Nos últimos anos o feminismo tem estourado a bolha das discussões sociais e se tornado pauta nos mais distintos grupos. Pelo viés de luta adotado, atribui-se ao movimento grande parte das conquistas femininas. Por este mesmo motivo, o feminismo é apontado como um movimento único. No entanto, é a pluralidade e o respeito aos atravessamentos individuais que garante o avanço do movimento na conquista por direitos para toda a sociedade.
Embora o foco seja a luta por igualdade de gênero, o feminismo abrange, também, as incontáveis desigualdades que transpassam e dificultam a existência das mulheres em todo o mundo. Neste movimento, entende-se que a luta é coletiva e, como tal, deve respeitar o coletivo.
Pesquisadora na área de Estudos Decoloniais e Feministas, a professora de Letras Estrangeiras Modernas, Liane Schneider, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), diz que a percepção da existência feminina suscita, há séculos, o debate sobre a mulher. Liane explica que a elaboração sobre o pensamento feminista na Academia passa pelas questões plurais do movimento. Segundo ela, a ideia é debater as mulheres e os feminismos, já que há identidades e vertentes bastante diferentes mesmo dentro das teorias, pensamentos e movimentos organizados.
“Desde que, a partir do surgimento da categoria ‘mulher’, passou-se a dar visibilidade a perspectivas outras que não haviam sido incluídas anteriormente na organização do pensamento ocidental, essa categoria de imediato passou a ser exposta a questionamentos internos: de que mulher falamos? Todas mulheres podem e querem se identificar com tal categoria e com o próprio feminismo? Quando se falava de ‘mulher’, ainda no século passado, ou mesmo antes, pensava-se na mulher negra? Na indígena, na trabalhadora? Quem era aquela ‘mulher’ que conseguiu ser inicialmente vista e escutada?”, estimula Liane.
É com base nestes questionamentos que surgem as vertentes do movimento feminista, já que, ao contrário do que muitos pensam, o feminismo também não é um movimento sexista. Ou seja, ele não é o contrário de machismo e não tem como intenção impor a superioridade feminina, dificultando a existência masculina. É por isso que, através de parte das lutas feministas, várias outras causas encontram formas de se destacar: o movimento propõe igualdade entre todos os gêneros e formas de existir, com base nas desigualdades que todos os dias se escancaram em cada esquina do país.
Em 2020, enquanto a pandemia de Covid-19 obrigou a maioria da população a se isolar, uma em cada quatro mulheres brasileiras acima de 16 anos afirmou ter sofrido algum tipo de violência ou agressão. Já em 2021, ao menos uma pessoa por minuto ligou para o 190 denunciando agressões decorrentes de violência doméstica contra mulheres. Os dados são do Instituto DataFolha em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
No ano passado, dados da Fundação Getúlio Vargas demonstraram que apenas metade das mais de 48 milhões de mulheres negras com idade para trabalhar estavam empregadas. Este ano, o site brasileiro Catho, especializado em classificados de empregos, reafirmou que a disparidade salarial decorrente da estigmatização de gênero faz com que homens tenham salários até 52% maiores que as mulheres.
Através da pesquisa “Visível e Invisível: A Vitimização de Mulheres no Brasil”, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, apontou que, hoje, no país, 33,4% das mulheres com 16 anos ou mais já sofreram violência física e/ou sexual por parte de parceiro ou ex-parceiro íntimo. O índice brasileiro é maior que a média global, de 27%, registrada pela Organização Mundial da Saúde. São justamente estes cenários que o feminismo se propõe a mudar. Não um deles, mas todos. Contudo, para que isso seja possível, é fundamental respeitar as nuances através das quais a desigualdade se apresenta para cada mulher.
A professora, feminista e ativista, Adjany Simplicio, afirma que as diferenças no movimento feminista apontam para a interseccionalidade nas bandeiras desta luta. Segundo ela, a diversidade no movimento é algo que é produzido na interação entre os fatores sociais que definem uma pessoa. “As questões de identidade de gênero, orientação sexual, classe, idade, deficiência e, especialmente etnia e raça, afetam as pessoas de forma simultânea, sobrepondo-lhes vários elementos de opressão no imediato”, diz.
Para ser uno, o movimento feminista busca reconhecer a diversidade das mulheres, bem como as diferentes camadas de opressão pelas quais cada uma delas passa. Assim, a ativista destaca que é necessário “ratificar que mulheres empobrecidas, negras e indígenas sofrem mais violência e precisam ser afirmadas na luta por direitos e pela própria vida”. Esta é, para Simplicio, a via mais segura em direção ao avanço.
As estratégias de enfrentamento à desigualdade são muitas e cada grupo encontra seus próprios meios para resistir. No Sertão da Paraíba, por exemplo, um grupo feminista luta por direitos na agricultura e, este ano, irá às ruas no Dia Nacional da Conscientização Pelas Mudanças Climáticas (16 de março) reclamar os direitos dos agricultores paraibanos. Para a líder sindical e uma das coordenadoras políticas do Polo da Borborema (um fórum que reúne 13 sindicatos rurais), Roselita Vitor, é necessário articular pensamento e ação. É assim que nasce a Marcha pela Vida das Mulheres e pela Agroecologia que, este ano, chega em sua 14° edição.
No ambiente acadêmico, a produção voltada à redução das desigualdades e ao estudo dos atravessamentos de gênero é grande. Na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), a Revista Ártemis, da qual Liane Schneider faz parte como editora, tem participado há quase duas décadas da construção desse campo de trocas, ao viabilizar o debate feminista segundo o mundo editorial, que, por sua vez, impacta também outras áreas de produção cultural e suas críticas.
Para a professora Luciana Calado, editora da Revista Ártemis e atuante na mesma área de Liane, a interseccionalidade é fundamental para a elaboração de políticas públicas para as mulheres. Isto porque, segundo a professora, a articulação da teoria e do ativismo está no centro da elaboração de políticas públicas específicas, resultantes de “um processo de empoderamento de mulheres, com seus diversos marcadores sociais, que suscitou viva reação nos últimos anos por uma parcela da nossa sociedade lamentavelmente ainda muito patriarcal, machista, homofóbica, transfóbica, racista e classista”.
Na vida real, a união de teoria e prática resulta nas mudanças que Roselita vê e luta para continuar vendo no interior do estado. “O acesso ao conhecimento tem um papel fundamental na vida de todo mundo. Conhecimento é poder. Quando tenho informações adequadas, posso discutir com você tete à tete, olho no olho. Quando não, apenas escuto e decido com base no que me dizem”, afirma a líder sindical ao explicar que a marcha propaga as realidades de comunidades já afetadas pelo pensamento industrial.
Em outras regiões do estado as mulheres também têm se associado em um encadeamento de ações pelos direitos das mulheres durante todo o ano e, sobretudo, em março; quando acontece a Jornada 8M, da qual a ativista Adjany Simplicio faz parte.
“Nós mulheres estamos sufocadas pela imperiosa demanda de preservar a vida das nossas famílias e num país em crise, sem empregos, estamos lidando com a insegurança alimentar e a fome cada vez mais. Por isso aqui na Paraíba, nós na luta feminista afirmamos que permanecemos unidas Pela Vida das Mulheres, bradamos contra o Feminicídio, em defesa da democracia, porque assim podemos lutar por direitos sociais e pela nossa diversidade”, afirma.
Na UFPB, o Comitê de Políticas de Prevenção e Enfrentamento à Violência contra as Mulheres (CoMu) também trabalha em busca de igualdade para todas. De acordo com a coordenadora do comitê, Lis Lemos, ele é o resultado de uma reivindicação das mulheres da UFPB que, organizadas, conquistaram este que é um dos poucos equipamentos desse tipo a nível federal.
“O CoMu não atua só para dentro da universidade como, também, para fora. Acho que temos uma obrigação de não atuarmos apenas dentro da universidade. Acho que a CoMu vem nessa esteira de fomentar para dentro da universidade algo que está na sociedade. A violência está aí fora e aqui dentro também, então temos que criar mecanismos para coibir essa realidade”, comenta Lis Lemos.
Para a editora do periódico Ártemis, Loreley Garcia, a renovação dentro dos movimentos políticos, sociais e culturais é algo natural e saudável. Um movimento de incorporação às novas demandas e transformações de cada época. Contudo, segundo Loreley, é necessário observar se estas mudanças não afastam o movimento de seu motivo original de ser. “O que é complicado é quando o movimento se desvirtua da pauta original, histórica e da própria razão de existir. Em certa medida, é o que vejo acontecer com o feminismo em suas múltiplas vertentes”, analisa a acadêmica, que é autora de “Os Descaminhos do Feminismo”, artigo publicado na 29° edição de Ártemis.
Enquanto Loreley acredita que a multiplicidade pode causar dissonância ao movimento, Adjany Simplicio pensa que a justiça social se atinge justamente pela pluralidade. “Temos crescido em ocupar redes sociais, na luta por políticas de promoção de igualdade e de combate às violências, estamos nas novelas, telejornais, internet, de várias formas. Saímos dos espaços apenas de mulheres e estamos avançando nos espaços sociais, mistos, chamando à responsabilidade de homens e de setores sociais para a luta contra o machismo e a violência”, comenta.
A verdade é que, independente da vertente, o que as feministas buscam é justiça social e por isso, todas as pessoas são beneficiárias na construção de uma sociedade melhor. “Isso não é utopia, é a concretude do compromisso de cada pessoa com a proteção da vida. Sem dignidade, direitos e a participação das mulheres na sociedade não há vida possível”, finaliza Simplicio.
Os feminismos
Conheça as principais vertentes do movimento feminista:
- Feminismo interseccional (pós-moderno) - Leva em consideração que a luta muda, de acordo com as particularidades de cada grupo. Esta vertente tem em vista que a luta de uma mulher lésbica é diferente da luta de uma mulher negra, por exemplo;
- Feminismo negro - Engloba as mulheres que integram as discussões de gênero e a luta antirracista. No feminismo negro, o foco do debate é a experiência de mulheres negras;
- Feminismo radical - Propõe-se que a supremacia masculina seja extinta de todas as esferas político-sociais, através do fim da atribuição de papéis aos gêneros. Essa corrente de pensamento surgiu em meados dos anos 1960, nos Estados Unidos, e entende que o enquadramento de gênero é a principal ferramenta de opressão feminina;
- Feminismo liberal/ universalista - Busca a igualdade por meio de mudanças na legislação. Esta vertente é associada ao movimento sufragista, no século 19. Nela, o centro do debate do feminismo liberal está a doutrina político-econômica do liberalismo e, por isso, acredita-se que a liberdade feminina depende apenas das escolhas feitas pelas mulheres. Isso, sem considerar que o mundo é pautado pelo pensamento masculino;
- Ecofeminismo - Procura reformular a luta por igualdade, de modo que ela seja voltada não apenas à conquista de direitos, mas também à defesa da natureza. As pessoas que integram a vertente ecofeminista consideram que deve-se lutar não apenas pela existência humana digna, mas também pela garantia da subsistência da humanidade;
- Feminismo marxista/socialista - Pretende mostrar como a economia (por meio dos conceitos de capitalismo e propriedade privada) é determinante na opressão feminina.
*Matéria publicada originalmente na edição de 8 de março de 2023.