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Pensar - Cultura

Da agricultura à arte digital

publicado: 18/09/2023 09h42, última modificação: 18/09/2023 09h42
Criação de códigos de expressão essenciais para a existência humana
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Aos 60 anos, Mestra Penha, que reside no município de Santa Rita, é uma referência na cultura popular e continua, hoje, usando o aboio para contar sua história nas plataformas de streaming - Foto: Renan Martins

por Joel Cavalcanti*

Quando Mestra Penha tinha cerca de 10 anos, ela ia trabalhar cortando cana-de-açúcar e via o seu pai do alto de um cavalo conduzir as cabeças de gado para o pasto na fazenda do patrão. Uma rotina diária que começava logo cedo pela manhã, que já vinha quente. Com o nascer do sol, o som que cortava o dia era o da vocalização arrastada e melódica que seu pai produzia para tanger o boi. Ainda criança, Mestra Penha Cirandeira só podia ouvir aquelas interjeições rústicas feitas de improviso. “A gente morava na Usina Santa Helena [em Sapé]. Eu escutava ele aboiando, cantando enquanto trabalhava. Foi lá onde eu aprendi a tocar bombo e ganzá com ele. Quando era de meio-dia, a gente trazia de volta para casa o gado para tomar água”, lembra a artista paraibana.

"Eu escutava ele (seu pai) aboiando, cantando enquanto trabalhava. Foi lá onde eu aprendi a tocar bombo e ganzá com ele. Quando era de meio-dia, a gente trazia de volta para casa o gado para tomar água" Mestra Penha Cirandeira

Aos 60 anos e sendo uma referência na cultura popular, Mestra Penha mora em Várzea Nova, no município de Santa Rita, e continua aboiando seu canto que, ao invés do gado, hoje conduz, através da música disponível nas plataformas de streaming, os relatos de sua vida com o trabalho no roçado, no mangue, na olaria e nas danças dos terreiros da usina, onde se criou. “Minha vida é um romance/ de tristeza e ilusão/ parece que o destino veio me trazer traição/ Minha esperança é perdida/ Se eu cantar a minha vida/ Dói em qualquer coração/ Já amei e fui amado/ Já bebi bem satisfeito/ Já perdi a mocidade/ Já tive tudo que eu tinha direito/ Minha esperança é perdida/ Se eu cantar a minha vida/ Vai doer dentro do meu peito”. É como canta o aboio a dona da voz potente enquanto domina com primor o toque de sua zabumba.

Esses aprendizados e heranças ancestrais são as marcas que foram recebidas por Mestra Penha diretamente de seu pai, José Francisco do Nascimento, oriundo do Quilombo de Caiana dos Crioulos, em Alagoa Grande. Já a mãe, Maria Eunice, tem raízes indígenas. Ela ensinou à filha o conhecimento passado de geração em geração sobre o segredo das marés e sobre como pegar marisco, unha-de-velho e sururu. Com esse conhecimento que vem da convivência de antepassados com a natureza e a elaboração criativa disso tudo em arte, Mestra Penha é só um dos melhores exemplos de quem une o sentido do termo cultura como criação de códigos de expressão essenciais para a existência humana, com o seu sentido mais seminal, que está associado à agricultura e ao cultivo da terra e manejo dos bens naturais. Uma origem que deve orgulhar a qualquer artista, popular ou erudito.

Raiz cultural: o plantar, o nutrir e o colher

“Conheço da cana, da agricultura, né? Negócio de roçado, conheço tudo”, afirma Mestra Penha. “Eu me sinto feliz cantando, tocando. É, eu tá em cima de um palco, e o pessoal tudo fazendo a roda, cantando. E quando eu termino, o povo me aplaude. É muito lindo, eu gosto demais. Eu amo a cultura, eu amo o que eu faço”. O plantar, o nutrir e o colher se desenvolveram em seus significados figurativos para se referir também a qualquer tipo de cultivo, não apenas o agrícola. Foi através do cuidado envolvido no trato com as plantas e animais que a acepção chegou a abranger o intelecto humano e até a criação de obras de arte. Uma dança, um poema ou uma sinfonia compartilha dessa mesma ideia primária que foi fundamental para a evolução humana. Há 50 mil anos, os seres humanos eram verdadeiros especialistas na arte da sobrevivência e foi por causa da agricultura e tudo que veio dela que a espécie humana conseguiu promover um salto evolucionista e chegar à Revolução Científica.

Os seres humanos, especialistas na arte de sobreviver, evoluíram à Revolução Científica a partir da agricultura 

É fácil ter uma percepção arrogante para com os ancestrais, mas isso é uma ignorância. Eles possuíam um conhecimento profundo do seu território e estavam completamente sintonizados com o ambiente à sua volta, retendo apenas na memória informações detalhadas sobre plantas e animais. Em termos de aptidão física, seus corpos eram comparáveis aos dos atletas contemporâneos. Seus cérebros possuíam um volume maior que os demais humanos. Coletivamente, o homem detém mais conhecimento atualmente, mas, como indivíduos, os ancestrais eram superiores. Entretanto, cerca de doze mil anos atrás, em várias regiões, os seres humanos deram início à agricultura, o que trouxe uma transformação rápida e abrangente para o desenvolvimento de novas habilidades, inclusive as artísticas.

“De modo geral, na teoria antropológica, a cultura é compreendida como a ‘segunda natureza’ da humanidade. Ou seja, nossa singularidade na existência é dada pelo aspecto tipicamente cultural de nossa organização social. Esse aspecto é nossa capacidade de simbolizar, de atribuirmos sentidos abstratos que interferem no mundo material e no modo como nos relacionamos com ele”, explica o doutor em Antropologia Estêvão Palitot. Com experiência na área de Antropologia e Sociologia da Cultura, ele dá um exemplo: “Nós e nossos primos chimpanzés somos animais sociais e compartilhamos determinados aspectos de linguagem e cognição. Mas apenas a humanidade consegue distinguir a diferença entre a água do rio, a água benta e a água destilada. Ou seja, essa é a única capacidade que a cultura nos permite enquanto uma natureza específica”.

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"Na teoria antropológica, a cultura é compreendida como a ‘segunda natureza’ da humanidade. Ou seja, nossa singularidade na existência é dada pelo aspecto tipicamente cultural de nossa organização social" Estêvão Palitot - Foto: Divulgação

A formação do entendimento sobre o que é cultura nasce da associação do gesto de afagar a terra, por conhecer os desejos da terra. Como na letra de Chico Buarque: “Cio da terra, a propícia estação/ E fecundar o chão”. Uma relação corporificada em Mestra Penha, e que é muito bem ilustrada pelas palavras poéticas do músico Adeildo Vieira quando fala sobre ela. “Toda essa história de vida é traduzida na crueza da sua voz, como uma foice cega capaz de cortar a cana que faz o melhor mel. Foice feita de aço que não quebra. A voz de Penha ecoa nos ouvidos da nossa existência nordestina. Uma existência bailada no coco de roda”.

O aumento da eficiência na agricultura sinalizou o surgimento da civilização. A oferta confiável e previsível de alimentos permitiu a acumulação desses itens em larga escala, permitindo a fixação em um território. Quanto mais organizados os homens se tornavam, mais eficazes ficavam. Aldeias deram lugar a cidades, cidades evoluíram para reinos, e reinos se transformaram em impérios. A interconexão entre os seres humanos expandiu-se, criando oportunidades para a troca de conhecimento. Foi só assim que, depois de mais de dez mil anos, que foi possível chegar à transformação no pensamento e na prática científica. Cultivando e gerando cultura.

Cientistas como Galileu Galilei, Johannes Kepler e Isaac Newton introduziram novas abordagens para a investigação científica, baseadas em observação sistemática, experimentação controlada e uso de métodos matemáticos. Essa revolução científica aconteceu em paralelo com o Renascimento, um movimento cultural e intelectual que promoveu a redescoberta dos textos clássicos gregos e romanos e incentivou o pensamento crítico, a criatividade e a exploração do conhecimento em várias áreas. Nos séculos XVI e XVII, esse movimento desafiou crenças tradicionais, incluindo as baseadas em autoridade religiosa, e promoveu uma abordagem mais empírica e racional para entender o mundo natural. Essa mudança cultural levou ao desenvolvimento da ciência moderna como se conhece hoje e uma transformação profunda na arte.

Adaptação mais rápida e flexível

Cultura permite que o conhecimento seja transmitido de geração em geração, sem precisar “reinventar a roda”


Se a agricultura é um marco fundamental para a evolução da espécie humana, é a cultura que permite uma adaptação muito mais rápida e flexível ao ambiente em que vivemos. E desde Charles Darwin que se sabe a importância da adaptação para a perpetuação da espécie. Enquanto a evolução biológica pode levar milhares de anos para produzir mudanças significativas nas características físicas dos seres humanos, a cultura permite que adaptação ao ambiente de forma muito mais rápida. Através da criação de ferramentas, técnicas agrícolas, métodos de sobrevivência e estratégias de cooperação, os seres humanos podem enfrentar com sucesso uma ampla variedade de ambientes e desafios.

É a cultura que permite que o conhecimento acumulado seja transmitido de geração em geração. Isso significa que cada nova geração não precisa “reinventar a roda”, mas pode construir a partir do conhecimento e das experiências das gerações anteriores. Esse acúmulo de conhecimento possibilita avanços significativos em ciência, tecnologia, medicina e outras áreas, levando a uma evolução cultural e tecnológica acelerada. A cultura também contribuiu ao moldar o comportamento social e a organização das sociedades humanas. Através da transmissão de normas, valores, regras sociais e éticas, a cultura estabelece padrões de comportamento que afetam diretamente o modo como as pessoas interagem umas com as outras. Esse comportamento social influencia a formação de laços sociais, relações familiares, estrutura de poder e cooperação em comunidades.

“Meu pai cantava esse aboio, mas tirei ele de um jeito diferente para cantar sobre a vida que eu passei. Ficou meio doidinha, mas fui eu mesma que inventei”, diz Mestra Penha, logo depois de cantar o aboio ‘Minha vida é um romance’. “Ele tinha cinco filhos, mas ele só levava eu quando saía. Eu era a mais interessada nas músicas e nos cantos dele. Quando era no sábado e no domingo, que ele gostava de tomar uma cachaça, entonces ele me colocava na garupa do cavalo. Eu segurava na cintura dele e era o cavalo que trazia a gente para casa, porque já sabia o caminho”. Sem a cultura não haveria linguagem e comunicação, fundamentais para o compartilhamento de informações, de ideias complexas, para a construção de identidades culturais.

“Cultura e arte são duas dimensões intimamente relacionadas. Mas muitas vezes incorremos no erro de associar esses termos com erudição e escolarização, reproduzindo visões etnocêntricas ou elitistas que caracterizam apenas um determinado grupo como detentor e herdeiro de todas as formas válidas de cultura e arte, enquanto outros seriam bárbaros desprovidos de refinamento”, aponta Estêvão Palitot. “Em termos antropológicos todos os grupos humanos são criadores e portadores de cultura e de suas manifestações estéticas. A hierarquização imposta nesse sentido será sempre classista, colonial e racista, ao tratar alguns grupos como mais evoluídos que os outros. É preciso estarmos atentos a esses perigos. A chamada ‘civilização ocidental’ se construiu justamente a partir da estigmatização, exotização e subalternização das outras humanidades e da própria natureza”.

Só assim foi possível criar uma rede de colaboração entre os seres humanos em escala global. À medida que as sociedades se encontram com outras culturas, ocorrem trocas culturais, empréstimos e assimilações, o que contribui para a diversidade cultural e o surgimento de novas ideias e práticas. A cultura é essencial para a existência humana, pois permite que as pessoas se conectem e compartilhem experiências comuns. Ela influencia a maneira como se comunica, seja por meio da linguagem falada, escrita, arte, música, dança ou outras formas de expressão.

Além disso, a cultura também desempenha um papel significativo na forma como os códigos de expressão são criados e compreendidos. Por exemplo, diferentes culturas podem ter idiomas únicos, com palavras, frases e significados específicos que refletem sua visão de mundo e valores. A cultura também pode afetar a maneira como a arte é produzida e apreciada, com estilos e temas variados que refletem a diversidade cultural. Só no século 19 que o termo cultura se tornou ainda mais abrangente, incorporando as áreas das artes, literatura, música, filosofia e outras disciplinas humanísticas. Na era moderna, a noção de cultura também se estendeu para o campo da tecnologia.

Impacto da tecnologia na forma de pensar

Os instrumentos e suportes tecnológicos têm tido um impacto profundo na forma de pensar, produzir e divulgar obras artísticas em diversas formas de expressão. Isso tem contribuído para refletir como os valores, as práticas e as identidades estão relacionados ao uso e ao desenvolvimento de tecnologias. A cultura digital, por exemplo, refere-se às formas de comportamento, comunicação e interação que surgiram com o advento da tecnologia digital. Isso inclui a maneira como as pessoas se comunicam on-line, participam de redes sociais, compartilham informações e consomem mídia digital. A cultura digital também abrange fenômenos como memes, tendências virais e até mesmo novas formas de expressão artística que surgem nesse ambiente.

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Luana Flores - Foto: Natália Di Lorenzo

A tecnologia proporciona ferramentas e recursos avançados para a criação artística. Softwares de design gráfico, edição de vídeo, música digital, modelagem 3D e muito mais permitem que os artistas explorem novas fronteiras criativas e produzam obras complexas e sofisticadas. A internet oferece um vasto acesso a recursos, referências e informações para artistas. Isso facilita a pesquisa, a inspiração e a coleta de material para projetos artísticos. É dessa água que bebe a cantora e compositora paraibana Luana Flores. Como beatmaker e percussionista, ela traz uma roupagem futurista para as tradições rítmicas do Nordeste, como o coco e a ciranda da Mestra Penha, e as expressões da oralidade característica das benzedeiras e dos aboios. Sua musicalidade parte da fusão entre o eletrônico e os ritmos da cultura popular. Sem a tecnologia que ela explora, a persona artística de Luana Flores seria completamente diferente.

“Normalmente, a gente associa tecnologia a equipamentos eletrônicos, internet e robôs. Mas acho interessante pensar que os ritmos de nosso território também são manifestações de tecnologias ancestrais. O coco não é só um ritmo. Ele é memória, é tecnologia, é ciência, é conexão espiritual, é o conhecimento que vai ser passado por gerações. Imagine criar instrumentos a partir de uma árvore, relembrar melodias de nossos antepassados e trazer para o digital, como estamos fazendo com a música, o audiovisual e a dança. Essa simbiose é um movimento de consequência dos desdobramentos da contemporaneidade que caminha para um novo pensamento”, explica a artista.

Luana Flores é uma artista de seu tempo e defende valores humanos que são sacudidos pela cultura tecnológica. Essa percepção de cultura se refere ao conjunto de valores, crenças e práticas que estão relacionados ao uso de tecnologias em uma determinada sociedade. Isso inclui a forma como as pessoas adotam ou resistem a novas tecnologias, bem como as normas e as expectativas sociais em torno do uso de dispositivos eletrônicos, aplicativos e plataformas. Ela faz isso expandindo as suas possibilidades criativas, mesclando várias mídias e técnicas em suas obras, criando híbridos de arte digital que são facilitados pela tecnologia.

"Normalmente, a gente associa tecnologia a equipamentos eletrônicos, internet e robôs. Mas acho interessante pensar que os ritmos de nosso território também são manifestações de tecnologias ancestrais" Luana Flores

Uma coisa é certa. Ainda se está no início do processo de revolução da arte pelos meios tecnológicos e digitais. Isso inclui instalações de arte interativa, realidade virtual (VR) e arte generativa, que acontece quando algoritmos são usados para criar arte em tempo real. A tecnologia também possibilitou o surgimento de novas formas de expressão artística, como arte de realidade aumentada (AR) e arte de inteligência artificial (IA). Elas exploram as fronteiras entre arte e tecnologia, e são múltiplas: software art, net-art, glitch-art, machine learning, arte cibernética, escultura digital, game-art, hologramas, performance transmidiática, arte hacker, boomerang e até GIF animado e meme, entre muitas outras linguagens.

A tecnologia permite que artistas acessem mercados globais de arte, conectando-se a colecionadores, galerias e compradores em todo o mundo. Isso levou a criação de NFTs, que transformou o mercado de obras de artes digitais. Essa tecnologia que vem na esteira do bitcoin cria uma representação digital única de um item exclusivo, que pode ser digital – como uma arte gráfica feita no computador – ou física, a exemplo de um quadro. Além de obras de artes, músicas, itens de jogos, momentos únicos no esporte e memes podem ser transformados em um NFT. Esse mercado de certificados digitais de propriedade movimentou apenas entre janeiro e setembro de 2021 cerca de US$ 13,2 bilhões.

A relação entre tecnologia e arte é dinâmica e continuará a evoluir à medida que novas inovações tecnológicas surgirem. “Estamos em um movimento de democratização dos saberes digitais. Ainda estamos caminhando em direção à nossa autonomia. As conexões digitais com as tradicionais vêm gerando um movimento interessante de novas criações e possibilidades de nossas tecnologias digitais e ancestrais”, analisa Luana Flores. “Quero ser essa ponte entre passado e futuro, propondo novas narrativas e conectando com as novas gerações através da inserção desses tipos de sonoridades mais modernas”. Da agricultura à “criptoarte”, produzir cultura é da natureza do ser humano.

 

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 17 de setembro de 2023.