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símbolo de resistência

Mãe Rita Preta de Oxalá faz 100 anos

publicado: 21/08/2025 09h13, última modificação: 21/08/2025 09h13
Mestra juremeira mais velha do Brasil ajudou a fundar a Federação dos Cultos Africanistas da Paraíba
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Rita Preta sendo homenageada, com um bolo, pela passagem do seu centenário de nascimento | Foto: Divulgação/Valdir Efun

por Lilian Viana*

O tempo não apagou a firmeza do olhar de Mãe Rita Preta de Oxalá. Centenária, a mestra juremeira mais velha do Brasil carrega em sua presença miúda a imponência de quem atravessou séculos sem abrir mão da fé, da resistência e da dignidade. Em sua cadeira de rodas, durante a celebração que comemorou seus 100 anos, Mãe Rita deixou claro que atravessa o tempo como chama viva. “Vivíssima”, como ressaltou o professor e sacerdote Valdir Efun Lourenço e Lima de Santa Rita, que acompanha Mãe Rita desde a década de 1990.

A sacerdotisa, que nasceu em 1925 no interior de Pernambuco, carrega em sua vida a memória de reis e rainhas africanos, escravizados e a força de quem nunca se curvou diante das adversidades. Mulher preta, sem filhos biológicos, divorciada muito cedo por não aceitar a intolerância religiosa do marido, transformou sua própria trajetória em símbolo de resistência.

“Tudo começa pelo nascimento dela, ligado à tradição nagô. Nós costumamos chamá-la de rainha nagô”, conta Valdir Efun. Ainda jovem, ela migrou para a Paraíba, passando por Itabaiana até chegar a Santa Rita, em 1940, onde vive até hoje na mesma casa. Foi lá que se tornou liderança, desafiando as origens evangélicas da avó paterna que a criou e mergulhando no kardecismo e no esoterismo, até abraçar a Jurema, na década de 1940, e a Umbanda, nos anos 1960.

Com Carlos Leal Rodrigues, pioneiro da Umbanda no estado, ajudou a fundar a Federação dos Cultos Africanistas da Paraíba (Fecap) que lutou junto ao governo pela legalização dos terreiros. Viajou para congressos, esteve em encontros nacionais e participou da fundação da Umbanda no Brasil. Foi alfabetizadora de vizinhos, criou meninas em situação de vulnerabilidade, abriu sua casa para a comunidade e sempre colocou as mulheres no centro do protagonismo.

Segundo Valdir, sua marca é o respeito às tradições. “Ela segue os rituais do jeito que aprendeu, tanto na Jurema quanto na Umbanda. Não aderiu a modismos, manteve a liturgia intacta. O quarto da Jurema dela, com as sete cidades, é tradicionalíssimo. Mas o que considero mais inovador é que ela abriu o terreiro para a pesquisa acadêmica. Isso nos deu credibilidade, ajudou a combater o preconceito e o racismo religioso”, destacou.

Feminista de atitudes, Mãe Rita alfabetizou filhos de santo, sustentou uma comunidade e sempre enfrentou a intolerância sem depender de figuras masculinas. “Ela é filha de Oxalá, mas regida por Yansã. Uma mulher de força, que ocupou seu espaço e abriu caminho para tantas outras”, completou Valdir.

Doutora Honoris Causa

Em dezembro do ano passado, a Universidade Federal da Paraíba (UFPB) concedeu a Mãe Rita o título de Doutora Honoris Causa, feito inédito para uma mulher preta, sacerdotisa da Umbanda e da Jurema.

A cerimônia aconteceu no Templo de Umbanda Caboclo José de Andrade, em Santa Rita, fundado por ela em 1966, já fora da clandestinidade. Ao som dos tambores, Mãe Rita entrou acompanhada por outras mães e pais de santo e recebeu das mãos da reitora Terezinha Domiciano a honraria.

A propositura do título foi apresentada pelos professores Lusival Barcellos, Carlos André Cavalcanti e Valdir Efun, que classificaram a homenagem como uma reparação histórica tardia diante da relevância de Mãe Rita para a preservação dos cultos afro-brasileiros. Foi a primeira vez que Santa Rita, cidade marcada pela tradição política das antigas oligarquias da cana, viu uma mulher negra ser laureada com tamanha honraria acadêmica. Mais que um título, a homenagem selou um século de fé, luta e resistência de uma sacerdotisa que transformou sua vida em patrimônio da Paraíba e do Brasil.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 21 de agosto de 2025.