Jadson Falcão - Especial para A União
O universo dos games online fascina a milhões de pessoas em todo o mundo e parte desse encanto se dá pela possibilidade oferecida ao jogador de se tornar, no jogo, quem desejar, e fazer coisas que são impossíveis no mundo físico. Essa experiência diferente, no entanto, pode ser prejudicada por problemas bem conhecidos no mundo real, como o machismo e o preconceito contra as mulheres.
Apesar de representarem mais da metade (53,6%) das pessoas que se divertem com algum tipo de jogo eletrônico no Brasil - de acordo com a Pesquisa Game Brasil 2017 -, muitas delas sentem na pele, quase que diariamente, a discriminação e o assédio que permeia o mundo dos jogos. Por conta desses problemas, não é difícil encontrar jogadoras que optam por ocultar sua verdadeira identidade e acabam assumindo, no mundo virtual, personagens que sejam do sexo masculino.
“Eu lembro que a primeira coisa que chamou a minha atenção quando fiz a conta no jogo foi o fato de que, quando fui jogar com os meus amigos, um deles chegou para mim e falou que, por ter colocado o meu nome no personagem, eu já tinha começado errado. O meu nick - como são chamados os nomes dos personagens nos jogos - estava como Raissa Miles, e achei super curioso quando ele veio me alertar para modificar”, contou a universitária Raissa Valério, de 25 anos, que joga um dos games online de maior sucesso, o League of Legends, desde o ano passado.
O interesse de Raissa pelo game surgiu durante uma pesquisa realizada por ela para o Trabalho de Conclusão do Curso de Ciências Sociais, que tratará da indústria cultural e do universo dos cosplayers - público bastante frequente neste tipo de jogo -. Segundo a universitária, o League of Legends - que também é conhecido como Lol - é um jogo “bastante interessante que une diversas coisas e demanda estratégia”, mas que pode se tornar, em algumas situações, traumático.
Uso do nick
Ela relatou que o assédio dos jogadores é algo bastante temido pela comunidade feminina que participa do game, e contou que os xingamentos, e as piadinhas que vêm a diminuir a condição feminina, são ainda mais frequentes quando o nick “denuncia” que a personagem está sendo controlada por uma mulher.
“Conheço algumas meninas que colocaram o nome verdadeiro na personagem, mas que preferiram, depois, juntar moedas no jogo para poder trocar [o nick] e assim não deixar explícito que são mulheres. Quando estamos jogando elas não gostam que a gente fique se referindo a elas no feminino, exatamente para não dá a entender quem são, e isso já aconteceu também comigo. Hoje em dia tenho duas contas, uma em que estou no nível 30, e outra em que eu estou num nível mais baixo e fiz para aprender a fazer coisas que ainda não sei. Nessa conta mais recente, coloquei o nome totalmente aleatório, justamente para evitar esse tipo de situação”, desabafou.
A psicóloga Marcela An, de 27 anos, também é jogadora frequente de League of Legends desde o ano de 2015. Ela mantinha uma personagem no jogo com um nome feminino, mas também resolveu fazer a mudança do nick para o masculino, após vivenciar situações de assédio e ser “xingada de todas as formas possíveis”. Segundo Marcela, o fato de obter melhor desempenho em uma partida do que um jogador homem, ou o de errar em algo mínimo durante o jogo, já era suficiente para ouvir e ler coisas que iriam incomodar a qualquer pessoa.
“Se eu fazia alguma coisa errada, o povo já vinha falar que era porque eu sou mulher. No Lol existem situações em que todo mundo está jogando para matar uma personagem, e quando a gente mata, os jogadores já ficam dizendo que mulher não devia estar jogando, que mulher devia estar era na cozinha. Já aconteceu comigo também de algumas pessoas chegarem e dizer que se eu falasse com eles por telefone me dariam itens dentro do jogo, e outros chegaram até a pedir nudes. Esse assédio moral dentro do game é algo que já se tornou muito comum nos dias atuais”, afirmou. Para Marcela An, os jogadores que são homens, por formarem o público-alvo inicial para qual o jogo foi desenvolvido, consideram que tiveram “seu espaço invadido pelas mulheres”. Quando questionada se voltaria a jogar com uma personagem que tivesse seu próprio nome - ou algum outro nome feminino -, a psicóloga respondeu sem pestanejar que não. “Não tem condições”.
LGBT é alvo de homofobia em jogos e nas redes sociais
O preconceito nos jogos passa também pela questão da orientação sexual, e o universitário Lucas Nóbrega, de 22 anos, pode falar sobre o assunto. Ele é homossexual e conta que já passou por episódios de discriminação que ocorrem com frequência não apenas no ambiente dos games, mas também em grupos direcionados a esse tipo de conteúdo em redes sociais, como o Facebook.
“Geralmente eles fazem alguma piadinha e vêm me chamando de coisas pejorativas como viado ou alguma coisa do tipo, o que me deixa bastante ofendido. Outras vezes estou jogando com alguns amigos meus que também são gays, e aí quando eles leem nossas conversas no chat dos jogos já começam a tratar mal. Já vi dizerem que gay não é gente, e outras coisas mais pesadas, e já presenciei também pessoas dizendo coisas racistas e misturando todo tipo de preconceito. Isso te deixa bem chateado”, relatou.
Vida virtual
Para a professora universitária e pesquisadora do Grupo de Estudo e Pesquisa em Gênero e Mídia (GEM) da Universidade Federal da Paraíba, Glória Rabay, é necessário perceber como a realidade da vida em sociedade é refletida diretamente nos jogos virtuais. De acordo com ela, “os valores preconceituosos, machistas, homofóbicos e racistas permeiam toda e qualquer realidade em que nós estejamos, seja ela acadêmica, virtual, econômica ou cultural”.
“As meninas podem se proteger da forma que estão fazendo, que é se escondendo através de nomes masculinos, mas isso as protege somente no virtual, pois, infelizmente, reproduz no coletivo o machismo, ajudando a perpetuá-lo. É preciso que os meninos vejam que elas são tão competentes quanto eles, e, para isso, que elas reafirmem o nome feminino, mesmo que isso aconteça através de codinomes que inventem”, afirmou.
De acordo com a professora, é fundamental que as vítimas de assédio ou machismo nos jogos online denunciem os episódios à Delegacia da Mulher, para que, dessa forma, seja realizada não somente a investigação, mas também o registro de que o problema existe e incomoda as mulheres.
Segundo Glória Rabay, o debate a respeito de determinada questão tem o poder de mostrar à sociedade que um problema necessita ser exterminado. “É preciso sim fazer essa denúncia, e é preciso também, para que a presença delas possa ser percebida, que elas se coloquem como mulheres dentro desse universo masculino”, finalizou.
MEL: Combate deve começar na escola
Na opinião do professor e militante do Movimento do Espírito Lilás (MEL), Fernando Araújo, o preconceito ou a discriminação virtual, também chamada de cyberbullying, funciona como forma de se reafirmar os valores de determinada sociedade. De acordo com ele, a discriminação contra os LGBT no mundo online é frequente e começou a ser percebida mais claramente a partir do surgimento da antiga comunidade do Orkut.
“O menino que é homossexual muitas vezes sofre preconceito virtual por se deparar com jogos de hétero, entre aspas, pois não existe jogo de A, B ou C, já que todos são jogos online. É preciso que se combata o preconceito também nesses espaços, e para isso temos uma lei que criminaliza qualquer tipo de ofensa virtual, que é a Lei Carolina Dieckmann (Lei 12.737/12). O preconceito nos jogos pode ser classificado como crime cibernético, já que não existe uma lei que o tipifique como homofobia, pois ela, infelizmente, ainda não é criminalizada”, explicou.
Para Fernando Araújo, o combate à discriminação necessita ser ensinado às crianças desde a escola, sendo importante, também, que se incentive a denúncia e a perda do medo que atinge a comunidade LGBT. De acordo com o professor, “é fundamental não deixar o preconceito passar em branco, porque a impunidade gera a discriminação, a homofobia e o cyberbullying”.
“Existe a ideia de que no mundo virtual se pode fazer de tudo, mas a verdade é que você tem limites para impor as suas verdades, pois não se pode infringir a moral do outro de uma maneira que o coloque numa situação depreciativa e humilhante publicamente. Os LGBT precisam perder o medo e fazer as denúncias em uma delegacia, e para isso é importante que a vítima tire prints da conversa e leve esse material impresso, levando também testemunhas que tenham presenciado o fato”.
A Paraíba não possui uma delegacia específica para crimes cibernéticos, mas o preconceito no mundo virtual contra gays, lésbicas, bissexuais, transexuais e transgêneros pode ser denunciado na Delegacia de Repressão a Crimes Homofóbicos de João Pessoa, que tipifica o caso de discriminação como crime cibernético, de acordo com a Lei Carolina Dieckmann.
Saiba como funcionam os jogos online
Os chamados jogos online são os jogos eletrônicos jogados via internet, em que um jogador com um computador, vídeo game ou celular - conectado à rede - pode jogar com outros sem que, para isso, necessitem estar num mesmo ambiente.
Tudo nos games online acontece em tempo real, como se o outro estivesse lado a lado, e é possível também, enquanto se joga, conversar o parceiro ou adversário.
E o que é o Lol?
League of Legends é um game eletrônico online jogado simultaneamente por diversos jogadores, que foi desenvolvido em 2009, pela Riot Games, para os computadores com sistema operacional Windows e macOS.
Durante o game, os jogadores assumem o papel de “invocadores” e controlam campeões com habilidades únicas, que lutam junto ao seu time contra outros invocadores, ou contra campeões controlados pelo computador, para destruir o nexus da equipe adversária, construção que está localizada na base do mapa e protegida por outras estruturas.
League of Legends é um dos jogos online de maior sucesso em todo o mundo, e sua popularidade é tanta que as finais de algumas competições específicas do jogo chegam a ser realizadas em estádios de futebol.