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Política seletiva

publicado: 20/03/2023 12h11, última modificação: 20/03/2023 12h11
Para uns, saúde, educação, moradia e alimentação dignas; para outros, a violência social, cultural e de gênero
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Em plena sociedade moderna, a prática da necropolítica ainda é possível ser verificada em países como a Hungria, a Polônia e o Brasil - Foto: Pixabay

por Alexsandra Tavares*

Na sociedade atual, é comum observar seres humanos com condições de vida totalmente distintas dentro de uma mesma nação. Se por um lado há cidadãos gozando plenamente do direito à moradia, à alimentação digna, saúde e educação de qualidade, além de oportunidade de ascensão social; por outro há moradores sem acesso à renda, emprego, assistência médica, comida, sofrendo todo tipo de violência social, cultural e de gênero. Um dos fatores que contribui para essa realidade é a chamada necropolítica. “A necropolítica é um modelo de governança que determina quem vai viver e quem vai morrer”, resume Luciano Nascimento, observador político, professor da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) e da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

Em plena sociedade moderna, pode-se perguntar como essa prática de gestão política ainda é possível e vista em países como o Brasil, a Hungria e a Polônia, só para citar poucos exemplos. Segundo Luciano Nascimento, mesmo inseridos em uma democracia representativa liberal, moderna, burguesa, iluminista e ocidental, os governantes passam a utilizar um modelo de política seletiva, que determina a inclusão e a exclusão de pessoas no contrato social. Essa postura resulta na distribuição desigual de bens, faltando a essas vítimas da necropolítica o mínimo para a própria existência.

O impacto, porém, dessa política seletiva não se resume apenas às questões econômicas, mas tem força em todos os aspectos da vida individual e coletiva, alimentando atos como preconceito, misoginia, racismo, entre outras violências, degradando a dignidade humana. O professor Luciano enfatiza que tal postura é contrária ao próprio conceito de política, que deveria prever o bem comum para todos, igualitariamente, sem qualquer exceção.

“A necropolítica é um modelo de governabilidade para extinguir determinadas comunidades, determinados extratos sociais que, para esse modelo, não podem fazer parte do contrato social. Ou seja, a necropolítica é a própria negação do sentido de política na sociedade moderna”, frisa Luciano.

Segundo a professora Jeane de Freitas Azevedo, socióloga com experiência em Ciência Política, a “política de decidir quem pode viver e quem deve morrer em uma sociedade” parte de um mecanismo de dominação e de poder que dita a morte de certas populações frequentemente precarizadas nas sociedades.

“O termo foi cunhado por Achille Mbembe, historiador nascido na República dos Camarões e é atualmente professor de História e de Ciências Políticas do Instituto Witwatersrand, em Joanesburgo, África do Sul, e na Duke University, nos Estados Unidos”, informa Jeane.

A professora destaca que o texto de Mbembe cita exemplos de destruição de povos, como a conquista colonial, a escravidão, o direito de coisificar ou matar escravos e indígenas, práticas que, segundo ela, foram também adotadas posteriormente pelos regimes fascistas na Europa.

“É, portanto, um conceito construído sobre a experiência de grupos vítimas da violência colonial. No Brasil, a necropolítica não é diferente, é um resquício das práticas de domínio e escravidão coloniais. Por esse motivo, os grupos historicamente excluídos da nossa sociedade – escravos e indígenas – são os que mais sofrem com ela. Se os descendentes de escravos foram jogados à sua própria sorte numa sociedade marcada pelo racismo estrutural, os povos indígenas, por sua vez, se veem cotidianamente tendo que lutar contra a lógica capitalista que alimenta um discurso utilitarista para desqualificar a sua cultura, suas crenças, sua cosmovisão. Como sabemos, hoje a expansão da fronteira agrícola ameaça essa população, causando o desmatamento, o conflito de terra e a lentidão na demarcação das terras indígenas”.

Jeane acrescenta que num país construído sob a lógica colonial e escravocrata, a necropolítica tende a exacerbar sua atuação nesses grupos historicamente excluídos na sociedade. De acordo com ela, as políticas de viés neoliberal adotadas pelo governo Bolsonaro (PL) mostraram como os indígenas yanomami, por exemplo, foram negligenciados pelo estado.

“O aumento do garimpo ilegal na reserva desses povos fez com que eles ficassem expostos à fome, doenças, à violência e à morte. Durante a pandemia da Covid-19, as tentativas de acabar com o Bolsa Família e outras políticas públicas de inclusão são prova de que o neoliberalismo está diretamente ligado à necropolítica, uma vez que, ao propor o fim da proteção social pelo estado, adotam uma posição anti-humanista, decidindo quem é útil ou não ao acúmulo de capital e ao lucro”, enfoca a socióloga.

Ao comentar sobre a necropolítica no contexto da pandemia de Covid-19, o sociólogo Luiz Gonzaga Firmino Júnior, professor do Instituto Federal da Paraíba (IFPB), levanta um ponto relevante. Ele declara que, diante das ações da política anti-humana da morte, as classes mais abastadas têm menos dependência de boa parcela das políticas públicas. Porém, casos excepcionais, como o da vacinação contra a C ovid-19m podem colocar, praticamente, todos os cidadãos num mesmo patamar de necessidade da iniciativa estatal.

“A omissão inicial do estado brasileiro frente à vacinação levou ricos e pobres à morte. Embora privilegiados com os melhores hospitais particulares, com a superlotação das redes, todos foram afetados”, argumenta o sociólogo.

O professor reconhece, porém, que as classes sociais mais pobres são as principais vítimas da necropolítica e também menciona a situação dos indígenas brasileiros. “Basta olhar para a política de extermínio dos yanomami por meio do abandono das políticas para os povos indígenas em favor dos garimpeiros, madeireiros e até dos narcotraficantes na Amazônia. A ausência do estado permitiu ou até conduziu à morte essas pessoas”, diz Gonzaga.

O que chama a atenção na necropolítica é que a postura seletiva de quem vive ou morre dentro da sociedade não é algo impensado, resultado da má administração dos governos capitalistas, mas uma ação proposital e organizada pelos organismos políticos. “É uma ação política orquestrada, organizada ou patrocinada por um coletivo de poder em desfavor de outross. E só existe porque há ação humana e, portanto, política. Estabelece hierarquias e funções na sociedade que podem ser legitimadoras de determinadas classificações que beneficiam determinados grupos sociais e condenam outros”, completa Luiz Gonzaga.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 19 de março de 2023.