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Meio século de segredo

publicado: 18/09/2023 09h25, última modificação: 18/09/2023 09h25
Nomes dos responsáveis pelo atentado a bomba contra Dom Zacarias, em Cajazeiras, continuam um mistério que já perdura quase 50 anos. Na época, o bispo, alvo do atentado, ouviu um delator em confissão, mas manteve o sigilo sacerdotal
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Ilustração: Tônio

por Hilton Gouvêa*

Pelas leis canônicas, todo segredo revelado nos confessionários deve ser mantido em sigilo entre o confessor e o confessando. E é por isso que Dom Zacarias Rolim, então bispo de Cajazeiras, manteve em segredo o nome – ou os nomes – do autor do atentado contra a sua vida, ocorrido na cidade do Alto Sertão paraibano, em 1975, resultando em duas mortes e dois feridos. Em julho deste ano, os cajazeirenses lembraram os 48 anos do atentado ao religioso, que escapou da explosão, pois tinha viajado a Recife, capital pernambucana. Dom Zacarias Rolim de Moura nasceu a 13 de junho de 1914, em Umari, no Ceará, e morreu na mesma cidade, em 5 de abril de 1992.

Ficaram muitas perguntas sem respostas. Afinal, qual é o nome do autor do atentado, que Dom Zacarias, por uma questão de ética sacerdotal, levou para o túmulo? Por que as autoridades, após promoverem um inquérito, não o concluíram e proibiram qualquer publicação ou comentário sobre o assunto? Por que foi recomendado pelas Forças Armadas da época que o resultado do inquérito não poderia ser divulgado?

“Dom Zacarias era apolítico e não se envolvia em disputas partidárias. De folga, ele se refugiava na sua fazenda, denominada As Pombas, e tranquilamente passava a fumar seu charuto e a tomar seus traguinhos de uísque”, diz o jornalista cajazeirense Jackson Bandeira. “Ele só cuidava das coisas de Cristo e quem visou atingi-lo por vingança ideológica errou o alvo, até porque, para essas coisas, o bispo era muito calado e discreto”.

De acordo com as pesquisas do escritor cajazeirense Francisco Cartaxo, “a cidade de Cajazeiras, no Alto Sertão do estado, distante 482 quilômetros de João Pessoa, foi palco de um dos maiores atentados já registrados na história da Paraíba. “Já passava das 21h, do dia 2 de julho de 1975, quando uma bomba de fabricação caseira explodiu dentro do Cine Teatro Apolo 11. O barulho acordou a população local, que tinha o hábito de dormir cedo. Saldo do delito: duas pessoas mortas e mais duas gravemente feridas”.

Forças Armadas proíbem a divulgação do inquérito
Em pleno ápice da ditadura militar no Brasil, o atentado em Cajazeiras causou grande repercussão e passou a ser investigado pelas Forças Armadas e pela Polícia Federal. Os resultados dos inquéritos nunca foram revelados. Os motivos dos sigilos decretados pelas autoridades policiais em torno do episódio também não. Do ocorrido, surgiu o surpreendente e forte indício de que o atentado teria como alvo o bispo da Diocese, Dom Zacarias Rolim de Moura. As motivações para tirar a vida do religioso, detentor de harmônica convivência com a sociedade e líderes políticos locais, também nunca foram esclarecidas.

"Ele só cuidava das coisas de Cristo e quem visou atingi-lo por vingança ideológica errou o alvo, até porque, para essas coisas, o bispo era muito calado e discreto" Jackson Bandeira

Aos que se debruçaram a investigar e pesquisar por iniciativa própria o delito, passou a existir a asseveração, não mais o prenúncio, de que Dom Zacarias era de fato a pessoa a ser vitimada, e o escopo não foi alcançado por uma série de circunstâncias e coincidências que os mais religiosos creditam a um milagre. Um artefato artesanal, colocado em uma pasta tipo 007, explodiu logo após às 21h, causando destruição no Cine Teatro Apolo 11, pertencente à Diocese de Cajazeiras. Com a explosão, morreram, dias depois de serem socorridos para hospitais de João Pessoa, o soldado Altino Soares, conhecido por Didi, e Manuel Conrado. Outras duas pessoas ficaram gravemente feridas: Geraldo Conrado e Geraldo Galvão. As pesquisas do escritor Francisco Cartaxo sobre o caso resultaram nas informações publicadas em seu livro.

O bispo era um aficionado por cinema, frequentador assíduo do local e sentava-se sempre em uma cadeira já costumeiramente reservada para ele. A bomba foi colocada exatamente ao lado do seu acento. “Por uma série de coincidências, as perdas humanas e materiais não foram mais graves. Explicando melhor: nesse dia, a projeção da película foi suspensa cerca de quinze minutos antes de terminar, porque era velha e se partiu várias vezes. Isso fez com que os responsáveis encerrassem a sessão. Portanto, a plateia já se retirara. Na hora da explosão, poucas pessoas ainda estavam no interior do cinema”. “Além disso, nessa data, Dom Zacarias não foi ao cinema. Ele havia viajado ao Recife”, detalha o também escritor Francisco Sales Cartaxo Rolim, sócio efetivo da Academia Cajazeirense de Artes e Letras (Acal) e do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano (IHGP).

A ida do bispo à capital pernambucana ocorreu justamente com o intuito de procurar distribuidoras e alugar filmes para os cinemas da Diocese, o Cine Teatro que ele próprio fundou. A bomba, antes de detonar, foi encontrada após o encerramento da sessão pelo soldado Didi, que junto com outros auxiliares fazia a arrumação da sala.

Em uma das cadeiras, ele se deparou com a pasta e, dentro dela, um objeto retangular que ele acreditava ser um gravador. Ao pegar foi surpreendido por um grito de Manuel Conrado, alertando que ele estava com uma bomba nas mãos. Assustado, o soldado deixou o objeto cair. Isso foi suficiente para que o artefato explodisse, ferindo a ele e outras três pessoas. “Nunca me dei por satisfeito com a falta de resposta que ficou para ser dada a esse atentado”, diz Francisco Cartaxo Rolim, que detalha o episódio em livro (‘Do bico de pena a urna eletrônica’), destacando a reconstituição do atentado.

Francisco Cartaxo é, até hoje, uma das pessoas mais dedicadas a pesquisar sobre o misterioso delito da cidade sertaneja. Sua dedicação a tentar esclarecer o fato, ou buscar um indício do que levou alguém a ameaçar a vida do religioso, rendeu o capítulo de um livro. Na obra ‘Do bico de pena a urna eletrônica’, escrito em 2006, no capítulo oito, intitulado ‘Atentado contra Dom Zacarias Rolim de Moura’, ele narra fatos do ocorrido, dedicando-se a uma reconstituição do episódio. Ele também questiona o silêncio da imprensa paraibana sobre o assunto.

Atentado causou perplexidade e suspense

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Dom Zacarias Rolim de Moura, bispo de Cajazeiras - Foto: Reprodução

A madrugada do crime e os dias subsequentes ao atentado em Cajazeiras, que na época tinha cerca de 40 mil habitantes, foram de absoluta perplexidade e suspense. O medo era de que algo semelhante voltasse a acontecer. A população se perguntava quem poderia ter planejado e executado aquele atentado. À época, o país estava sob o regime da ditadura militar, o que impedia debates ou discussões abertas para que fossem travados com o objetivo de desvendar ou que fornecessem um viés de certeza absoluta para ligar o atentado a uma linha de investigação.

“O Brasil estava sob rigorosa censura aos meios de comunicação. A especulação se fazia à boca pequena, mesmo assim, com reservas. O episódio foi absolutamente inusitado para Cajazeiras e para o Brasil”, diz Cartaxo. A opinião geral que surgiu da desconfiança pública foi a de que, descartando-se que o atentado era contra a vida de Dom Zacarias, aos 60 anos de idade, o episódio tenha tido relação com a política da cidade, confrontos passados ou disputas internas de líderes que dominavam a região. O crime não tem nenhuma raiz em debates políticos ou intrigas locais.

“O acirramento, por ventura, existente na política local, naquela época, era em decorrência da presença na cena política do deputado estadual João Bosco Braga Barreto, do então MDB, cita Cartaxo, revelando que o parlamentar chegou a ser apontado como “suspeito”. Todavia, essa suposição logo foi desfeita, levando em consideração a boa relação que ele tinha com Dom Zacarias.

Em 2018, o escritor Francisco Cartaxo teve acesso às peças do inquérito policial, instaurado logo após o atentado pela Polícia Federal e pelas Forças Armadas. Os poucos documentos ainda existentes repassados ao cajazeirense foram fornecidos pela Comissão da Verdade, instituída na Paraíba. Porém, as informações e dados guardados, até então, pouco acrescentaram. “Pouco se sabe dos resultados”.

O bispo Dom Zacarias morreu 17 anos depois da explosão da bomba. Informações que correm entre os moradores que vivenciaram o episódio na época garantem que o religioso foi o único a saber da autoria do atentado contra sua vida. Entretanto, acabou impedido de revelar por ter conhecido a verdade em segredo de confissão. O sigilo nesses casos é princípio fundamental para a Igreja Católica.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 17 de setembro de 2023.