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Há 427 anos, corsário inglês saqueava Recife, “abrindo as portas” para que, mais tarde, os holandeses ocupassem Pernambuco e invadissem a Paraíba

Butim histórico

publicado: 24/07/2022 00h00, última modificação: 25/07/2022 10h19
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- Foto: Ilustração: Tônio

 por Hílton Gouvêa*


Sir James Lancaster nasceu em Basingstoke, ao norte da Inglaterra, no ano de 1554. E morreu em Londres, a 6 de junho de 1618, aos 64 anos, cheio de prestígio e glórias. Foi um comerciante e navegador inglês, se destacando como pioneiro no comércio entre os britânicos e os indianos, um mérito que dava fama, fortuna e prestígio a quem o realizava.

Morou em Portugal como militar da guarnição britânica em Lisboa. Depois foi comerciante, responsável por entrepostos em Portugal, que envolvia intenso comércio com diversos países ocidentais e orientais. Segundo relatos de diários de bordo, “era um homem que não temia o diabo, porque dizia abertamente só acreditar nele quando o visse”.

Sua primeira viagem à Índia, como comandante inglês, aconteceu em 1591, sendo comandante das duas primeiras armadas inglesas oficialmente corsárias. Regressou à Inglaterra em 1594. Como diretor da Companhia das Índias Ocidentais, tornou-se grande promotor de viagens de descobrimento no âmbito das descobertas inglesas e também portuguesas.

Na qualidade corsário a serviço da coroa inglesa, recebeu autorização, durante a Guerra Anglo-Espanhola, para imprimir navegação de corso nos oceanos. Em 30 de março de 1595 invadiu o Porto de Recife, onde permaneceu por um mês saqueando e abastecendo seus navios das riquezas produzidas na terra. Essa invasão à capital pernambucana pelos ingleses teria sido uma espécie de prévia para que mais tarde ocorresse a ocupação holandesa na região. Após a ocupação do Porto de Recife em 1595, 39 anos depois, em 1634, os holandeses conquistavam a Paraíba.

Não se dando por satisfeito com a pilhagem, alugou outros 12 barcos que abarrotou com o butim. O evento ficou conhecido como o “Saque do Recife”, e está devidamente registrado no Arquivo Histórico Geográfico do Brasil. Ao longo de suas viagens, escreveu o que parece um esboço de sua autobiografia: ‘The voyages of Sir James Lancaster to Brazil and the EastIndies 1591-1603’.

“Olho gordo” de padre francês em Recife 

O “olho gordo” do padre francês Fernão de Cardim, que ao visitar Recife e Olinda relatou para nobres ingleses as maravilhosas opulências dessas duas vilas do Norte do Brasil, onde as riquezas amealhadas com a venda de especiarias, algodão, cana-de-açúcar e pau-brasil as deixavam mais ricas do que as fazendas de cacau e gado da Bahia, despertou a cobiça de corsários internacionais, entre eles o almirante inglês James Lancaster.

Cardim escreveu, em seu relato de viagens: “Aqui, os móveis e cortinas são forrados com damascos e carmesim franjados de ouro, sem falar no uso quase vulgar de colchas da Índia, tão caras em outras paragens do mundo, daí porque, em Pernambuco, existe mais vaidade do que em Lisboa”.

O “Saque do Recife”, também conhecido como “Expedição Pernambucana de Lancaster”, foi a única expedição de corso da Inglaterra que teve como objetivo principal o Brasil e representou o mais rico butim da história da navegação de corso do período elizabetano.

A pilhagem, também chamada saque, é o furto ou roubo indiscriminado de bens alheios como parte de uma vitória política ou militar, ou no decorrer de uma catástrofe ou tumulto, como numa guerra ou num desastre natural. O produto de uma pilhagem ou saque é designado como espólio, presa ou butim.

A União Ibérica (Portugal e Espanha) colocou o Estado do Brasil em conflito com potências europeias amigas de Portugal, mas inimigas da Espanha, como a Inglaterra e a Holanda. A Capitania de Pernambuco, na época a mais rica de todas as possessões portuguesas, se tornou o alvo desse corsário inglês, protegido da Rainha Elizabeth I.

Poucos anos após derrotarem a invencível armada espanhola, em 1588, os ingleses tiveram acesso a manuscritos portugueses e espanhóis que detalhavam a costa do Brasil. Um deles, de autoria do mercador português Lopes Vaz, veio a ser publicado em inglês e enfatizava as qualidades da rica Vila de Olinda ao dizer que “Pernambuco é a mais importante cidade de toda aquela costa”.

A opulência pernambucana impressionara o padre Fernão Cardim, que surpreendeu-se com “as fazendas maiores e mais ricas que as da Bahia, os banquetes de extraordinárias iguarias”, e resumiu suas impressões numa frase antológica: “Enfim, em Pernambuco acha-se mais vaidade que em Lisboa”. Logo a capitania seria vista pelos ingleses como um “macio e suculento” pedaço do Império de Filipe II. Na época, Portugal e o Brasil estavam sob domínio da Espanha.

Pernambuco, a capitania mais próspera 

A expedição de James Lancaster saiu de Blackwall, na Grande Londres, em 30 de março de 1594, e navegou através do Atlântico capturando numerosos navios antes de atingir Pernambuco. Ao chegar à costa pernambucana, Lancaster confrontou a resistência local, mas se deparou na entrada do porto com três urcas holandesas, das quais esperava uma reação negativa, o que não aconteceu: os antes pacíficos holandeses levantaram âncora e deixaram o caminho livre para a invasão inglesa.

Além de não terem oposto resistência à ação, terminaram por se associar aos ingleses, fretando seus navios para o transporte dos bens subtraídos em Pernambuco. Lancaster então tomou Recife e nele permaneceu por quase um mês, espaço de tempo no qual se associou aos franceses que chegaram no porto e derrotaram uma série de contra-ataques portugueses.

A frota partiu com um montante robusto de açúcar, pau-brasil, algodão e mercadorias de alto preço. Dos navios que partiram do porto, apenas uma pequena nau não chegou ao seu destino. O lucro dos investidores, entre eles Thomas Cordell, então prefeito de Londres, e o vereador da cidade de Londres John Watts, foi assombroso, estimado em mais de 51 mil libras esterlinas. Do total, 6,1 mil libras ficaram com Lancaster e pouco mais de 3 mil foram para a rainha. Com tal desfecho, a expedição foi considerada um absoluto sucesso militar e financeiro.

Após a visita de Lancaster, a Capitania de Pernambuco organizou duas companhias armadas para a defesa da região, cada uma delas com 220 mosqueteiros e arcabuzeiros, uma sediada em Olinda e outra em Recife. Anos depois, até meados de 1626, o então governador Matias de Albuquerque procurou estabelecer posições fortificadas no porto de Recife para que se pudesse dissuadir a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais da ideia de expansão sobre as terras pernambucanas.

Todavia, os investimentos não foram suficientes: a nova e poderosa esquadra da Holanda investiu sobre a Capitania de Pernambuco em 1630, e a conquistou, estabelecendo nela a colônia Nova Holanda, que durou vinte e quatro anos. Depois partiram para a conquista da Paraíba e conseguiram conquistá-la na noite de Natal de 1634, após a queda dos Fortes da Restinga de Cabedelo.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 24 de julho de 2022.