Depois de um mês navegando pelo Mediterrâneo, integrantes da missão humanitária Global Sumud Flotilla deveriam chegar hoje a Gaza, levando alimentos, medicamentos e esperança a um território sitiado, onde mais de dois milhões de pessoas enfrentam fome, escassez de água e ataques constantes. Ontem, as embarcações da missão começaram a ser interceptados pela Marinha de Israel. Até o início da noite, não se tinha informações se todos os barcos haviam sido parados.
Organizada em solidariedade ao povo palestino, a missão é considerada uma das maiores já feitas para a região, com delegações de mais de 50 países empenhadas em abrir um corredor humanitário e romper o bloqueio imposto por Israel. Entre os que embarcaram nessa travessia, está o paraibano João Aguiar, que se define como alguém que “voa o mundo” e, agora, encara as incertezas de estar no front de um dos conflitos mais intensos da atualidade.
“Não aguentava mais assistir pela televisão a cenas horrorosas de um genocídio. Acredito que essa era a minha obrigação [de estar na missão] e eu precisava expressar isso em ações. Precisava dar um passo além”, relata João, que seguiu em alto mar ao lado de outros 12 brasileiros. Em entrevista exclusiva ao jornal A União, o ativista fez questão de ressaltar que não se trata, aqui, de buscar protagonismo individual, mas de assumir uma postura diferente diante do que ele considera “a grande questão moral do nosso tempo”. Dividindo sua jornada com ativistas de diferentes nacionalidades, o paraibano, natural de João Pessoa, afirma estar disposto a arriscar a própria vida para garantir que a população de Gaza tenha acesso a alimentos e remédios. “Estamos entregando nossos corpos por um ideal que envolve justiça e liberdade”, completa.
A dimensão da missão
A Global Sumud Flotilla é resultado da união de quatro grandes coalizões internacionais, entre elas a Freedom Flotilla e o Global Movement to Gaza — da qual João Aguiar também faz parte —, que se articularam para levar ajuda humanitária diretamente por mar. Comboios partiram de portos na Itália, Espanha e Tunísia, formando uma frota de 50 embarcações que cruzou o Mediterrâneo ao longo do último mês. Já em terra firme, centenas de apoiadores garantiram a retaguarda logística, mobilizando os recursos necessários para a ação humanitária. Para João, que também integra a coordenação brasileira, embora a missão impressione pela sua complexidade logística, sua verdadeira força está no simbolismo “de abrir caminho para a ajuda humanitária”. “É uma delegação grande, muito bem estruturada, com apoio de todos os lados. Isso mostra que o povo palestino não está sozinho”, reforça.
Ao longo da rota, o grupo deparou-se com sinais de solidariedade que reforçaram ainda mais a importância da missão. Ele lembra que, em Barcelona e na Tunísia, a despedida foi marcada por manifestações de acolhimento e apoio. “Muita gente nos apoiou. Foi algo que encheu nossos corações de carinho e esperança”, recorda. Depois de escalas na Sicília e ao sul de Creta, a flotilha retomou o curso rumo a Gaza com a certeza de que a parte mais difícil começaria justamente na reta final.
Risco iminente
Segundo o paraibano, o risco de interceptação militar por parte de Israel é uma realidade constante. João conta que, nos últimos dias, barcos israelenses já rondavam a flotilha, exigindo a ativação imediata de protocolos de segurança. “Fomos muito treinados para esses momentos, desde a preparação contra tempestades até a prática da não violência. Nossa cabeça está blindada, sabemos que estamos protegidos pelas leis internacionais”, afirma. Nas suas palavras, qualquer ataque seria “um crime contra a humanidade”, já que a missão transporta toneladas de suprimentos capazes de aliviar a crise humanitária vivida em Gaza. Entre os itens, estão medicamentos, equipamentos hospitalares, alimentos básicos, água e até impressoras 3D para a produção de próteses infantis.
Entretanto, ao chegar ao seu destino, a flotilha não pretende desembarcar: a ideia é deixar a carga em pontos estratégicos e retornar para a Espanha. “Nosso objetivo é abrir esse corredor, para que governos e organizações humanitárias possam trazer cada vez mais ajuda a esse povo tão sofrido”, resume.
Paraibano, sim, senhor!
Mesmo em alto-mar, João Aguiar mantém a Paraíba entre suas memórias mais afetivas. Durante a viagem, tem ouvido Chico César e Chico Corrêa, vozes nordestinas que o fazem lembrar da família e dos amigos em João Pessoa. A música, diz, é uma forma de se reconectar com suas raízes enquanto enfrenta a incerteza da travessia. “Quero mandar um abraço ao povo querido da Paraíba. Sou só mais um paraibano lutador, como tantos outros que sabem o valor da justiça e da liberdade”, afirma. Apesar dos riscos que a missão lhe impõe, João tem a certeza de que vale a pena fazer parte dela, pois dignidade é inegociável.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 2 de outubro de 2025.