É difícil para muitas famílias compreender o pouco convencional desejo de uma pessoa, ainda em vida, decidir deixar seu corpo para estudos da ciência. Os familiares tendem a não aceitar o fato de ter o corpo de um ente querido sendo manuseado por estudantes universitários durante anos.
No entanto, a professora Amira Medeiros, do Departamento de Morfologia do Centro de Ciências da Saúde (CCS), da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), explica que esse pensamento tem mudado. Em países da Europa, por exemplo, as universidades não sofrem mais com a falta de doações de corpos. E já no Brasil, em estados do sul do país, as pessoas estão mais conscientes da necessidade.
“O doador, quando ele vem até nós, uma das nossas perguntas é se ele quer algum cuidado específico com o corpo. O último doador que veio, por exemplo, disse que estava doando o corpo porque considerava uma bobagem desperdiçá-lo”, afirma Amira.
Apesar do desapego, há ética e respeito no manuseio de todos os corpos doados à universidade. A conscientização dos alunos – futuros médicos, biomédicos, enfermeiros, dentistas, fisioterapeutas etc. – é essencial, e a professora ressalta que comportamentos imaturos, a exemplo de piadas, tem diminuído ao longo do tempo.
“A gente também tem que trabalhar com os nossos alunos essa questão do respeito, da ética, e de ter realmente esse compromisso de estudar com zelo, cuidar, respeitar, honrar esses corpos. A doação é como um servir depois da morte, é muito digno. É uma ressignificação muito grande da morte”.
De acordo com Amira Medeiros, que também é coordenadora do Programa de Doação de Corpos (PDC) da UFPB, a diferença na hora de estudar é muito clara para o aluno de saúde. “É possível estudar dissecando, estudando os vasos, os nervos, os músculos, vendo as diferenças, podendo entender essas relações entre os órgãos, é extremamente importante. Principalmente para quem vai realmente atuar no corpo, e nisso entram principalmente os profissionais da área médica”, avalia.
Aproximadamente mil alunos da UFPB são beneficiados com as aulas de Morfologia. Esses estudantes pertencem a 12 cursos, sendo 11 deles da área da saúde e um – o Curso de Psicologia – da área de humanidades, vinculado ao Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA).
Segundo ela, o estudo com o corpo humano contribui para aqueles que trabalham com exames de imagens. “Entender essa anatomia profundamente é extremamente relevante no sentido de formação profissional, realmente capacitada para lidar principalmente com os que estão diretamente ligados ao corpo humano. Então, é extremamente relevante. Quando você estuda no objeto de resina, eles ajudam a entender inicialmente, mas que não tem como comparar em hipótese alguma. Em um coração humano, por exemplo, você vai abrir as cavidades, mostrar os tecidos e mostrar diretamente as estruturas, na dissecação é assim”.
A professora explica, ainda, que a durabilidade de cada corpo varia entre dez e cinquenta anos, de acordo com a forma como ele chegou. Os corpos não reclamados, enviados pelo IML, normalmente sofrem um processo de decomposição pelo tempo de espera até serem doados. Já as doações permitem uma durabilidade melhor e proporcionam, ainda, uma maior qualidade para estudo.
“A gente tem peças aqui de quarenta, cinquenta anos, que foram feitas pelos primeiros professores aqui da Faculdade de Medicina, na turma de 1958. Então, é uma coisa de décadas, né? Pode ficar muito tempo, isso depende muito da utilização, da preparação, do que a gente está querendo mostrar. O problema maior é que, assim como aumentou o número de cursos nos últimos anos, também aumentou o número de alunos e a demanda ficou muito maior. Com isso, o desgaste dessas peças é muito maior. Principalmente as estruturas mais delicadas, por exemplo, a parte do sistema nervoso”.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 23 de novembro de 2023.