A expressão latina honoris causa, adicionada a um título de doutor, revela a razão pela qual essa láurea é concedida, no âmbito das instituições de Ensino Superior: em tradução aproximada, ela significa “por causa da honra” — ou seja, a trajetória inspiradora do depositário é a razão principal para a cessão do diploma. Como forma de reconhecer o legado da paraibana Elizabeth Teixeira, a Universidade Federal da Paraíba (UFPB) concederá, hoje, o título de Doutora Honoris Causa à essa ativista e líder campesina que se tornou centenária em 2025. A cerimônia, aberta ao público, acontecerá hoje, às 17h, no auditório da Reitoria, Campus I da instituição, situado no bairro do Castelo Branco, em João Pessoa.
Elizabeth estará presente no evento, conduzido pela reitora da universidade, Terezinha Domiciano, que contará com apresentações musicais do Coral Voz Ativa e do cantor João Muniz — eles interpretarão canções significativas como “Marcados para viver”, de Adeildo Vieira. Aprovado em maio, o título foi proposto por dois departamentos distintos, que tiveram os pedidos apensados em um único processo: um deles veio do Departamento de Ciências Sociais Aplicadas (Campus III, em Bananeiras), a partir de requerimento da docente Iranice Gonçalves Muniz; outro veio do Departamento de Educação (na capital), por meio das professoras Gislaine da Nóbrega Chaves e Maria do Socorro Xavier Batista.
Asseverando a importância desse evento, Maria do Socorro afirma que o diploma ratifica a atuação de Elizabeth na luta junto às Ligas Camponesas, movimento do qual fez parte e que liderou após o assassinato de seu companheiro e também líder político João Pedro Teixeira, em 1962. Representa ainda a resistência perpetrada contra seus opressores, antes e durante o Regime Militar no Brasil. “Reconhece, ainda, a importância dessa mulher que foi e é tão significativa até hoje para os movimentos sociais não só aqui no Brasil, mas também em vários outros países, como uma pessoa que deu tudo na sua vida em prol dos trabalhadores do campo e da reforma agrária”, avalia a docente.
Lian Gaia, bisneta de Elizabeth que reside atualmente no estado do Rio de Janeiro, também celebra o título da centenária. Ela sustenta que ter acesso a esse diploma, mesmo sem ter passado pelo ensino regular numa instituição de Ensino Superior, é uma resposta aos latifúndios aos quais ela se opôs e a outras formas de opressão que ferem direitos fundamentais dos brasileiros. “Esse título é para o povo! Para a sua cidade natal que testemunhou tamanha revolução e para todos os camponeses dessa terra chamada Brasil. Para Elizabeth mesma, em vida, com seus 100 anos de idade, e para meu bisavô, João Pedro Teixeira, para que sua memória não seja jamais esquecida”, declara.
“Eu Marcharei na Tua Luta!”
Nascida em Sapé, em fevereiro de 1925, Elizabeth envolveu-se com João Pedro em meados dos anos 1940, mas não apenas afetivamente: a jovem enveredou também na luta das Ligas Camponesas, organizações populares com capilaridade no interior do país que pleiteavam a reforma agrária. O romance não foi visto com bons olhos pelo pai da moça, o comerciante Manoel Justino. Segundo relato biográfico no livro “Eu Marcharei na Tua Luta!”, organizado por Lourdes Maria Bandeira, Neide Miele e Rosa Maria Godoy Silveira, o machismo de Justino, que chegou a impedir a filha de concluir os estudos, precipitou a fuga do casal, que passou a viver junto desde então.
Eles constituíram um lar em um sítio na comunidade sapeense de Barra das Antas, onde hoje está instalado o Memorial das Ligas e Lutas Camponesas. Tiveram 11 filhos: Marluce, Abraão, Isaac, Marta, Paulo, Maria das Neves, Maria José, Carlos, José Eudes, João Pedro (Peta) e Marinês. Mas o assédio de Manoel Justino não cessou. Ele decidiu levar a cabo um imbróglio judicial que envolvia o terreno onde sua filha vivia com João Pedro. Este rumou para João Pessoa, na tentativa de sanar o problema, mas acabou assassinado no meio do caminho. O suposto mandante, um latifundiário, escapou do processo pela imunidade parlamentar; já os suspeitos da execução, dois policiais, acabaram sendo absolvidos.
No início da década de 1960, o realizador paulista Eduardo Coutinho, que, na juventude, era vinculado à União Nacional dos Estudantes (UNE), decidiu registrar a história de Elizabeth e João Pedro num longa-metragem que mesclava ficção e documentário. Os ativistas que testemunharam a atuação das ligas em Sapé interpretariam, como atores, os tipos reais envolvidos na tragédia: Elizabeth daria vida a si mesma, enquanto o companheiro João Mariano da Silva faria as vezes de João Pedro no roteiro de “Cabra Marcado para Morrer”. A empreitada não chegou a ser concluída: com o Golpe Militar de 1964, a equipe foi perseguida e teve de fugir com as latas de filme, fotos e o roteiro.
Elizabeth teve que abandonar, momentaneamente, o ativismo político para escapar da prisão e, possivelmente, da morte: assumindo o nome falso de Marta, teve de se afastar de parte de sua prole e permaneceu escondida durante o período mais violento da Ditadura, trabalhando como lavadeira e professora. No fim dos anos 1970, graças à anistia, Coutinho decidiu retomar o projeto interrompido de “Cabra Marcado para Morrer”, reencontrando Elizabeth; por meio do documentário e da abertura política dos anos 1980, ela recuperou a identidade ocultada. Essa trajetória foi remontada na edição de fevereiro do Correio das Artes, suplemento literário de A União, publicado em comemoração ao centenário.
Doutora na prática
A reportagem entrou em contato com especialistas e admiradores de Elizabeth com um questionamento: o que faz a ativista ser, na prática, uma Doutora Honoris Causa? O músico Adeildo Vieira, que compôs “Marcados para viver” tendo como inspiração a vida da campesina, atesta que, com esse diploma, o Ensino Superior se curva diante do saber popular de uma pessoa que nunca desistiu de lutar por seus ideais, que permaneceram imutáveis em um século: “A UFPB reconhece o que ela representa hoje, não somente para o movimento agrário, o movimento dos trabalhadores sem terra, mas como inspiração para todas as lutas em prol da dignidade humana, contra a exploração e o arbítrio”.
A professora e historiadora Lúcia Guerra destaca sua trajetória na direção das Ligas Camponesas e no pleito pela vaga de vereadora, que não venceu. Com o Golpe de 64 e os desafios impostos pelo regime de exceção no país, ela teve que buscar alternativas para permanecer escondida, até ser localizada por Coutinho, no estado do Rio Grande do Norte, em 1981: “Toda a vida dela demonstra um tirocínio de muita luta, de muita capacidade de sobrevivência. Enfrentar toda a perseguição durante a Ditadura, de conseguir resistir a tudo isso. Toda uma vida que ela teve que ter na clandestinidade, com a dispersão de todos os seus filhos, foi um preço muito alto que ela pagou para permanecer viva”.
Alane Lima, atual presidente do Memorial das Ligas e Lutas Camponesas, defende que o título concedido logo mais, nominalmente, a Elizabeth, converte-se em um título coletivo, por tudo o que ela representa na conquista e na busca de direitos básicos do trabalhador da terra. Por fim, ela aponta para o fato que, ao “tornar-se” Marta, ela assumiu uma nova identidade para preservar a outra que permanece viva, aos 100 anos: “Num momento em que a gente luta pela soberania do nosso país, Elizabeth chega para reafirmar o quanto é necessário haver unidade, mobilização e um povo consciente, para que a gente possa batalhar por nossa soberania com uma presença de vida, de dedicação que ela teve. Ela é inspiração”.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 18 de julho de 2025.