Débora Brito
Agência Brasil
Pelo direito à fé e à diversidade religiosa, representantes de povos de matriz africana reivindicam políticas de proteção e segurança dos terreiros e garantias de manutenção das práticas tradicionais.
Lideranças religiosas de vários estados participaram da 4ª Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Conapir) entoando cantos, relatando casos de violações de direitos e levantando propostas de combate ao preconceito e à intolerância.
“A gente está vendo terreiros e os símbolos do candomblé, das religiões de matriz africana, sendo destruídos por fundamentalistas das mais variadas tendências religiosas. E a gente precisa que esses fundamentalistas comecem a respeitar mais a fé alheia, porque você tem direito a sua fé, tem direito até de não professar nenhuma fé”, disse Erivaldo Oliveira, presidente da Fundação Cultural Palmares.
Segundo Oliveira, a fundação recebeu, desde 2015, cerca de 100 denúncias de violações contra terreiros em todo o país. O especialista em políticas públicas acredita que o número pode ser ainda maior.
“Isso tudo é fruto de um racismo, de um preconceito exacerbado no Brasil e também da falta de conhecimento, porque as pessoas do Brasil não se acostumaram com a cultura afro-brasileira e não entendem o que é um terreiro, a umbanda e o candomblé”, declarou.
Uma das propostas levantadas durante a conferência foi o fortalecimento da Lei 10.639, que obriga as escolas a incluírem no conteúdo programático o ensino da história da África e da cultura afro-brasileira.
“Quando você implementa a [Lei] 10.639, você está fazendo um trabalho com uma criança para que ela se torne um adulto que vai respeitar, ela não vai ser um adulto intolerante”, defendeu a mãe de santo Tuca D´Osoguiã, integrante do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR).
Mãe Tuca afirmou que uma das prioridades eleitas durante a conferência é lutar pelo arquivamento da ação que tramita no Supremo Tribunal Federal contra o sacrifício de animais para fins religiosos. Os praticantes da fé de matriz africana querem manter as práticas de abate de animais destinados à alimentação nos cultos dos terreiros. “Se esta ação passar no STF, pode virar uma jurisprudência e isso acaba com nossa cultura e com a segurança alimentar do nosso povo”, disse Mãe Tuca.
Transformação
Na madrugada do dia 27 de novembro de 2015, Adna Santos, conhecida como Mãe Baiana de Oyá, acordou com o terreiro em que morava em chamas. Em meio a uma onda de atentados que ocorreram contra terreiros de candomblé no entorno do Distrito Federal naquele ano, o espaço do terreiro Ylê Axé Oyá Bagan foi incendiado, deixando vários santos e instrumentos religiosos completamente destruídos.
Ninguém que dormia na casa ficou ferido. O caso se tornou uma das histórias mais emblemáticas de intolerância religiosa do país e mobilizou a atenção de órgãos da Justiça e de defesa dos direitos humanos. Segundo a Polícia Civil do DF, o incêndio foi motivado por um curto circuito.
Três anos depois, o incidente é lembrado por Mãe Baiana em autobiografia lançada ontem (30) na 4ª Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Conapir). Ao narrar sua história de vida e como se tornou uma das principais referências na luta pela igualdade, Mãe Baiana quer mostrar que é possível transformar uma experiência dolorosa de preconceito em oportunidade de luta e superação.
“Espero que as pessoas, ao lerem esse livro, se sintam fortes, achem fortaleza nas palavras para que em momentos difíceis da vida saibam segurar, botar o pé firme no chão, olhar para cima e se reerguer”, declara.
No livro Chão e Paz, Mãe Baiana fala de resistência, fé e ancestralidade. Com o terreiro já restaurado, a ialorixá também faz um manifesto político-religioso para celebrar a paz entre os povos e exaltar o fim das discriminações.
“A vida é cheia de surpresas boas e ruins. Para mim, esse tempo atrás foi uma surpresa terrível, mas que no final eu fiz com que ela não causasse tanta dor como causou naquele momento. O terreiro nunca fechou. Mesmo nas cinzas a gente atendeu as pessoas que bateram a nossa porta com fome, com sede, doente, procurando um ombro, mesmo em cima das cinzas nós atendemos o nosso povo.”
Pontos de cultura e acolhimento
Os grupos de matriz africana e a Fundação Palmares defendem a elaboração de projetos públicos de saúde e cultura que possam ser desenvolvidos junto às comunidades próximas aos terreiros. A ideia é transformar os terreiros em pontos de cultura e locais de referência para acolhimento de pequenas demandas sociais.
“O terreiro abriga muita gente e sempre tem uma comunidade ao seu redor. [Com os projetos], essas pessoas vão começar a frequentar meu terreiro sem medo, sem preconceito. Não se combate racismo, preconceito e intolerância com desconhecimento. A gente tem que mostrar o que é uma religião de matriz africana para que as pessoas entendam de uma vez por toda que ali não tem demônios, ali tem elementos maravilhosos da natureza”, declarou Oliveira.
Mapeamento
A Fundação Cultural Palmares está elaborando um mapeamento nacional para levantar o número e a localidade dos terreiros de candomblé e outras manifestações da cultura afro-brasileira. A iniciativa já foi implantada no Distrito Federal, que registrou a presença de 330 terreiros. Segundo a fundação, este número pode ser maior. Cerca de 60 líderes de terreiros não aceitaram ser recenseados por medo de represálias.
Conapir
Negros, ciganos, indígenas, grupos de lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e transexuais (LGBTs) e religiosos de matriz africana se reúnem na 4ª Conapir desde a última segunda-feira (28). Os diferentes grupos étnicos e de minorias discutem junto a especialistas, pesquisadores de várias áreas e gestores públicos estratégias de enfrentamento ao racismo e outras formas de discriminação racial e étnica.
O evento terminou ontem (30) com a divulgação de um documento com todas as propostas levantadas durante os debates. A Conapir teve como tema “O Brasil na Década Internacional do Afrodescendente”, com destaque para os temas de reconhecimento, justiça, desenvolvimento e igualdade de direitos. O evento foi organizado pelo Ministério dos Direitos Humanos, por meio da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) e do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR).