O dicionário define cultura como um complexo de atividades, instituições, padrões sociais ligados à criação e difusão das belas-artes, ciências humanas e afins. A significação, porém, é apenas um resumo do que realmente designa o termo, cujo conceito é amplo. A cultura é múltipla e pode ser, por exemplo, de massa, pública, popular, erudita... Juntas, envolvem uma infinidade de desdobramentos como cinema, teatro, pintura, música, literatura, e uma amplitude de sentidos.
O sociólogo Marcus Alves, diretor executivo da Fundação Cultural de João Pessoa (Funjope), observa que, tradicionalmente, as pessoas comuns associam a questão da cultura à beleza e à criatividade, ao domínio das línguas ou das ferramentas das linguagens. Assim, uma pessoa culta seria aquela que tem o domínio das artes.
“No aspecto da Sociologia e da Antropologia, no entanto, nós lidamos com cultura para além dessas categorias da criação. Desde o operário a qualquer outro tipo social, para usar uma expressão de [Max] Weber, essas pessoas são portadoras de cultura, o operário, assim como o homem de negócios ou o homem da elite propriamente dita”. Assim, todas as pessoas são portadoras de linguagens e de culturas no aspecto em que Raymond Williams, sociólogo e teórico da comunicação e da cultura da Inglaterra, define como sendo esse modo de ser e de viver do ser humano.
"No aspecto da Sociologia e da Antropologia, lidamos com cultura para além dessas categorias da criação. Desde o operário a qualquer outro tipo social, essas pessoas são portadoras de cultura, o operário, assim como o homem de negócios ou o homem da elite propriamente dita" Marcus Alves
Para Nádja Silva, antropóloga e doutoranda em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), a cultura envolve um conjunto intrincado de padrões compartilhados de significado, comportamento, valores e expressões que caracterizam uma coletividade humana. Esses padrões englobam uma ampla gama de elementos como crenças, práticas, tradições, normas e formas de expressão criativa.
“A cultura exerce uma influência profunda na maneira como os indivíduos de um grupo interagem, interpretam o mundo e dão sentido às suas experiências. No contexto da análise cultural, é pertinente subdividir a cultura em categorias distintas. Essas subdivisões abrangem aspectos tangíveis e intangíveis da cultura, e são diversos”. Ela diz que a cultura é um fenômeno dinâmico que continua a evoluir e adaptar-se na medida em que as sociedades interagem, mudam e se desenvolvem.
O escritor e jornalista Hélder Moura emenda: “Imagino cultura como sendo um complexo que reúne conhecimento, crenças, artes, moral, os costumes e todas as demais capacidades adquiridas pelo humano num contexto político, no sentido aristotélico, e também social”. Já o historiador Rui Leitão, diretor da Rádio Tabajara e colunista do Jornal A União, declara que cultura é a manifestação comportamental de um grupo social revelada por seus conhecimentos e tradições, incluindo idioma, comidas típicas, música, artes, literatura. Ele lembra que a palavra cultura deriva do termo em latim colere, que significa colher, cultivar e crescer.
Cultura pública e a distinção do entretenimento
O sentido de cultura pública levanta algumas polêmicas porque existe o aspecto de que toda cultura é pública, e tem também, ao longo do desenvolvimento da literatura, por exemplo, a ideia do intelectual público, aquele que tem, no domínio da linguagem, seja literatura, música, artes, cinema ou de qualquer outra, um compromisso de promover o debate público, um encontro entre as artes e a sociedade. Assim, a cultura pública tem sempre um aspecto de querer transformar o mundo, de engajamento, conforme explica o sociólogo Marcus Alves.
Ele afirma que, ao falar na distinção entre cultura e entretenimento, esse par de conceitos também carrega uma polêmica. Se houver um recorte da crítica da cultura desenvolvida pela Escola de Frankfurt, tendo como principal referência os filósofos Theodor Adorno, Walter Benjamin, Herbert Marcuse, Max Horkheimer, eles já pré-figuram um conceito muito claro de cultura e antecipam uma luta constante entre a cultura enquanto processo de formação do ser humano, que tinha uma perspectiva libertadora, da fruição estética do belo e da democratização das artes, em luta contra uma lógica do entretenimento promovida pelas indústrias da cultura.
"A cultura exerce uma influência profunda na maneira como os indivíduos de um grupo interagem, interpretam o mundo e dão sentido às suas experiências" Nadja Silva
Em sua visão, entretenimento seria o espetáculo massivo desenvolvido a partir dos meios de comunicação de massa, sobretudo, do cinema, depois pela televisão, que invadiu e povoou todas as esferas. “A lógica do entretenimento hoje é marcante, de maneira que quase não temos uma alternativa ao entretenimento”, comenta Marcus Alves.
Adorno dizia que as indústrias da cultura dominaram e povoaram os mais recônditos aspectos da liberdade humana. “Até aquela lógica do tempo livre que o trabalhador teria para descansar ou para viver no ambiente da sua família, a indústria cultural raptou e transformou em entretenimento. É uma divergência na raiz entre cultura e entretenimento”.
A antropóloga Nádja Silva explica que cultura e entretenimento compartilham elementos e interagem em diversos contextos, mas a distinção fundamental se manifesta no propósito subjacente e na profundidade das manifestações culturais e entretenimento. “Isso porque a cultura denota um complexo conjunto de sistemas de significados, valores, crenças, normas, práticas e expressões intrincadamente interligados que definem a identidade coletiva de uma sociedade. Reflete o substrato histórico, social e cultural de um grupo humano, incorporando componentes como linguagem, símbolos, rituais, arte, tradições e modos de interação”, afirma.
Para ela, a cultura transcende o entretenimento em sua natureza mais profunda e perdurável, fundamentando as bases de identidade, coesão social e sistemas de significado compartilhados, enquanto que o entretenimento, por contraste, se refere às atividades, formas de mídia ou eventos concebidos com o intuito de oferecer prazer, divertimento e escape da rotina, envolvendo experiências recreativas, como cinema, música, teatro, espetáculos esportivos e outras formas de expressão artística.
“O foco primordial do entretenimento é proporcionar uma experiência gratificante ao público, frequentemente por meio de elementos visuais, sonoros e narrativos. A natureza efêmera do entretenimento o diferencia da profundidade histórica e sociocultural inerente à cultura”, comenta a antropóloga. Para o escritor Hélder Moura, é importante diferenciar que, enquanto cultura reflete comportamentos, tradições e conhecimentos de um determinado grupo social, entretenimento é tudo que entretém, distrai e diverte.
Cultura de massa e o capitalismo moderno
A ideia da cultura de massa traz a pegada do processo de desenvolvimento da modernidade ou do capitalismo moderno que começa a investir nas multidões, na massa, numa cultura de fácil acesso que vai nortear e fazer com que o cidadão, transformado em massa, perca seu direito à liberdade sem ele saber disso. Essa é a crítica fundamental que a Escola de Frankfurt faz ao conceito de cultura de massa, como explica o sociólogo Marcus Alves.
“Essa cultura está apegada ao desenvolvimento dos meios massivos de comunicação social, as indústrias de cultura, como Adorno chamava, ao cinema. Depois a literatura vai entrar nesse circuito de culturas de massa, e todas as outras artes, de maneira que temos um conflito grande entre cultura de massa e cultura no sentido da criação ou da formação do gosto estético”, diz.
"Imagino cultura como sendo um complexo que reúne conhecimento, crenças, artes, moral, os costumes e todas as demais capacidades adquiridas pelo humano num contexto político, no sentido aristotélico, e também social" Hélder Moura
Por outro lado, no ambiente teórico da Escola de Frankfurt, surgem pequenas divergências em torno de como tratar a cultura de massa. Theodor Adorno, por exemplo, faz uma leitura da cultura de massa de forma mais crítica, colocando-a como um produto propriamente da indústria cultural e que não tem nenhum aspecto libertador.
Já Walter Benjamin identificava alguns aspectos ou alguns sentidos de possibilidade de democratização da arte por meio da cultura de massa. “Benjamin, quando vai fazer a crítica do cinema, chega a dizer que essa indústria do cinema, ao mesmo tempo em que promove o amortecimento do aspecto da crítica na massa por meio da diversão, também promove a possibilidade do ser humano ter acesso a bens de cultura”, informa. Assim, a cultura de massa, para ele, não era necessariamente negativa.
“De algum modo, ele tinha esperança de que, na cultura de massa, se desenvolvesse um aspecto de crítica. É possível ter uma obra de arte, um produto massivo de cultura que tenha também elementos de arte. A isso, ele vai chamar de arte de massa. É um outro conceito. Temos o conceito de indústria cultural, o de cultura de massa e o de arte de massa”.
Cultura popular e suas manifestações
A indústria cultural se apropria das representações populares e as transformam em produto de massa
A cultura popular tem origem no povo, nas pessoas trabalhadoras, no operário clássico, ou seja, tem origem popular. A questão levantada pelo sociólogo Marcus Alves, da Fundação Cultural de João Pessoa (Funjope), é saber como a cultura de massa se apropria das culturas populares, debate intenso que ocorreu ao longo do século 20. Ele diz que o acadêmico Richard Hoggart define que há uma cultura operária vivendo numa espécie de paralelo à cultura de massa, mas, às vezes, a cultura de massa ou a indústria cultural se apropriam das culturas populares e as transformam amplamente.
“No Brasil, estamos vivendo isso em vários momentos, quando existem manifestações de culturas populares que são alçadas à indústria da cultura, que se apropria dessa cultura popular e a transforma num produto. Mas o sentido próprio da cultura popular é que é uma cultura que tem origem no povo, no homem trabalhador, na mulher trabalhadora, no operário clássico ou naquele segmento social pobre, de baixa renda que nós categorizamos como o povo, o homem simples”, considera.
Ele observa que o forró, por exemplo, é uma cultura de origem popular, mas questiona: “Como ele fica após ser apreendido, aprisionado, recuperado, reciclado pelas indústrias da cultura e se transforma num produto de massa? Ele ainda é da cultura popular? Evidentemente que não. Ele já é uma outra categoria de cultura”.
Às vezes, como narra Marcus Alves, quando fazem a tipologia da cultura, as pessoas recortam cultura popular, e fica muito claro. As culturas populares são aquelas culturas de tradição, os folguedos populares, o xaxado. No Nordeste, são as lapinhas, cirandas, cocos de roda. Essas categorias estão apegadas às culturas populares, mas, em alguns momentos, a indústria da cultura se apropria delas e as transforma em produtos. Assim, ganham outra variação, deixam de ser cultura popular e passam a ser cultura de massa ou um produto da indústria cultural.
Nádja Silva afirma que a cultura popular se refere ao conjunto de práticas, expressões, crenças, valores, tradições e manifestações culturais que emergem e são compartilhados por um grupo amplo de pessoas em uma sociedade. É parte fundamental da vida cotidiana e, muitas vezes, reflete os interesses e gostos das massas, diferenciando-se da cultura erudita, que é mais restrita e associada a grupos privilegiados. “Ademais, a cultura popular é dinâmica e está em constante evolução, sendo influenciada por mudanças sociais, tecnológicas e políticas. Ela desempenha um papel fundamental na formação das identidades individuais e coletivas, na criação de conexões culturais e na expressão dos valores e gostos das massas”, comenta.
A cultura popular é, normalmente, na visão do escritor Hélder Moura, resultado de uma contínua interpolação entre pessoas de determinadas regiões, grupos sociais, refletindo a complexidade de seus padrões de comportamento e crenças. Ele cita como exemplos de cultura popular a literatura de cordel, o baião, o samba, o maracatu, festas populares como Círio de Nazaré e Folia de Reis, mitologia indígena, entre outras.
Diferenças interligadas por várias maneiras
Cultura popular seria a cultura de matriz de origem popular, do povo simples, que era expressa nas comunidades, nos grupos sociais de baixa renda. A cultura de massa é mediada pelos sistemas de comunicação massiva – televisão, rádio, cinema, revistas, jornais – e ganha outra atmosfera, tende a querer pegar uma massa média, que tem um gosto mediano, conforme o sociólogo Marcus Alves.
Essa cultura de massa, segundo ele, cria produtos de gosto médio, aos quais todos podem ter acesso. “Qualquer pessoa pode gostar de uma novela de televisão, de um show de pop rock, de uma cantoria, porque tem essa marca de ser uma linguagem comum a variados tipos sociais e não está apegada a uma comunidade específica ou a um subgrupo social específico”, analisa.
A antropóloga Nádja Silva observa que a cultura popular e a cultura de massa são dois conceitos relacionados, mas distintos, que descrevem diferentes aspectos das expressões culturais e das dinâmicas sociais. Embora compartilhem algumas características, eles diferem em seus contextos, origens e alcances, mas, apesar das diferenças, a cultura popular e a cultura de massa estão interligadas de várias maneiras.
Ela sublinha que a cultura de massa frequentemente incorpora elementos da cultura popular para tornar seus produtos mais atraentes ao público. Além disso, a globalização e a disseminação de mídia têm o potencial de levar elementos da cultura popular a um público mais amplo, transformando-os em aspectos da cultura de massa.
“Em alguns casos, a relação entre esses dois conceitos pode ser complexa, com preocupações sobre a apropriação cultural, a descaracterização das expressões populares e a exploração comercial. No entanto, ambas desempenham papéis cruciais na dinâmica cultural de uma sociedade, influenciando a forma como as pessoas se expressam, se conectam e constroem identidades culturais”.
O jornalista, historiador e escritor Rui Leitão observa que cultura de massa é também conhecida como cultura pop, produzida pela cultura industrial, buscando atingir a massa social. São expressões culturais, segundo ele, que transcendem as distinções sociais, étnicas, sexuais, entre outras e, por isso, é considerada como de natureza comercial e manipulativa. Ele fala também da diferença entre cultura popular e cultura de massa. “A cultura popular resulta do povo, da identidade cultural de uma sociedade. A cultura de massa, no entanto, não é produzida pelas massas, mas para as massas, atendendo, então, aos interesses da sociedade de consumo”, esclarece.
Cultura erudita é pensada para as elites
A cultura erudita tem o aspecto de ser voltada às elites, às pessoas que têm o domínio dos códigos formais da linguagem. “Se pensarmos a literatura erudita, são os romances, romances experimentais como James Joyce, quando escreve ‘Ulysses’; Goethe, quando está lá escrevendo os seus romances, esses autores pressupõem que o seu público tem o domínio de um código linguístico formal, uma linguagem formal que é capaz de entendê-los. Pressupõe uma formação, uma intelectualização do ser humano. Por isso, cultura erudita”, explica Marcus Alves.
Durante muito tempo, como relata o sociólogo, as pessoas comuns sempre pensaram cultura erudita como a pessoa culta, que tem o domínio formal das linguagens. Fora desse código da erudição não existiria cultura. Esse é o sentimento dominante durante vários séculos e que é hegemônico, sobretudo, a partir da Europa dominadora.
Na avaliação da antropóloga Nádja Silva, a cultura erudita refere-se ao conjunto de conhecimentos, expressões artísticas, práticas intelectuais e manifestações culturais que são tradicionalmente associados a um nível elevado de sofisticação, educação formal e refinamento.
"A cultura popular resulta do povo, da identidade cultural de uma sociedade. A cultura de massa, no entanto, não é produzida pelas massas, mas para as massas, atendendo, então, aos interesses da sociedade de consumo" Rui Leitão
“Está intrinsecamente relacionada ao aprendizado acadêmico, à tradição intelectual e à apreciação das artes de um modo mais elaborado e complexo. A cultura erudita é muitas vezes considerada como uma forma de cultura que é cultivada por aqueles que possuem um alto grau de educação, envolvimento intelectual e acesso a recursos culturais sofisticados”.
Ela ressalta que a cultura erudita não está isolada da cultura popular ou da cultura de massa. Ela coexiste com os outros domínios culturais e há interações e influências mútuas entre eles. No entanto, a cultura erudita é frequentemente vista como estando em um espectro mais elevado de complexidade e profundidade intelectual.
Para Nádja, a cultura erudita muitas vezes é associada a uma ‘elite intelectual’ e isso ocorre porque o acesso a oportunidades educacionais, à formação acadêmica e ao engajamento com formas de expressão cultural mais complexas nem sempre é igualmente distribuído em todas as camadas da sociedade.
Ela lembra, porém, que há indivíduos que não tiveram educação formal avançada, mas que possuem profundo conhecimento e apreciação pela cultura erudita, que está em constante evolução e é moldada por uma diversidade de perspectivas e influências. Portanto, embora a associação entre cultura erudita e elite intelectual seja uma característica histórica, a realidade contemporânea é mais fluida e complexa.
O escritor Hélder Moura emenda: “Enquanto a cultura popular nasce espontaneamente de um determinado segmento social popular, a cultura erudita normalmente é uma forma de produção elaborada por elites normalmente dominantes e é destinada ao consumo dessas mesmas elites dominantes”.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 17 de setembro de 2023.