Há pouco mais de 24 anos, a Paraíba perdia o cineasta Juremi Machado Bittencourt Pereira, mais conhecido por Machado Bittencourt, um dos precursores do cinema em Campina Grande. Machado Bittencourt morreu aos 56 anos, vítima de um acidente vascular cerebral (AVC), no dia 27 de abril de 1999.
Cineasta, fotógrafo, escritor, historiador, memorialista, jornalista e professor de cinema, destacou-se não só nas pesquisas realizadas, entre estudos e ensaios avulsos, mas principalmente em seus documentários que tinham uma preocupação clara com as questões históricas, com a memória material e simbólica dos sujeitos e lugares, de Campina Grande, da Paraíba, e do Nordeste.
“Mestre na arte cinematográfica, inclusive no longa-metragem, o professor Machado Bittencourt fazia também com maestria a fotografia e o jornalismo, de uma perfeição inigualável” frisou o Jornalista e escritor, Waldermar Duarte.
Bittencourt recebeu ainda o título de patrono da Cadeira 28 da Academia Paraibana de Cinema. Era membro do Instituto Histórico de Campina Grande (IHCG) e da cidade de Goiânia (PE). Foi coordenador do acervo inicial da exposição de abertura do Museu do Algodão, em Campina Grande, e presidente da Fundação Cultural Luiz Carlos Virgulino.
Machado Bittencourt nasceu em Piracuruca, uma pequena cidade do Piauí, no dia 3 de setembro de 1942. Filho de José Bittencourt Pereira (professor Bitte) e Francisca de Brito Machado Bittencourt (Francy, como era conhecida). Era casado com Célia Maria de Carvalho, com quem teve cinco filhos: Jucele, Francy, Januza, Camila e Dag. Estudou sempre em escolas públicas. Concluiu o primário em sua terra natal, no Colégio Estadual Zacarias de Góis, e o curso ginasial no Colégio Estadual de Campina Grande.
Em 1960, com apenas 18 anos, com uma ideia na cabeça e uma câmera na mão, ele foi residir em Campina Grande. E logo se identificou com o povo e com a história da cidade. Mesmo viajando por todo o Brasil, e às vezes pelo mundo afora, chegando a morar em outras cidades, nunca deixou de ter vínculos afetivos com os campinenses.
No final da década de 1960, Machado fazia o Curso de Direito na Universidade Regional do Nordeste (Urne) – hoje Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) –, em Campina Grande, e, devido às suas ações durante o período militar, acabou não terminando o curso, perdendo a matrícula em uma suspensão que durou por vários anos. Com isso, teve que ausentar-se para o Uruguai, segundo ele mesmo, “voluntariamente”, escapando, assim do Ato Institucional 5 (AI5), de 1968.
Ele chegou ao cinema através da fotografia, trabalhando na sucursal do Correio da Paraíba no ano de 1963, na qualidade de “foca”, ou seja, de iniciante. Nesse mesmo ano, começava a funcionar em Campina Grande a TV Borborema, uma das poucas televisões do interior do Brasil. Sem deixar o Correio da Paraíba e as máquinas fotográficas, Bittencourt se introduziu no mundo da televisão através da prestação de serviços como cinegrafista freelance. No começo, ele apenas filmava acontecimentos sociais, inaugurações e banquetes, mas logo o uso permanente da câmara o obrigou a proceder em um aprendizado melhor do cinema, lendo vários livros clássicos, entre eles as obras de George Sadoul.
Machado iniciou uma série de reportagens filmadas sobre a tese da descoberta do Brasil pelos fenícios, viajando por todo o Nordeste. Apesar das críticas dos analistas devido à ausência de qualidades do material filmado, ele não desistiu de fazer cinema e continuou sua luta.
Em 1966, inicia-se um período fértil de produção de filmes na Paraíba, graças ao incentivo do sucesso de ‘Aruanda’, de Linduarte Noronha, no início da década de 1960. Entre os realizadores estavam Paulo Melo, Ipojuca Pontes, Alex Santos, Virgínius da Gama e Melo e outros. Esse último convidou Machado Bittencourt para realizar a fotografia do filme ‘Contraponto Sem Música’.
Curso de jornalismo e uma nova fase da vida
Depois de trabalhar em João Pessoa durante cinco anos como fotógrafo freelancer e como produtor de sistemas audiovisuais, Machado decidiu fazer Jornalismo, no Curso de Comunicação Social da Urne, pois não desejava e também não poderia cursar Direito, pois sua matricula tinha sido cancelada. Inicia-se assim uma nova fase na vida de Machado Bittencourt, agora, cada vez mais ligado ao mundo da comunicação.
O seu retorno à cidade de Campina Grande foi marcado pelas filmagens do documentário ‘A Feira’, no ano de 1967, em parceria com Luiz Barroso. A feira pública de Campina Grande até hoje é uma das mais famosas do Brasil. Foi a primeira produção de Machado Bittencourt.
Iniciou suas atividades na Urne (primeiro como aluno e depois como professor) e percebeu a necessidade de trabalhar mais profissionalmente no ramo do qual escolhera viver, o mundo do jornalismo, da propaganda, da fotografia e do cinema.
Através do convívio com o mercado de trabalho mais estreito em Campina Grande, ligado quase que exclusivamente às empresas privadas, ele optou por trabalhar na oferta de serviços de produção publicitária da TV Borborema. Com isso, ele fundou no ano 1974 a Cinética Filmes Ltda. A empresa funcionou em Campina Grande até o ano de 1985. Representou um dos raros estúdios cinematográficos de bitola 16 mm que funcionou no país.
Segundo Linduarte Noronha, A Cinética foi criação aos moldes da Vera Cruz, respeitando as latitudes, mas a filosofia era empresarial. “Assustei-me, um dia, quando ele me levou a Campina Grande para ver sua empresa. Não acreditei. Era uma miniatura de cinema indústria, no bom sentido”, registrou um dia Linduarte Noronha.
A Cinética Filmes desenvolveu uma intensa atividade no campo da comunicação social, produzindo filmes destinados ao uso e transmissão na TV Borborema, além de documentários, reportagens, comerciais e vídeos institucionais. Com destaque para os longas metragens ‘Maria Coragem’ (1978) e ‘O Caso de Carlota’ (1982), esse sendo o primeiro longa-metragem em cores da história da sétima arte da Paraíba.
Rômulo Azevedo, jornalista e professor, destaca esse lado pragmático e muitas vezes inventivo do cineasta. “Machado não era um cinéfilo, era um fotógrafo que também adorava fazer filmes. Nunca conversei com Machado sobre cineastas e filmes, o negócio dele não era ‘ver’ era ‘fazer’. Cada um assimila o cinema de acordo com suas predileções, Machado, como todo bom fotógrafo, gostava de imprimir película, quanto mais filmar melhor”.
Havia uma parceria não oficializada entre a Fundação Regional do Nordeste (Furne) e a empresa. As instalações da Cinética serviram de laboratório para os colegas e, depois, alunos de Machado nas disciplinas de Técnicas de Cinema e Jornalismo Cinematográfico.
Machado Bittencourt produziu cerca de 200 filmes, entre documentários, ficções, reportagens cinematográficas, comerciais e propagandas políticas. Segundo o também jornalista Wills Leal, os filmes de Machado eram em sua maioria realizados com uma intensa improvisação, muitas vezes sem roteiros, apenas com “uma ideia na cabeça e uma câmera na mão, para usarmos a afamada máxima de Glauber Rocha”, e em condições materiais encontradas em cada momento. Sendo que as características gerais de linguagem de seus filmes eram quase sempre expostas de forma artesanal, com uma estética e técnicas primitivas.
No ano de 1985, Machado produziu o filme ‘Parahyba’, feito sob a encomenda da comissão do XIV Centenário da Paraíba. A película recebeu vários prêmios. Na primeira metade da década de 1980, Machado Bittencourt viveu uma crise financeira grave, que aliada aos problemas econômicos nacionais dos governos Sarney e Collor anos depois, fizeram-no mudar em parte as suas atividades no mercado publicitário.
Em meio às adversidades, Machado ainda foi um dos fundadores da Fundação Nordestina de Cinema (Funcine), que teve seu fim quando o governo Collor de Mello encerrou a participação da Embrafilme em 1990. Depois de ‘Parahyba’ ainda fez ‘Águas do São Francisco’, em 1993.
No fotojornalismo, ele registrou as primeiras imagens do ‘Massacre das Ligas Camponesas em Sapé’, durante a ditadura militar. Com a sensibilidade artística expressa em imagens manipuladas em laboratório, seus trabalhos em fotografia ilustram revistas como a Foto-Arte, Modem Photography, Iris e Photo, entre outras. Foram vários anos de exclusão, de 1985 a pouco mais 2004, quando sua memória foi revisitada.
Bittencourt trabalhou ainda para diversos jornais e revistas nacionais e internacionais, como a Veja e Manchete. Foi repórter dos seguintes jornais paraibanos: A União, Correio da Paraíba, O Norte; Jornal da Paraíba e O Momento.
Machado Bittencourt era considerado um sujeito extremamente dinâmico e pragmático. Um homem de ação. Suas atuações eram movidas acima das aparentes dificuldades existentes; seja no produzir, na comercialização de seus filmes, e outros produtos ligados à comunicação social na Região Nordeste. Seu empreendedorismo esteve sempre ligado a várias outras atividades do qual exerceu durante a vida. Um Machado Bittencourt múltiplo, realizador de várias atividades. Um artista multimídia, que também exercia funções de empresário.
Sua saída de Campina Grande para João Pessoa não proporcionou bons resultados. Machado não acompanhou as mudanças e acabou colecionando várias dívidas. Pouco a pouco foi se desfazendo dos equipamentos de sua Cinética.
Em 1968 recebeu uma das mais importantes premiações da fotografia mundial, a Medalha de Prata, no XX Salão Internacional de Arte Fotográfica de Bordeux. O seu filme mais premiado e considerado a sua melhor realização cinematográfica foi ‘Parahyba’, do ano de 1985. A película venceu os prêmios de melhor filme sobre a temática nordestina no Fest Céara, Prêmio de Melhor Fotografia no Fest Cine Maranhão e Menção Honrosa no Festival de Brasília, no ano de 1985. Foi premiado com ‘O Último Coronel’, como melhor filme produzido no Brasil na Jornada de Salvador em 1975; e em Campina Grande, com ‘Prensa de Algodão, da Prensa de Gutemberg’, foi vencedor do prêmio de seleção Embrafilme INC, também de 1975.
“Reverência à memória de Machado Bittencourt é homenagear a memória fotográfica da Paraíba. Ele eternizou com sua lente mágica as mais belas e expressivas da terra que adotou como laboratório para a revelação do seu imenso talento”, enfatizou um dia o jornalista Martinho Moreira Franco.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 9 de julho de 2023.