Na data em que se comemora o 'Dia Nacional da Consciência Negra', o movimento quilombola na Paraíba tem mais uma comunidade certificada formalmente pela Fundação Cultural Palmares. A partir desta segunda-feira (20), a comunidade Cacimba Nova, localizada no município de São João do Tigre, no Cariri paraibano, está certificada formalmente como remanescente de quilombo. A Portaria 299, de 16 de novembro de 2017, será publicada nesta terça-feira (21) no Diário Oficial da União (DOU), data em que entra em vigor. Tramita na unidade do Ministério Público Federal (MPF) em Monteiro (PB) inquérito civil para apurar dificuldades enfrentadas pela comunidade quilombola de Cacimba Nova, entre elas a ausência de agente de saúde, inexistência de fonte de água potável e famílias em risco alimentar.
No âmbito do procedimento extrajudicial, o MPF realizou visitas à comunidade e à prefeitura de São João do Tigre. Buscou o apoio da Associação de Apoio aos Assentamentos e Comunidades Afro-descendentes da Paraíba (Aacade-PB) para intermediar o contato com a Fundação Palmares. Para receber o certificado, a comunidade enviou à fundação documento no qual integrantes das 87 famílias que habitam a área reconhecem que são descendentes dos negros escravos que habitavam a região há, pelo menos, 200 anos.
De acordo com a presidente da Aacade-PB, Francimar Fernandes, com a Certidão de Autodefinição expedida pela Fundação Palmares para Cacimba Nova, já são 39 comunidades remanescentes de quilombos certificadas no estado. “A certificação de Cacimba Nova vem se somar à luta e resistência dos quilombos da Paraíba. A cada comunidade reconhecida, aumentam os desafios para a conquista dos direitos”, declarou Francimar. A entrega simbólica da certificação à comunidade ocorrerá em 28 de novembro, e terá a participação do procurador regional dos Direitos do Cidadão na Paraíba, José Godoy Bezerra de Souza.
Autorreconhecimento
Para o Ministério Público Federal, o autorreconhecimento da comunidade tem natureza declaratória suficiente para que sejam iniciadas as tratativas de acesso às políticas públicas destinadas aos remanescentes de quilombos. Assim, enquanto o processo de certificação tramitava na Fundação Cultural Palmares, o MPF participou de reuniões com parlamentar representante da bancada federal paraibana e com representante da Secretaria de Estado do Desenvolvimento Humano da Paraíba com vistas à efetivação das políticas públicas para a comunidade. O órgão também se reuniu com representante da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) para o levantamento científico do histórico da comunidade remanescente de quilombo de Cacimba Nova.
História
A origem da comunidade remonta à história de Joana Batista, negra encontrada exausta, ao pé de uma cerca, em processo de fuga e perseguida por cães. Resgatada por pessoas da região, a escrava fugida permaneceu na área, onde, posteriormente, constituiu família e muitos anos depois comprou o terreno por 55 mil réis. A partir de Joana Batista foram surgindo todas as 87 famílias que hoje vivem em Cacimba Nova. A história da comunidade está sendo resgatada pelo jovem quilombola e estudante Josiel Alves, através de pesquisas em livros e entrevistas aos moradores mais antigos.
Sem computador, Josiel Alves anota em um caderno tudo o que lê e escuta. Quando ganha a confiança dos mais antigos e eles se dispõem a falar, o jovem liga o celular e grava a entrevista. Dessa forma, já conseguiu reconstituir a genealogia das três principais famílias da comunidade Cacimba Nova: Elisbão Paulo, Caetano e Tute. O resgate histórico já feito pelo estudante está registrado em relatório produzido pelo corpo técnico do Ministério Público Federal.
Há quatro anos, a comunidade começou a se organizar a partir da liderança da rendeira quilombola Maria Ventura. Ela contou que sempre se perguntava por que as outras comunidades da região, como Cacimbinhas, tinham sempre fartura e progresso, enquanto Cacimba Nova persistia no esquecimento e sem condições mínimas de subsistência.
A comunidade fundou a Associação Quilombola Rural de Cacimba Nova e Adjacências e, em 8 de outubro de 2017, numa reunião da associação, que teve como principal ponto de discussão o requerimento de reconhecimento de autoatribuição da comunidade remanescente de quilombo, foram coletadas as assinaturas posteriormente encaminhadas para a Fundação Palmares com o pedido formal de reconhecimento. Além dos membros da comunidade, compareceram à reunião representantes do MPF, o prefeito e os secretários de Agricultura e Ação Social do Município de São João do Tigre, e uma vereadora.
Sobrevivência
Conforme o relatório do MPF, tradicionalmente a comunidade vivia da agricultura, principalmente da colheita de algodão, mas também de pequenas roças de feijão, milho, fava e jerimum. No entanto, devido às constantes secas, as roças foram se tornando improdutivas, e as tentativas de plantio realizadas nos últimos anos falharam. Hoje, observa-se, em todo o território, a presença de caprinos, animais que conseguem se adaptar muito bem ao terreno acidentado existente na região.
Atualmente, a renda da comunidade vem de benefícios ou programas sociais advindos do governo federal, como aposentadoria ou bolsa família. Alguns são também beneficiários dos programas do leite. Não há outra fonte de renda, à exceção de duas pessoas da comunidade que prestaram concursos públicos e hoje são servidores municipais.
Mortes por fome
Conforme relatos obtidos pela equipe do Ministério Público Federal durante visitas ao quilombo, antes do advento dos programas sociais, as pessoas experimentaram intensas privações e uma rotina de enfrentamento à fome. Os mais velhos da comunidade relataram que muitas vezes tinham para comer apenas farinha, quando tinham. Também se alimentaram muitas vezes da fruta do alastrado, cacto típico da região, para sobreviver. No entanto, nem todos tiveram essa sorte e há o registro de, pelo menos, duas pessoas da comunidade que morreram de fome.
Fashion Week
As mulheres da comunidade são, em sua quase totalidade, rendeiras, e trabalham com a confecção de roupas e objetos de cama, mesa e banho de renda renascença. Os trabalhos são vendidos por atravessadores, principalmente do estado de Pernambuco, e já foram comercializados até mesmo fora do Brasil. Em 2014 foram levados ao São Paulo Fashion Week, onde foram expostos ao lado de imagens de mulheres da Comunidade Cacimba Nova. A maior parte do benefício das vendas, contudo, ainda vai para os atravessadores. As mulheres da comunidade vendem suas peças a um preço bastante inferior ao seu valor de venda final, permanecendo os seus rendimentos, dessa forma, bem abaixo do apurado com o seu trabalho.
Preconceito
A discriminação, o isolamento e opressão em razão da cor fazem parte da história da comunidade. As crianças que estudam na comunidade vizinha não raras vezes chegam em casa relatando episódios em que foram alvo de preconceito. Segundo os relatos, há uma histórica oposição entre Cacimbinhas, a comunidade dos brancos mais próxima (distante apenas 4 quilômetros) e Cacimba Nova, o sítio dos negros, identificados pejorativamente como os “nêgo de Cacimba Nova”.
Embora tenham condições físicas e geográficas semelhantes, Cacimbinhas desenvolveu-se de forma bem mais acentuada, tendo restado a Cacimba Nova o isolamento e o esquecimento. Os atuais habitantes dizem que, embora minimizado, o preconceito continua a existir, e é presente na vida mesmo dos mais jovens, sendo sentido, por exemplo, pelas crianças que cursam o ensino fundamental na escola de Cacimbinha ou pelos que demandam atendimento no posto médico.