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Machismo e discriminação afetam mulheres nos jogos online

publicado: 30/07/2017 00h05, última modificação: 29/07/2017 02h20
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Marcela, 27 anos, diz que foi “xingada de todas as formas possíveis” e resolveu fazer a mudança do nick para um nome masculino - Foto: Ortilo Antônio

tags: machismo , homofobia , jogos online , lol , joão pessoa


Jadson Falcão - Especial para A União

O universo dos games online fascina a milhões de pessoas em todo o mundo e parte desse encanto se dá pela possibilidade oferecida ao jogador de se tornar, no jogo, quem desejar, e fazer coisas que são impossíveis no mundo físico. Essa experiência diferente, no entanto, pode ser prejudicada por problemas bem conhecidos no mundo real, como o machismo e o preconceito contra as mulheres.

Apesar de representarem mais da metade (53,6%) das pessoas que se divertem com algum tipo de jogo eletrônico no Brasil - de acordo com a Pesquisa Game Brasil 2017 -, muitas delas sentem na pele, quase que diariamente, a discriminação e o assédio que permeia o mundo dos jogos. Por conta desses problemas, não é difícil encontrar jogadoras que optam por ocultar sua verdadeira identidade e acabam assumindo, no mundo virtual, personagens que sejam do sexo masculino.

“Eu lembro que a primeira coisa que chamou a minha atenção quando fiz a conta no jogo foi o fato de que, quando fui jogar com os meus amigos, um deles chegou para mim e falou que, por ter colocado o meu nome no personagem, eu já tinha começado errado. O meu nick - como são chamados os nomes dos personagens nos jogos - estava como Raissa Miles, e achei super curioso quando ele veio me alertar para modificar”, contou a universitária Raissa Valério, de 25 anos, que joga um dos games online de maior sucesso, o League of Legends, desde o ano passado.

O interesse de Raissa pelo game surgiu durante uma pesquisa realizada por ela para o Trabalho de Conclusão do Curso de Ciências Sociais, que tratará da indústria cultural e do universo dos cosplayers - público bastante frequente neste tipo de jogo -. Segundo a universitária, o League of Legends - que também é conhecido como Lol - é um jogo “bastante interessante que une diversas coisas e demanda estratégia”, mas que pode se tornar, em algumas situações, traumático.

Uso do nick 

Ela relatou que o assédio dos jogadores é algo bastante temido pela comunidade feminina que participa do game, e contou que os xingamentos, e as piadinhas que vêm a diminuir a condição feminina, são ainda mais frequentes quando o nick “denuncia” que a personagem está sendo controlada por uma mulher.

“Conheço algumas meninas que colocaram o nome verdadeiro na personagem, mas que preferiram, depois, juntar moedas no jogo para poder trocar [o nick] e assim não deixar explícito que são mulheres. Quando estamos jogando elas não gostam que a gente fique se referindo a elas no feminino, exatamente para não dá a entender quem são, e isso já aconteceu também comigo. Hoje em dia tenho duas contas, uma em que estou no nível 30, e outra em que eu estou num nível mais baixo e fiz para aprender a fazer coisas que ainda não sei. Nessa conta mais recente, coloquei o nome totalmente aleatório, justamente para evitar esse tipo de situação”, desabafou.

A psicóloga Marcela An, de 27 anos, também é jogadora frequente de League of Legends desde o ano de 2015. Ela mantinha uma personagem no jogo com um nome feminino, mas também resolveu fazer a mudança do nick para o masculino, após vivenciar situações de assédio e ser “xingada de todas as formas possíveis”. Segundo Marcela, o fato de obter melhor desempenho em uma partida do que um jogador homem, ou o de errar em algo mínimo durante o jogo, já era suficiente para ouvir e ler coisas que iriam incomodar a qualquer pessoa.

“Se eu fazia alguma coisa errada, o povo já vinha falar que era porque eu sou mulher. No Lol existem situações em que todo mundo está jogando para matar uma personagem, e quando a gente mata, os jogadores já ficam dizendo que mulher não devia estar jogando, que mulher devia estar era na cozinha. Já aconteceu comigo também de algumas pessoas chegarem e dizer que se eu falasse com eles por telefone me dariam itens dentro do jogo, e outros chegaram até a pedir nudes. Esse assédio moral dentro do game é algo que já se tornou muito comum nos dias atuais”, afirmou. Para Marcela An, os jogadores que são homens, por formarem o público-alvo inicial para qual o jogo foi desenvolvido, consideram que tiveram “seu espaço invadido pelas mulheres”. Quando questionada se voltaria a jogar com uma personagem que tivesse seu próprio nome - ou algum outro nome feminino -, a psicóloga respondeu sem pestanejar que não. “Não tem condições”.

Discriminações e piadas de cunho homofóbico ainda são frequentes nos ambientes virtuais LGBT é alvo de homofobia em jogos e nas redes sociais

O preconceito nos jogos passa também pela questão da orientação sexual, e o universitário Lucas Nóbrega, de 22 anos, pode falar sobre o assunto. Ele é homossexual e conta que já passou por episódios de discriminação que ocorrem com frequência não apenas no ambiente dos games, mas também em grupos direcionados a esse tipo de conteúdo em redes sociais, como o Facebook.

“Geralmente eles fazem alguma piadinha e vêm me chamando de coisas pejorativas como viado ou alguma coisa do tipo, o que me deixa bastante ofendido. Outras vezes estou jogando com alguns amigos meus que também são gays, e aí quando eles leem nossas conversas no chat dos jogos já começam a tratar mal. Já vi dizerem que gay não é gente, e outras coisas mais pesadas, e já presenciei também pessoas dizendo coisas racistas e misturando todo tipo de preconceito. Isso te deixa bem chateado”, relatou.

Vida virtual

Para a professora universitária e pesquisadora do Grupo de Estudo e Pesquisa em Gênero e Mídia (GEM) da Universidade Federal da Paraíba, Glória Rabay, é necessário perceber como a realidade da vida em sociedade é refletida diretamente nos jogos virtuais. De acordo com ela, “os valores preconceituosos, machistas, homofóbicos e racistas permeiam toda e qualquer realidade em que nós estejamos, seja ela acadêmica, virtual, econômica ou cultural”.

“As meninas podem se proteger da forma que estão fazendo, que é se escondendo através de nomes masculinos, mas isso as protege somente no virtual, pois, infelizmente, reproduz no coletivo o machismo, ajudando a perpetuá-lo. É preciso que os meninos vejam que elas são tão competentes quanto eles, e, para isso, que elas reafirmem o nome feminino, mesmo que isso aconteça através de codinomes que inventem”, afirmou.

De acordo com a professora, é fundamental que as vítimas de assédio ou machismo nos jogos online denunciem os episódios à Delegacia da Mulher, para que, dessa forma, seja realizada não somente a investigação, mas também o registro de que o problema existe e incomoda as mulheres. Para a professora Glória Rabay, é necessário perceber como a realidade da vida em sociedade é refletida nos jogos virtuais

Segundo Glória Rabay, o debate a respeito de determinada questão tem o poder de mostrar à sociedade que um problema necessita ser exterminado. “É preciso sim fazer essa denúncia, e é preciso também, para que a presença delas possa ser percebida, que elas se coloquem como mulheres dentro desse universo masculino”, finalizou.

MEL: Combate deve começar na escola 

Na opinião do professor e militante do Movimento do Espírito Lilás (MEL), Fernando Araújo, o preconceito ou a discriminação virtual, também chamada de cyberbullying, funciona como forma de se reafirmar os valores de determinada sociedade. De acordo com ele, a discriminação contra os LGBT no mundo online é frequente e começou a ser percebida mais claramente a partir do surgimento da antiga comunidade do Orkut.

“O menino que é homossexual muitas vezes sofre preconceito virtual por se deparar com jogos de hétero, entre aspas, pois não existe jogo de A, B ou C, já que todos são jogos online. É preciso que se combata o preconceito também nesses espaços, e para isso temos uma lei que criminaliza qualquer tipo de ofensa virtual, que é a Lei Carolina Dieckmann (Lei 12.737/12). O preconceito nos jogos pode ser classificado como crime cibernético, já que não existe uma lei que o tipifique como homofobia, pois ela, infelizmente, ainda não é criminalizada”, explicou.

Para Fernando Araújo, o combate à discriminação necessita ser ensinado às crianças desde a escola, sendo importante, também, que se incentive a denúncia e a perda do medo que atinge a comunidade LGBT. De acordo com o professor, “é fundamental não deixar o preconceito passar em branco, porque a impunidade gera a discriminação, a homofobia e o cyberbullying”.

“Existe a ideia de que no mundo virtual se pode fazer de tudo, mas a verdade é que você tem limites para impor as suas verdades, pois não se pode infringir a moral do outro de uma maneira que o coloque numa situação depreciativa e humilhante publicamente. Os LGBT precisam perder o medo e fazer as denúncias em uma delegacia, e para isso é importante que a vítima tire prints da conversa e leve esse material impresso, levando também testemunhas que tenham presenciado o fato”.

A Paraíba não possui uma delegacia específica para crimes cibernéticos, mas o preconceito no mundo virtual contra gays, lésbicas, bissexuais, transexuais e transgêneros pode ser denunciado na Delegacia de Repressão a Crimes Homofóbicos de João Pessoa, que tipifica o caso de discriminação como crime cibernético, de acordo com a Lei Carolina Dieckmann.

Saiba como funcionam os jogos online Raissa conta ter sido reprimida por colocar o nome na personagem

Os chamados jogos online são os jogos eletrônicos jogados via internet, em que um jogador com um computador, vídeo game ou celular - conectado à rede - pode jogar com outros sem que, para isso, necessitem estar num mesmo ambiente.

Tudo nos games online acontece em tempo real, como se o outro estivesse lado a lado, e é possível também, enquanto se joga, conversar o parceiro ou adversário.

E o que é o Lol? 

League of Legends é um game eletrônico online jogado simultaneamente por diversos jogadores, que foi desenvolvido em 2009, pela Riot Games, para os computadores com sistema operacional Windows e macOS.

Durante o game, os jogadores assumem o papel de “invocadores” e controlam campeões com habilidades únicas, que lutam junto ao seu time contra outros invocadores, ou contra campeões controlados pelo computador, para destruir o nexus da equipe adversária, construção que está localizada na base do mapa e protegida por outras estruturas.

League of Legends é um dos jogos online de maior sucesso em todo o mundo, e sua popularidade é tanta que as finais de algumas competições específicas do jogo chegam a ser realizadas em estádios de futebol.