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No Cariri paraibano

O amor estava no ar

publicado: 16/01/2023 11h49, última modificação: 16/01/2023 11h49
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- Foto: Ilustração: Tônio

 

Por Hilton Gouvêa*

 

Josefa Araújo Bostellmann não tinha ainda 20 anos quando em sua cidade natal, Serra Branca, no Cariri paraibano, a 198 quilômetros de João Pessoa, um avião Hudson-B2 da Força Aérea Brasileira (FAB) “caiu” na área conhecida por Lagoa do Panati, após uma aterrisagem forçada no caminho que conduz à cidade de Coxixola.

O aparelho levava militares que iriam garantir as eleições no município de Sousa, no Sertão. Mas uma pane em um dos motores contribuiu para a queda que resultou, apenas, em ferimentos no mecânico de bordo, o paranaense Rubens Bostellmann. Foi aí, numa tarde de 2 de outubro de 1950, que uma quase tragédia deu início a uma história de amor, que resultou em grande felicidade.

Quem socorreu os “náufragos do ar” foi o padre João Marques. Ele acolheu passageiros e tripulantes da nave avariada. Rubens, por se encontrar ferido, foi levado para Recife, capital pernambucana. Ele tinha um corte profundo nas costas e isso preocupou a todos. Mas retornou curado dois meses depois e foi fazer um passeio pela festa da padroeira da cidade, Nossa Senhora da Conceição. Lá, entre as diversas moças que se encontravam olhando o pavilhão central, Rubens notou Josefa.

O jovem sargento da FAB aproximou-se e disse: “Você acredita em amor à primeira vista?”. “Não acredito em amor antigo, quanto mais à primeira vista”, respondeu a moça.

A pergunta serviu para o casal iniciar uma conversa, que durou muitas horas. O mecânico aviador disse a ela que estava hospedado na casa paroquial, onde vivia o seu salvador terreno, o padre João Marques. Dessa vez, ele passou cinco dias em Serra Branca. No último dia, quando já ia viajar, Rubens perguntou a Josefa se poderia vir passar o Natal daquele ano em Serra Branca. Ela respondeu: “Claro. Se é o padre quem vai lhe hospedar, tudo bem”. A menina fez bico-doce. O jovem ficou um pouco triste.

Namoro é iniciado com a bênção do período natalino

Quinze dias depois, já durante o Natal, Rubens retornou a Serra Branca. Josefa ainda não considerava namoro aquele relacionamento recente. O Natal passou sem maiores novidades. Rubens, caindo de amores, porém, com medo de se declarar. Josefa, firme como uma rocha, sem fornecer colher de chá. Muito vigiada pela família e ainda indecisa, ela respondeu sim, quando ele indagou se poderia passar as férias em Serra Branca. Sim... e não... pois ela apenas disse que ele era quem sabia.

É bom citar que Rubens era destacado na Base Aérea da FAB em Recife. Em janeiro de 1951, ele voltou a Serra Branca, mas teve o cuidado de antes pedir permissão ao pai de Josefa, o comerciante Antônio Bezerra de Souza, para conversar com a moça em casa. Na época, Bezerra era um dos maiores comerciantes do Cariri. O consentimento foi imediato. “O futuro sogro topou com a cara do futuro genro”, brincou Josefa.

Depois desse colóquio com os familiares da futura mulher, Rubens fez 13 viagens de Teco-Teco a Serra Branca. Ele e Josefa combinaram um código de reconhecimento: o avião dava um rasante sobre a loja do pai da namorada, subia, entrava em parafuso no centro da cidade, depois aterrissava no campo de futebol de Serra Branca, onde atualmente é o campo do Flamengo. Ele também adotava sobrevoar a cidade até o Riacho do Aú, dava rasante em cima da loja e ia para o pouso. Quem primeiro corria ao encontro de Rubens era o padre João Marques e Josefa. “A gente ia a pé, pois o campo sempre foi pertinho”, explicou.

Quem primeiro denunciava a presença do avião de Rubens sobre Serra Branca era Maria Íris, irmã de Josefa, que gritava: “É o galego, é o galego!”. E era mesmo. Branco, loiro e de olhos azuis, Rubens era o típico descendente de alemães conquistando o coração de uma donzela do Cariri da Paraíba.

Já muito ciosa dos gostos do namorado, Josefa mandava buscar gasolina de avião em Campina Grande. Não fosse assim, Rubens não teria como retornar para Recife. Por antecedência, ela adquiria 40 litros. O galego chegava às 16h dos sábados e retornava às oito da manhã dos domingos. Era uma rotina que não agradava a Josefa. Um dia, ela deu um muxoxo e disse que era melhor ele não vir mais. Rubens ficou desgostoso, mas, seis meses depois de iniciado o namoro, ele noivou.

Em tempo: muxoxo é um brasileirismo reproduzido como um som de clique feito com a língua que indica descontentamento ou desprezo. É presente na língua portuguesa, e tem origem em Luanda (Angola), na língua quimbundo. É representado pela onomatopeia “tsc”, e corresponde ao clique bilabial no alfabeto fonético internacional.

O casamento veio 180 dias após o noivado, em 2 de maio de 1952, na Matriz de Nossa Senhora da Conceição, em Serra Branca. Dias depois, o casal foi morar em Recife, onde passou dez anos. Também morou dois anos em Curitiba, capital do Paraná. Dona Josefa, caririense da gema, estranhou o frio sulista. Dos seis filhos que nasceram do casal, só três estavam vivos na época em que Josefa concedeu a entrevista: Luís, Suzana e Roseane.

Luís continuava morando em Curitiba. Era comerciante autônomo. Suzana era dentista em Canoinhas, interior de Santa Catarina. E Roseane trabalhava como médica obstetra em Nova Iorque, nos Estados Unidos. Josefa teve seis netos dos três filhos.

Apesar de ter vivido um amor super diferente, Josefa foi a única do lugar a casar assim, de forma inusitada. Ela contava que Rubens era um homem muito sério. “As moças e até mulheres casadas davam em cima, mas ele só tinha olhos para mim. Fui feliz nos 47 anos de casada. E, durante o namoro, eu nunca soube de outra namorada dele”.

Após uma ausência de mais de 50 anos, o casal retornou para Serra Branca. Rubens morreu em 10 de outubro de 1999. Quatro anos antes, recebeu o título de Cidadão Serra-Branquense. Reformou-se como segundo-tenente da Aeronáutica. Nesse período, foi o único dessa força a morar por lá. Qualquer avião que passava por Serra Branca despertava a curiosidade de Josefa. Ela guardava a foto de um Bombardeiro C-130, que a FAB mandou Rubens buscar nos Estados Unidos. Foi o último avião que Rubens trabalhou, ora pilotando, ora fazendo a manutenção.

Natural de Rio Negro, no interior do Paraná, Rubens era filho de casal teuto-italiano. Seu pai, Henny Bostellmann era casado com Laura, de cujo sobrenome Josefa não lembra. Numa das vezes que chegou a Serra Branca, o Rio Aú estava cheio. Rubens, então, mostrou suas qualidades de bom nadador: estacionou o avião do outro lado e atravessou a nado para chegar ao caminho da casa da namorada. “Ele não via obstáculos entre nós. O que aparecesse, ele superava”, contava a viúva, que morreu poucos anos depois após a morte do marido.

Sotaque sulista e chimarrão

O pai de Josefa, Antônio Bezerra da Silva, tinha um empório em Serra Branca que seria o precursor dos supermercados de hoje. Vendia de café a açúcar, tecidos, sapatos e ferragens. Ele gostou do genro por sentir a sinceridade do rapaz. Josefa, a mãe de Josefa filha, considerava Rubens como um dos filhos. O sotaque sulista de Rubens chamava a atenção. Em Serra Branca, o pessoal ficava espantado quando via ele sorvendo chimarrão.

O pessoal de Rubens recebeu Josefa sem preconceitos, embora ficasse admirado com o sotaque nordestino da moça. Antes de morrer, Josefa ainda vive na casa onde habitou por muitos anos com o marido, num bairro central de Serra Branca, no Cariri paraibano. Passava o tempo a olhar fotos colocadas em molduras, onde Rubens aparecia ora exibindo sua juventude, ora curtindo sua fase de avô.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 15 de janeiro de 2023.