Na capital paraibana, os olhos que se acostumaram com o concreto ainda encontram refúgio na sombra generosa de árvores monumentais. Entre avenidas e praças, as gameleiras impõem-se como colunas vivas: copas largas, raízes aéreas que descem como braços abertos e galhos entrelaçados que tecem abrigos e memórias. Mais do que ornamento, essas representantes do gênero Ficus são guardiãs silenciosas de João Pessoa — estruturam as encostas, refrescam o ar, alimentam a fauna e enraízam as histórias nas veias da cidade.
“O gênero Ficus é um dos mais diversos e ecologicamente relevantes do reino vegetal. São cerca de 800 espécies espalhadas por regiões tropicais e subtropicais, incluindo as gameleiras brasileiras, que têm um papel essencial nas cidades”, explica o biólogo e consultor ambiental Ricardo Pontes. Entre suas principais características estão o látex branco e medicinal, as raízes aéreas abundantes e uma estrutura floral escondida — o sicônio — que abriga minúsculas flores e vespas polinizadoras, num sistema de polinização altamente especializado. “Cada espécie de Ficus, geralmente, depende de uma única espécie de vespa, e vice-versa. É uma das simbioses mais fascinantes da ecologia vegetal”, acrescenta o biólogo.
Em João Pessoa, as gameleiras não são apenas belas — são parte essencial da infraestrutura ecológica da cidade. Suas raízes profundas estabilizam encostas, evitam a erosão e promovem a infiltração da água da chuva, prevenindo alagamentos e fortalecendo o equilíbrio hídrico do solo urbano. “Elas evitam o colapso invisível que acontece sob nossos pés”, resume Pontes.
Ao mesmo tempo, suas copas densas atuam como guarda-sóis naturais, suavizando a luz inclemente do verão nordestino e criando microclimas mais amenos. “A transpiração das folhas aumenta a umidade do ar, o que é fundamental para o conforto térmico em cidades como a nossa”, complementa o biólogo.
A fauna urbana também agradece. Os figos alimentam aves como sanhaçus, bem-te-vis e maracanãs, além de morcegos e pequenos mamíferos. Os troncos e raízes entrelaçados viram abrigo, ninho e esconderijo. “As gameleiras são ecossistemas por si só”, resume Ricardo Pontes.
Além das espécies exóticas como Ficus benjamina, Ficus microcarpa e Ficus elastica, a Paraíba abriga ao menos 12 espécies nativas do gênero Ficus, adaptadas aos solos e climas da Caatinga e da Mata Atlântica. De acordo com Pontes, “essas espécies nativas são ideais para arborização urbana, pois interagem melhor com a fauna local e fortalecem corredores ecológicos”.
Plantas são símbolos vivos de cultura, medicina popular e ancestralidade
- O látex leitoso extraído das gameleiras é usado na medicina popular, para o tratamento de feridas e de problemas respiratórios | Fotos: Ricardo Pontes/Arquivo pessoal
O que seria de João Pessoa sem o verde das gameleiras? A pergunta é retórica, mas carrega uma provocação importante para os urbanistas e planejadores da cidade. “A gameleira não é só sombra, é memória, cultura e saúde”, defende Ricardo Vidal, arquiteto e urbanista, presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo da Paraíba.
Conforme o urbanista, as áreas verdes da cidade precisam ser vistas como uma infraestrutura essencial e não como espaços vagos a serem ocupados. “A presença dessas árvores ajuda a reduzir o estresse urbano, melhora a qualidade do ar, traz beleza à paisagem e regula o microclima local. É possível sentir isso, claramente, em trechos como a Avenida D. Pedro II, ao lado do Jardim Botânico — é como entrar em um outro mundo”, compara.
A relação da cidade com as gameleiras não se limita ao plano físico. Há nelas uma espiritualidade, uma força ancestral que atravessa gerações. Em religiões de matriz africana, por exemplo, algumas gameleiras são consideradas sagradas, espaços de culto e proteção. Essas árvores são espaços sagrados — pontos de oferendas, oração e resistência. “Elas acolhem não só a fauna, mas também os sentimentos humanos. Elas são como guardiãs — abrigam, acolhem, protegem. E isso reverbera na identidade das comunidades”, complementa Vidal.
Mesmo sob ameaça de desaparecimento — por mudanças no solo, excesso de concretagem e falta de planejamento —, a gameleira resiste. E o Poder Público tem a missão de garantir sua permanência. “A arborização urbana deve ser tratada como política pública estruturante. Plantar árvores é planejar o futuro da cidade”, diz o urbanista.
Além do valor simbólico, as gameleiras guardam saberes tradicionais. O látex leitoso, extraído com cautela, é usado na medicina popular para tratar feridas, inflamações e problemas respiratórios. Embora seu uso exija orientação profissional, os estudos sobre seus compostos bioativos têm avançado, apontando possibilidades promissoras na fitoterapia. “A ciência começa a decifrar o que os povos originários já sabiam há muito tempo”, reforça o biólogo Ricardo Pontes.
Raízes da identidade urbana pedem cuidado e proteção do Poder Público
Para Anderson Fontes, engenheiro agrônomo e diretor de Controle Ambiental da Secretaria Municipal de Meio Ambiente (Semam), preservar essas árvores é garantir a continuidade de uma história enraizada na identidade urbana. “A gameleira é, sim, um símbolo importante da nossa cidade. Embora o ipê-amarelo seja mais reconhecido como árvore símbolo de João Pessoa, a gameleira ocupa um lugar afetivo muito forte. Por sua imponência, pela sombra generosa, pelo conforto térmico que oferece, ela é admirada e valorizada pela população”, afirma.
Segundo o diretor, a prefeitura já realiza um mapeamento detalhado da arborização urbana, com foco especial em espécies nativas e centenárias. “Esse diagnóstico é feito diariamente por nossas equipes técnicas, que percorrem ruas, praças e canteiros para avaliar a saúde e a estrutura das árvores. Identificamos questões como quebra de galhos, inclinação, desenvolvimento do sistema radicular em relação às calçadas e condições fitossanitárias. Isso tem contribuído muito para o planejamento urbano e ambiental da cidade”, explica Anderson.
Esse trabalho técnico é conduzido pela Divisão de Arborização e Reflorestamento da Semam, que acompanha de forma contínua as árvores localizadas em áreas públicas, como vias, calçadas, canteiros centrais e praças. Com base nessas visitas e diagnósticos, a Semam não apenas orienta o plantio, como também aplica políticas de manejo corretas, especialmente para exemplares mais antigos. “Temos uma política específica de tratamento fitossanitário e de preservação voltada às árvores centenárias, entre elas as gameleiras”, pontua.
Monitoramento
Hoje, João Pessoa conta com alguns exemplares da espécie espalhados por bairros como Tambiá, Centro, Manaíra e Bessa — sendo cerca de 20 gameleiras monitoradas diretamente pela Semam em áreas públicas consideradas de destaque. “Temos a gameleira da Avenida Pombal, a do Jardim 13 de Maio, outras no Parque Solon de Lucena. Algumas são centenárias, outras não, mas todas são tratadas com o mesmo cuidado. O objetivo é garantir que essas árvores se mantenham saudáveis, crescendo bem e cumprindo seu ciclo de vida”, destaca.
Além do monitoramento, o Município tem buscado transformar essas árvores em marcos reconhecidos da identidade urbana. Já existe um artigo no Código Municipal do Meio Ambiente que prevê a imunidade ao corte para espécies de relevante interesse ecológico ou cultural. O mapeamento e o diagnóstico detalhado também servem de base para a formalização de processos de tombamento ambiental, conferindo ainda mais proteção jurídica a esses exemplares.
A valorização das árvores nativas é parte de uma política mais ampla de sustentabilidade. A cidade conta com um manual de arborização urbana, um programa ativo de produção de mudas no viveiro municipal e ações como o João Pessoa Cidade Mais Verde, que foca no plantio e na recuperação de áreas degradadas com espécies predominantemente da Mata Atlântica. “Hoje, 90% das espécies arbóreas plantadas pela Prefeitura são nativas desse bioma, e os 10% restantes são exóticas adaptadas ao nosso clima”, dressalta Anderson.
Diante da pressão do mercado imobiliário em áreas de expansão, a prefeitura também tem buscado equilibrar desenvolvimento e preservação. “Não se trata de impedir o progresso, mas de conciliá-lo com o meio ambiente. Em muitos casos, conseguimos redesenhar projetos para preservar árvores antigas no mesmo terreno. Também oferecemos compensações ambientais e promovemos mutirões de plantio com a participação popular”, enfatiza o diretor.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 10 de agosto de 2025.