Quem passa, hoje, pelo Hospital Padre Zé, em João Pessoa, talvez não imagine que aquele espaço nasceu do gesto de um homem obstinado, que chegou a percorrer as ruas da cidade em cadeira de rodas para arrecadar doações. Há exatos 52 anos, morria Padre José da Silva Coutinho — ou simplesmente Padre Zé, o “Pai da Pobreza” —, cuja vida foi inteiramente dedicada aos que mais precisavam. Fundou o Instituto São José e o hospital que leva seu nome, recolhendo enfermos e pedindo esmolas para sustentar sua obra, em uma época em que servir aos pobres era visto como rebeldia. Décadas já se passaram desde sua morte, em 1973, mas seu legado continua vivo, mantido por voluntários que seguem acolhendo a população, movidos pela mesma fé que um dia guiou o Padre Ibiapina a peregrinar pelo Sertão.
Mesmo separados por mais de um século, essas duas importantes figuras da história paraibana encontram-se na forma de viver o Evangelho. Tanto Ibiapina (1806–1883) quanto José Coutinho (1897–1973) partilhavam uma fé que não cabia em palavras — e ambos fizeram dela um instrumento de dignidade. Se Ibiapina plantou a semente da caridade por onde passou, Padre Zé a fez brotar na cidade, dando abrigo a doentes, mendigos e retirantes. “Enquanto tínhamos, no século 19, o Padre Ibiapina, que construía casas de caridade, hospitais e cemitérios, acolhendo quem precisava; no século seguinte, o Instituto São José foi a maior ação social da época, na Paraíba. A essência era a mesma”, analisa o jornalista e escritor José Nunes da Costa, autor do livro “Padre Zé — De Mãos Estendidas”.
Missionário e poeta
Mas quem foi, afinal, José Coutinho, o Padre Zé? Nascido no município de Esperança, no Brejo paraibano, mudou--se ainda criança para Serraria, onde cresceu sob a influência dos tios sacerdotes. Foi ali, entre a rotina do engenho e o exemplo dos padres, que ele aprendeu o sentido do Evangelho. Embora viesse de uma família abastada, escolheu o caminho da renúncia e abraçou o sacerdócio ainda jovem, sendo ordenado em 1922 por Dom Adauto, o primeiro arcebispo da Paraíba. “Padre Zé teve uma fé prática, voltada para o ‘fazer’. Enquanto muitos só seguiam as leis da Igreja, ele radicalizava sua fé nas ruas, apoiando os necessitados”, descreve o jornalista José Nunes.
Inspirado por Ibiapina e São Vicente de Paulo, religioso francês famoso por suas obras beneficentes, ele acreditava que evangelizar era cuidar das pessoas — e fez disso sua missão de vida. Segundo o escritor, Padre Zé tinha seu jeito próprio de servir: também escrevia poesias e músicas, deixando como herança o hino de Nossa Senhora das Neves.
Missão social
Ainda que suas ações chamassem atenção à época, Padre Zé renunciava a qualquer forma de riqueza ou prestígio. De acordo com o biógrafo, recebeu como herança duas fazendas, uma em Pocinhos e outra em Serraria, e vendeu ambas para investir na obra social. Até as terras que ganhou como doação, na região de Mandacaru, onde hoje existe um bairro inteiro que leva seu nome, ele abriu mão. “Padre Zé nunca desejou a política partidária, seu compromisso era com os pobres”, destaca o escritor, acrescentando que sua postura sempre incomodou parte da classe política. “Era uma época em que ajudar os necessitados já era visto como subversão”, acrescenta. Não foi por acaso que, em 1964, durante a Ditadura Militar, ele chegou a ser preso sob acusação de ter ligações com o comunismo. Ficou detido por cerca de 15 dias no 15o Batalhão de Infantaria — Regimento Vidal de Negreiros, em Cruz das Armas, mas logo foi libertado.
Um episódio bastante emblemático ilustra bem sua relação com o Estado: quando o governo negou-se a ajudá-lo, Padre Zé improvisou uma carroça puxada por jumento como ambulância para recolher enfermos nas periferias de João Pessoa. “Isso causava certa ciumeira entre os políticos, mas ele fazia porque não havia assistência do Poder Público em sua plenitude”, recorda José Nunes. Já nos últimos anos de vida, quando a saúde já não lhe permitia andar, passou a circular de cadeira de rodas pela capital, pedindo doações nas portas de cinemas, clubes e bares. “Com uma vareta, batia de leve nas pessoas e dizia: ‘Ajude os meus pobres’. Era assim que sustentava o instituto e o hospital”, complementa o escritor.
Entidade criada em 1935 ainda é uma referência no estado
Criado em 1935, o Instituto São José foi a primeira “grande utopia” a virar realidade pelas mãos de Padre Zé. No local, estudantes, doentes e famílias carentes aprendiam ofícios, recebiam alimentação e encontravam abrigo. “Ele criou o instituto como um espaço de acolhimento e aprendizado. As pessoas entravam necessitadas e saíam profissionais. Dali saíram médicos, jornalistas, desembargadores, escritores”, detalha. Anos depois, já em 1965, veio o Hospital Padre Zé, nascido da constatação de que os doentes pobres não tinham acesso aos hospitais da cidade. Construído com doações e apoio da sociedade, o hospital surgiu da teimosia de um homem que não aceitava o abandono. “Ele fazia campanhas e escrevia cartinhas a famílias ricas pedindo ajuda”, diz o biógrafo.
Nos últimos anos de vida, já debilitado pela artrite crônica, o sacerdote ainda teimava em sair pelas ruas de João Pessoa para recolher doações, mas a saúde frágil o desafiava a cada tentativa. A última vez foi em 2 de novembro de 1973, no Dia de Finados, quando passou mal. Três dias depois, morreu vítima de parada cardíaca congestiva e cardiopatia hipertensiva. Seu corpo foi sepultado no Cemitério da Boa Sentença, no bairro de Varadouro, onde até hoje a população faz questão de visitar seu túmulo. E, mesmo após os escândalos recentes envolvendo a instituição que leva seu nome, o escritor José Nunes acredita que a imagem do sacerdote permanece intocável. “Padre Zé certamente ficaria triste, mas o que ele construiu é bem maior do que isso”, finaliza. Hoje, 52 anos após sua morte, o hospital segue acolhendo quem precisa, como ele havia sonhado.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 5 de novembro de 2025.