestável liderança de Ica.

Ao longo de sua carreira no teatro, Íracles montou espetáculos como ‘O Auto da Compadecida’, ‘O Noviço’, ‘Dona Xepa’, ‘Afilhada de Nossa Senhora da Conceição’, ‘O Piquenique do Tigre’, ‘A Dama do Camarote’ e ‘Fui eu… Mas não espalhe’. Para além dos palcos, ela gostava de organizar festas juninas para toda a comunidade, festas de debutantes e outras datas comemorativas do calendário da cidade. Ela, inclusive, ajudou a organizar as celebrações do Centenário de Cajazeiras, em 1963.

Íracles gostava de adquirir conhecimento e formar as próprias opiniões. Leitora ávida, daquelas que fazem múltiplas leituras ao mesmo tempo, ela tinha um senso crítico afiado e adorava conversar. Segundo Pepé, uma das coisas que ela mais gostava de fazer era o programa de rádio ‘Mini Discoteca Dinamite’, que foi um sucesso de audiência não só em Cajazeiras, mas na Paraíba. No programa, Ica externava seu ponto de vista e fazia uma série de comentários sobre a política paraibana e, principalmente, cajazeirense.

Amiga do bispo e pioneira no uso da calça comprida

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Foto: Arquivo de Família

Com certa diversão, Saulo lembra de uma ocasião específica em que percebeu que a mãe era, de fato, uma mulher à frente do seu tempo: durante uma missa, o então bispo diocesano de Cajazeiras, Dom Zacarias Rolim de Moura, teceu um sermão sobre o que seriam “vestes apropriadas para mulheres e homens”, porque Ica, ao lado de outras cajazeirenses, tinha sido uma das primeiras a vestir calça comprida na cidade do interior paraibano. Mas não demorou muito para Íracles, com seu espírito disposto, se tornar amiga do bispo. “Ela se tornou uma pessoa de extrema confiança do bispo Zacarias”, conta Pepé. “Quando ela morreu, era diretora da Rádio Alto Piranhas, fundada pela Diocese de Cajazeiras, em julho de 1966”.

Ica viveu com paixão, se dedicando a tudo o que se propunha a fazer. O poeta e jornalista Linaldo Guedes, membro da Academia Cajazeirense de Artes e Letras (Acal), não chegou a conhecê-la, mas conhece a história de Íracles “não só porque dá nome ao teatro de Cajazeiras, mas porque ela foi revolucionária para a época”.

“Em plena ditadura militar, depois de casada, com filhos, e criada em família tradicional, Ica ousou, se formou e fez teatro em uma cidade no interior da Paraíba. E brilhou não só como atriz, mas como diretora e cenógrafa”, conta Linaldo. “Ela fazia de tudo no teatro, tamanha a capacidade artística que tinha na veia. Como radialista em Cajazeiras, levantou audiência na região”.

Para Linaldo, Ica era tão diversa quanto a vastidão de interesses que tinha. “Ela era múltipla. Foi uma revolucionária mesmo. Eu coloco Dona Ica, por sua história e pela trajetória, como um dos grandes nomes femininos da história da Paraíba. Íracles Pires ajudou a fazer a história política, social, econômica e cultural da Paraíba”.

Já para os filhos de Íracles, Jeanne e Saulo, a mãe, aos poucos, deixa de ser uma figura física, lembrada por aqueles que conviveram e conversaram com ela, e passa a se tornar uma “figura mitológica”, celebrada por seus atos através de histórias contadas de geração em geração. É assim que eles acreditam que a mãe vai ser lembrada, preservada pela história e pelo tempo como “a Dona Ica, que ajudou a acender o cenário cultural no Sertão paraibano”.

*Matéria publicada na edição impressa do dia 2 de abril de 2023.