Notícias

Episódios de assédio são comuns em ônibus da capital: app promete combater o problema

publicado: 13/02/2017 21h52, última modificação: 14/02/2017 06h43
foto3.jpg

As vítimas de assédio em transportes coletivos de João Pessoa afirmam que os casos ocorrem geralmente durante horários de pico - Foto: Divulgação

tags: assédio , aplicativo , joão pessoa , nina , ufpb


Adrizzia Silva - Especial para A União

Às 7h, com uma sensação térmica de 35°C, os dois corpos seguem quase colados. De repente, a mulher sente uma ‘pontada’, vinda do homem logo atrás. Isso talvez não fosse um problema se ela tivesse consentido. Mas não foi assim que aconteceu. O cenário era no ônibus que fazia a linha Valentina - Centro. E o clima era de qualquer coisa, menos de sedução. Era de assédio.

“Primeiro, eu fiquei com medo. Depois, veio a raiva. Muita raiva”. Essa foi a definição da universitária Débora (nome fictício), 19 anos, para o que sentiu depois do abuso que sofreu no caminho para o trabalho, em novembro do ano passado. “O ônibus estava cheio, então eu tentei não ficar paranoica. Mas, numa curva, ele encaixou em mim, literalmente. Fiquei com medo, porque não conseguia ver quem era, não conseguia ver nada”.

Na linguagem popular, Débora tinha acabado de receber uma "encoxada". O relato expõe uma realidade que as mulheres vivenciam diariamente: o assédio praticado por homens no transporte público. Os casos são tantos e tão mais frequentes do que muitas pessoas imaginam, que algumas vítimas passam a tomar medidas como não sentar ao lado de homens nos coletivos e não dormir durante o trajeto.

“Nesse dia, eu sentei no corredor do lado de um homem e cochilei porque estava muito cansada. Acordei quando já tava chegando no conjunto residencial Geisel e ele estava com a mão no meio das minhas pernas, embaixo da minha bolsa. Fiquei confusa, não me mexi porque achei de início que ele tava tentando me assaltar. Até que eu me dei conta de que não era isso”.
Sem saber o que fazer, com medo de reagir, ela acabou empurrando a mão dele de forma discreta, “como se fosse sem querer”, o que fez efeito. O homem logo tirou a mão e, em seguida, desceu do ônibus. “Tenho nojo até hoje de me lembrar disso e pensar que eu não fiz nada, porque não sabia o que fazer! É bizarro pensar que alguém ‘pode’ encostar em você. Parece idiota, mas duvido que um homem já tenha passado por algo parecido”, reflete.

Luíza (fictício), 22, não imaginava que se tornaria mais vulnerável justamente ao sentar em um banco do coletivo parcialmente vazio. Em setembro do ano passado, ela pegou um ônibus ao sair da aula na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), às 22h.

“Sentei onde tinham duas cadeiras vazias. Tinha um cara de uns 35 anos, relativamente bem vestido, me olhando, mas ele estava na frente do ônibus. Depois, ele levantou e veio sentar ao meu lado. Fiquei em choque”, lembra. Bianca diz que tentou ficar o mais próximo possível da janela, e distante do homem. Quando ele deixou as mãos próximas da região genital, ela entendeu.

“Ele olhava para mim e cochichava coisas, como se estivesse falando sozinho, enquanto mexia a mão. Depois, ele começou a mexer a mão demais e eu vi que a calça dele estava aberta”. Mesmo assim, a primeira reação de Luiza foi a negação. Ela se recusava a acreditar que aquilo estava acontecendo.

“Quanto mais nervosa eu ficava, mais parecia que ele tentava esconder menos. Tentei ignorar, porque parecia que o meu nervosismo estava deixando ele excitado”, relata. Daí, ela não aguentou. Levantou e fez o resto da viagem até Manaíra, ao lado do cobrador, mas sob o olhar vigilante daquele homem que ela quer esquecer.

Para sorte de Luiza, o motorista parece ter compreendido que alguma coisa estava errada. “Pedi para ele parar o ônibus na frente de casa. Desci chorando. Minha vontade era de voar no pescoço dele, mas fiquei paralisada de medo”, contou. Casos como o dela, em que o homem chega a manusear o próprio pênis, são menos comuns. A maioria envolve homens roçando em mulheres desconhecidas, que trafegam em pé nos transportes coletivos, ou mesmo sentadas.

Medo, vergonha e certeza da impunidade

Apesar da revolta, nenhuma das vítimas denunciou o abuso à polícia. Elas sentem vergonha, medo, não querem desviar a rota que seguem quando pegam o transporte ou simplesmente não sabem como agir. Além disso, há um receio de que o agressor esteja armado e de que numa luta corporal ela leve a pior. Outro entrave é a dificuldade em identificar os agressores, visto que, em geral, são passageiros desconhecidos, o que desmotiva as mulheres a denunciarem.

“Um cara passou a mão em uma mulher no ônibus. Você acha que ela vai para a delegacia fazer um boletim de ocorrência, ficar três, quatro horas esperando? Ela tem que ir trabalhar, tem que ir buscar o filho na escola. Ela deixa para lá. Além disso, do que adianta ir à delegacia, se a primeira coisa que esse homem vai fazer é negar. E aí eu não sei o que pode ser pior, a violência do assédio ou a de ver que a denúncia não vai dar em nada”, indagou uma das vítimas.

A certeza da impunidade é tão grande, que para essas mulheres pesam a vergonha de ter sido vítima de uma investida sexual, o receio de ser julgada pela família e pelas pessoas ao redor, pelo policial que faz perguntas às vezes ‘estranhas’, como para onde a vítima ia ou que roupa vestia, como se ela fosse culpada por ter saído de casa usando uma saia ou um short curto demais.

A delegada titular da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher - Norte (Deam), Josenise de Andrade, explica que denunciar é importante porque a sociedade e o Estado funcionam à base de números. “O crime não existe enquanto gráficos não o provam. O procedimento é sempre fazer registro, até para ter controle disso”, afirmou, informando ainda que o índice de denúncias é muito pequeno em João Pessoa.

“Toda a sociedade sabe que o problema existe, mas as denúncias são pouco expressivas”, justifica Josenise, ponderando ainda que, na capital, alguns ônibus têm câmeras, o que pode facilitar na identificação dos agressores.

Nina será implacávelA estudante Simony César é a idealizadora do aplicativo "Nina", que promete ajudar a identificar os agressores

De olho nesse tipo de crime, um protótipo de aplicativo para smartphones voltado para o mapeamento dos casos de assédio e abuso sexual foi desenvolvido por estudantes do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba (IFPB) e da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). O projeto está em fase de conclusão e, quando estiver disponível, vai permitir às vítimas utilizarem o celular para registrar os casos em delegacias, evitando a subnotificação e contribuindo com os órgãos públicos responsáveis na investigação.

O aplicativo, chamado de ‘Nina’, inspirado na cantora americana e ativista Nina Simone, lembrada pela luta contra a violência de gênero, foi idealizado por Simony César, que atualmente é estudante de design gráfico do IFPB. Segundo a jovem, os usuários do programa terão acesso em tempo real a dados sobre os crimes. “Se você tem o aplicativo e está a um determinado raio, próximo a uma vítima, você recebe uma notificação sonora, dizendo que naquele ônibus próximo a você está tendo um assédio, por exemplo”, disse Simony. Outro recurso que deve estar presente no Nina, quando concluído, é o banco de dados para os usuários terem acesso a perfis com fotos e locais onde os crimes acontecem, facilitando a identificação dos agressores. “Esta funcionalidade só está disponível para o perfil da pessoa que presenciou o assédio. Aí você pode fazer um vídeo, de até 15 segundos, tirar uma foto e fazer um upload disso. Uma vez estando no banco de dados, a gente filtrando isso, pode até mapear maníacos que atuam em diversos trechos da cidade”, comenta a estudante.

Simony explica que o Nina age emergencialmente e preventivamente. Emergencialmente quando o app, em tempo real, emite um alerta de assédio para as pessoas no espaço próximo à vítima. Preventivamente porque as estatísticas geradas serão objeto de estudo para ação de segurança pública, políticas de empresas para incentivar a equidade de gêneros nos espaços e ascender o debate sobre a “normalização” da cultura do estupro na sociedade brasileira.