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Clara Camarão

publicado: 20/03/2023 12h45, última modificação: 20/03/2023 12h45
Temida pelos holandeses, uma guerreira potiguara comandou um batalhão de mulheres indígenas, negras e mamelucas na guerra de expulsão dos invasores das terras nordestinas
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Ilustração: Tônio
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Dona Clara Camarão era mulher do índio potiguara Antônio Felipe Camarão (na gravura da direita), herói decisivo na guerra dosbrasileiros e portugueses contra o invasor holandês. Foto: Reprodução
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por Hilton Gouvêa*

Os biógrafos a descrevem como “uma mulher de prováveis 35 anos, altura um pouco acima da mediana que, com sua cor bronzeada, cabelos e olhos negros, mostrou às suas comandadas – integrantes de um batalhão de mulheres indígenas, negras e mamelucas utilizadas na guerra de expulsão dos holandeses da Paraíba –, como era dona de uma destreza sem igual com a lança, o tacape e o arco e flecha.

Também demonstrou que seus gritos alarmavam o inimigo nos campos de batalha. Essas qualidades heroicas são atribuídas a dona Clara Camarão, mulher do índio potiguara Antônio Felipe Camarão, herói decisivo na guerra dos brasileiros e portugueses contra o invasor holandês, nos meados do século 17.

Fernanda Fernandes, uma das biógrafas de Clara Camarão, afirma que ela e suas guerreiras eram como escudeiras dos respectivos maridos integrantes do exército regular e das companhias de guerrilheiros que compunham as hostes de Henrique Dias e do Capitão Rebelinho, esse último é o autor da morte de Yppo Eisssen (terceiro governador holandês da Paraíba), quando as duas falanges se encontraram no Engenho de Menson Fransen, em Cruz do Espírito Santo, na Região Metropolitana de João Pessoa.

Abrindo parênteses, Rebelinho era um próspero senhor de engenho, financeiramente arruinado pelos batavos, durante a ocupação holandesa (1634-1657) em Pernambuco e na Paraíba. Ele guardava uma mágoa: a soldadesca do exército da Companhia das Índias Ocidentais, certa vez, numa passagem pelo engenho de Rebelinho, teria maltratado a mulher e os filhos desse bravo capitão. Depois, por influência de Yppo Eissen, o engenho de Rebelinho acabou confiscado e entregue pelos neerlandeses ao judeu-holandês Menson Fransen.

Após ter o engenho confiscado, Rebelinho vingou-se matando muitos holandeses

Rebelinho vingou-se. E, ao saber que Yppo e seus homens, equivalentes a 175 soldados, assistiam a uma farinhada, no engenho de Menson, seu compatriota, Rebelinho, sem pestanejar, cercou a área e, de enboscada, matou grande parte do estado maior de Yppo e ele próprio, a golpes de espada.

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Dona Clara Camarão era mulher do índio potiguara Antônio Felipe Camarão (na gravura da direita), herói decisivo na guerra dosbrasileiros e portugueses contra o invasor holandês. Foto: Reprodução

“Rebelinho ainda foi perseguido por uma guarnição holandesa que estava em Santa Rita, mas os guerrilheiros de Henrique Dias e os soldados de André Vidal de Negreiros foram em seu socorro e interceptaram os passos do exército inimigo, assim nos conta o historiador e escritor Odilon Ribeiro Coutinho, cujos herdeiros, hoje, são donos de grande parte das terras de Menson Fransen.

Rebelimho e seus comandados saíram em fuga ligeira na direção de Porto Calvo, em Alagoas. No caminho, encontraram outra pequena guarnição holandesa e passaram seus 20 homens ao fio da espada e nos trabucos. Rebelinho lavou o peito. Yppo, um arrogante coronel holandês, a serviço da Companhia das Índias Ocidentais, ordenava a matança de humildes e mandava arrastar os cadáveres, a trote de cavalos, pelas ruas.

Era o terror dos que não pagavam regularmente os impostos. Inapelavelmente sequestrava os bens do devedor e os mandava para a cadeia. “Teve uma morte merecida, bem a seu estilo cruel”, sempre comentava o político e historiador Marcus Odilon Ribeiro Coutinho, especializado em estudar o período batavo na Paraíba.

Invisibilidade feminina na história do país

O nome de Clara Camarão está inscrito no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria, que homenageia personagens com papel fundamental na construção do Brasil. Apesar de sua trajetória ser contestada pela falta de documentos históricos que comprovem suas realizações, pesquisadores destacam que tal lacuna pode ser associada à invisibilidade feminina e ao pouco prestígio de personagens indígenas na história do Brasil. Na maioria das vezes, seus chefes ficavam com os louros da vitória, mesmo correndo pouco risco.

No povoado de Tejucupapo, em Pernambuco, todos os anos um grupo de mulheres encena a batalha que marcou a trajetória de Clara Camarão, reverenciando a luta feminina contra os invasores e, também, contra o preconceito. Na Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte – lugares onde surgia sempre em degladeio com o inimigo –, não consta, dela, nenhum monumento ou referência.

Ela nasceu no século 18, no Rio Grande do Norte, apesar de ter vivido na capitania de Pernambuco. Recebeu o nome de Clara ao ser batizada no cristianismo. Consta, em outra versão, que seria uma homenagem a Santa Clara, a mulher que, antes de ser freira, almejava se casar com São Francisco, na época, ainda despojado do voto sacerdotal.
Não há registros de seu nome indígena original. Já o sobrenome se deve à união com o também indígena Poti (Camarão, em tupi), batizado por Antônio Felipe Camarão, que, assim como ela, foi catequizado por padres jesuítas.

Segundo registros, Clara acompanhou o marido em batalhas contra os invasores holandeses. Sua primeira missão oficial, porém, foi liderando uma tropa feminina que escoltava famílias em busca de refúgio na cidade de Porto Calvo, em Alagoas, na década de 1630.

Na data provável de 23 de abril de 1646, no episódio conhecido como a Batalha de Tejucupapo, Clara teve grande atuação. Quando os holandeses souberam que as tropas lideradas por Felipe Camarão haviam sido convocadas para proteger Salvador, tentaram invadir Tejucupapo, região no Litoral pernambucano. Porém, foram surpreendidos pela tropa feminina, que os flagraram furtando frutas, grãos e legumes de seus roçados. As mulheres ferveram tonéis de água e adicionaram pimenta. O vapor foi levado pelo vento e atingiu o exército holandês, deixando os combatentes com os olhos ardendo, desnorteados pela pimenta. Foi, então, que elas atacaram. As potiguaras surpreenderam os invasores com a pontaria e a força com que usavam seus arcos, tacapes e lanças. Saíram vitoriosas.

A bravura dessas mulheres – hoje conhecidas como “Heroínas de Tejucupapo” –, fez com que elas fossem chamadas para participar de uma das maiores pelejas contra os holandeses, a primeira Batalha de Guararapes (1648). Derrotados, os holandeses se renderam em 1654, em Recife.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 19 de março de 2023.