Quem imaginaria que uma plantinha tão colorida e comum nos jardins da cidade pudesse esconder benefícios tão importantes? A Catharanthus roseus, ou boa-noite (nome popular), com suas pétalas rosadas e brancas, é presença certa nos quintais, mas o que muita gente não sabe é que ela também carrega propriedades medicinais surpreendentes. Além de embelezar o ambiente, essa planta é uma importante aliada no tratamento de alguns tipos de câncer. Mas, antes de correr para o jardim e fazer um chá, vale lembrar que ela pode ser perigosa e que não deve ser manipulada por conta própria.
Originária da Ilha de Madagascar, na África, a boa-noite encontrou na Paraíba o ambiente perfeito para se espalhar, adaptando-se facilmente ao calor, à seca e à umidade típica da região. Ela existe em todo o Brasil e também é conhecida popularmente como maria-sem-vergonha, vinca e vinca-de-madagascar, a depender da localidade.
Segundo a bióloga Juliana Coutinho, do Jardim Botânico Benjamin Maranhão, em João Pessoa, ela é fácil de cultivar: pode ser multiplicada por sementes, galhos ou estacas e, em pouco tempo, já estará toda florida. Os únicos cuidados são garantir uma terra rica em nutrientes e rega regulares, três vezes por semana. No mais, a boa-noite aprecia sol pleno, sendo ideal para os quintais sempre tão ensolarados da Paraíba.
Riscos à saúde
No entanto, apesar de ser uma planta ornamental, é preciso ter cuidado ao cultivá-la no jardim, pois a Catharanthus roseus pode oferecer riscos à saúde se for consumida de forma inadequada, principalmente por crianças e animais de estimação. “Seu látex contém substâncias que podem ser tóxicas, então não podemos simplesmente plantar flores só pela beleza”, alerta Juliana.
Esses riscos estão ligados à presença de alcaloides, compostos químicos naturais — responsáveis pelo sabor amargo de muitas plantas — que, em excesso, se tornam altamente prejudiciais à saúde. E não importa a cor: tanto a branca quanto a rosa têm as mesmas propriedades — que são comuns à espécie Catharanthus roseus.
Quem reforça esse cuidado é o professor Leandro Medeiros, farmacêutico e pesquisador em Fitoterapia pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Ele explica que, além dos efeitos colaterais comuns, como alucinações, convulsões, diarreia e queda de cabelo, o consumo indevido da planta, principalmente na forma de chás, pode causar danos ainda mais graves. “Há registros de sangramentos e lesões nos rins associados ao uso da boa-noite em preparações caseiras”, reforça Leandro. Sendo assim, não é recomendado o consumo em chás ou lambedores.
Colorida e complexa
Apesar de seu uso popular em diversas culturas, o professor ressalta que não há evidências científicas robustas que comprovem os benefícios da boa-noite no tratamento de diabetes, pressão alta ou feridas, embora haja registros históricos sobre isso. “Na China, a planta tem sido utilizada por suas propriedades benéficas em feridas, pressão alta e tosse. No Caribe, é usada em infecções oculares e diabetes. Já os jamaicanos, tradicionalmente, utilizam um chá de Catharanthus roseus para tratar diabetes”, conta o especialista.
"Acredito que as pessoas precisam ter um olhar diferenciado para a natureza e devem parar de destruí-la"
- Ramôn da Silva
Essa complexidade é o que torna a planta tão intrigante sob o ponto de vista científico. Segundo o biólogo Ramôn da Silva Santos, mestre em Botânica pela Universidade Federal Rural de Pernambuco, a boa-noite possui mais de 70 substâncias descritas na literatura científica que são utilizadas como fármacos. Em tratamentos oncológicos, por exemplo, sua utilização é ainda mais ampla e envolve uma manipulação especializada, voltada à quimioterapia. Extraídas principalmente de suas raízes, caule e folhas, a vincristina e a vimblastina — as mais conhecidas — têm um papel crucial no combate a linfomas e leucemias, impedindo a divisão das células cancerígenas.
Leandro complementa que esses alcaloides são modificados quimicamente em laboratório para ampliar suas aplicações terapêuticas, sendo eficazes também no tratamento de outros cânceres, como o de mama, testículo, pulmão, ovário e sarcoma de Kaposi. “Eles agem bloqueando a multiplicação celular, o que os torna poderosos contra diversos tipos de tumores”, explica o farmacêutico.
Contudo, essas não são as únicas substâncias promissoras da boa-noite. Segundo ele, os cientistas estão investigando outros compostos presentes na planta, como a catacunina, a catarantina e a ajmalicina, com a finalidade de transformá-las em medicamentos quimioterápicos.
Cultivo
Com tantas propriedades medicinais em jogo, a boa-noite está se tornando cada vez mais valiosa para a ciência, trazendo novas possibilidades de tratamento na oncologia. Entretanto, apesar do uso industrial da planta, ela continua florescendo aqui na Paraíba e em outras partes do país sem qualquer risco de extinção — ao contrário de outras espécies. O biólogo Ramôn da Silva Santos enfatiza que ela é cultivada em larga escala, mas de forma controlada. “Isso elimina a necessidade de extrativismo e garante que a planta não esteja em risco”, afirma.
Além disso, Ramôn ressalta que a boa-noite é de fácil cultivo, o que facilita ainda mais sua produção para fins medicinais. Segundo ele, o cultivo controlado é fundamental para garantir o uso sustentável da planta, preservando o meio ambiente e evitando sua retirada indiscriminada da natureza.
“As plantas sempre estiveram do nosso lado, retiramos delas compostos e substâncias importantes para a nossa sobrevivência. Acredito que as pessoas precisam ter um olhar diferenciado para a natureza e devem parar de destruí-la”, finaliza.
Especialistas advertem sobre efeitos colaterais e indicam uso controlado
O uso das substâncias medicinais vem com um preço. Os especialistas concordam que os efeitos colaterais podem ser significativos. De acordo com o biólogo e mestre em Botânica, Ramôn da Silva Santos, ao impedir a divisão celular, esses compostos afetam não apenas as células cancerígenas, mas também as saudáveis, causando desde fraqueza, constipação e dores nos ossos até leucopenia, uma queda perigosa na contagem de glóbulos brancos.
"A maioria dos efeitos adversos desaparece até seis semanas após a interrupção do tratamento"
- Leandro Medeiros
Leandro aprofunda esse ponto, mencionando complicações neuromusculares como perda de coordenação motora, convulsão e até paralisia das cordas vocais. “A maioria dos efeitos adversos desaparece até seis semanas após a interrupção do tratamento, mas, em alguns casos, as dificuldades neuromusculares podem perdurar”, esclarece o farmacêutico.
Não à toa, apesar dos benefícios, o uso da planta como medicamento deve ser conduzido com extremo cuidado e em ambiente controlado. “Não é uma planta que você vai fazer um chá e ficar curado de um câncer. Não é assim que funciona”, reforça Ramôn.
No Brasil, os alcaloides vincristina e vimblastina são aprovados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para utilização na forma de medicamentos, sob supervisão médica. Contudo, segundo o professor Leandro Medeiros, no caso da vimblastina, seu uso só é permitido em ambientes hospitalares para o tratamento de câncer. “São medicamentos que não podem ser administrados fora de clínicas especializadas, devido ao risco elevado de complicações”, complementa Leandro.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 20 de outubro de 2024.