Por Gustavo Tavares da Costa
Em 2013, o mundo soube, sem grande surpresa, que os EUA espionavam governos e empresas estrangeiras. Os casos mais emblemáticos foram os da Alemanha e Brasil. Em ambos, as chefes de estado, Angela Merkel e Dilma Roussef, vinham sendo espionadas.
Empresas estratégicas dos dois países também eram alvo de violações indiscriminadas. O objetivo era capturar informações críticas de natureza comercial e tecnológica. Na Alemanha, a Siemens foi um dos alvos. No Brasil, a maior empresa do mundo em exploração de petróleo off-shore, Petrobras, atraiu as atenções da Agência Nacional de Segurança dos EUA (National Security Agency).
Se isolarmos o caso brasileiro, é legítimo afirmar que os EUA tinham plena consciência do potencial extraordinário do pré-sal, maior reserva de petróleo descoberta nas últimas décadas no mundo. Em outros termos, acompanhavam de perto a evolução da produtividade da nova bacia petrolífera, e por isso podiam antecipar o sucesso dos investimentos realizados em função dessa descoberta.
Antes mesmo da derrubada de Dilma Roussef, quase metade de todo o petróleo equivalente (petróleo + gás natural) da Petrobras tinha origem no pré-sal, a um custo incrivelmente baixo, inferior a US$ 10.
Neste ponto, cabe anotar que o novo marco jurídico do pré-sal, aprovado em 2010, contrariou, desde cedo, interesses de petroleiras norte-americanas no Brasil, por duas razões principais: elas alegavam que a Lei do Pré-Sal prejudicaria o ambiente de competição, já que a Petrobras atuaria como operadora exclusiva nos blocos do pré-sal, e julgavam que as exigências de conteúdo local eram excessivas.
No relacionamento entre nações, a combinação de pressões internas e externas e o entrelaçamento de interesses complexos dificilmente se revelam de maneira explícita. Raramente decorrem de uma coordenação estreita entre governos ou de um ajuste premeditado entre agentes interessados. Com as informações atualmente disponíveis, não se pode atrelar as ações de espionagem do governo americano à dinâmica recente da política interna brasileira. Por outro lado, o grau de convergência entre o que a inteligência estrangeira buscava e aquilo que efetivamente veio a ocorrer deveria exigir postura vigilante de cidadãos, intelectuais e autoridades brasileiras. Senão, vejamos.
A Operação Lava Jato é deflagrada em 2014. Um grande esquema de corrupção é desbaratado na Petrobras. Grandes empresários, altos funcionários e políticos de cúpula são enredados na investigação. Em menos de 2 anos, empresários, funcionários e parlamentares são presos, e todo o setor de petróleo e gás tem suas atividades virtualmente paralisadas, resultando na eliminação de milhões de empregos, diretos e indiretos, com graves implicações sobre o produto e a renda nacional.
Na esteira dessa operação, autoridades judiciais brasileiras vão até aos EUA e oferecem ao Departamento de Justiça daquele país informações sigilosas a respeito da atuação de empresas brasileiras na exploração do pré-sal, aparentemente em nome de uma colaboração mútua - coisa que os EUA jamais fariam em relação a qualquer outro país.
Enquanto isso, a instabilidade política no Brasil se agrava. Em 2016, a situação chega ao limite, quando se desenrola o processo de impeachment contra a presidenta eleita. Os novos protagonistas do cenário político nacional são Eduardo Cunha, Romero Jucá, Michel Temer e Aécio Neves. Tudo muda. Dilma é derrubada, Temer se torna presidente e os parlamentares mencionados formam a tropa de elite do Executivo no Congresso Nacional.
Ato contínuo, a Lei do Pré-Sal é relaxada, fazendo com que a Petrobras deixe de ser a operadora exclusiva. Esta mudança, por sua vez, produz outros efeitos. As exigências que tratam do conteúdo local nos investimentos relacionados ao setor de petróleo e gás são drasticamente reduzidas, com sérias consequências para o tecido industrial do país, visto que acelera o processo de desindustrialização, uma das maiores preocupações econômicas do Brasil. E dentro do novo ambiente, blocos do pré-sal são vendidos por valores subestimados.
O tempo passa e a nova lógica se consolida. Executivo e Legislativo se coordenam para agraciar petroleiras estrangeiras com uma isenção fiscal da ordem de R$ 1 trilhão (sim, trilhão). Não bastasse isso, a Petrobras oferece um acordo a acionistas minoritários baseados nos EUA de cerca de R$ 10 bilhões. Ressalte-se que esse acordo deriva de um processo em que tais acionistas reclamam prejuízos decorrentes da Lava Jato.
Foi justamente a descoberta do esquema de corrupção que fez com que a Petrobras encomendasse a grandes consultorias internacionais o levantamento das baixas contábeis que deveriam ser realizadas nos balanços da empresa, com base nos percentuais desviados na execução dos contratos problemáticos. Isto levou a Petrobras a lançar um prejuízo de R$ 6,2 bilhões no balanço contábil de 2014.
Após 4 anos de Operação Lavo Jato, a Petrobras recuperou menos de R$ 1,5 bi do referido prejuízo. Mas, e os acionistas, o que podem reivindicar? A culpa da Petrobras e o valor do dano supostamente causado a detentores de suas ações ainda não são pontos de consenso.
Independentemente dessas considerações, questões adicionais podem ser levantadas. Se o prejuízo total foi estimado em R$ 6,2 bilhões, poderiam apenas os acionistas minoritários sediados nos EUA esperar receber R$ 10 bilhões? Além disso, dado que as reservas provadas de petróleo equivalente estão na casa dos trilhões de dólares (de acordo com várias estimativas), faz sentido afirmar que esses acionistas foram prejudicados, visto que a descoberta, exploração e consolidação do pré-sal lhes garantem dividendos astronômicos, em termos presentes e futuros, ainda que parte dos investimentos tenha sido superfaturado?
Duas outras perguntas são tão ou mais importantes, e extrapolam ponderações de ordem eminentemente jurídica ou comercial. Se os EUA sabiam o tempo inteiro do que se passava no interior da Petrobras, e, portanto, conheciam em detalhes a magnitude da riqueza descoberta, é possível conceber que acionistas ligados à bolsa de Nova Iorque possam reclamar a compensação por prejuízos sofridos? Finalmente: que país mais ganhou e que país mais perdeu com a estratégia adotada no combate à corrupção na Petrobras?
A resposta a essas perguntas não requer grande esforço. Mas a superação desse quadro exigirá muita inteligência política, força de propósito, suor e, eventualmente, lágrimas.
O autor do texto
Gustavo Tavares da Costa é analista de Comércio Exterior do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços, mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal.