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suicídio

Quebrar o tabu é o primeiro passo

publicado: 29/09/2025 08h26, última modificação: 29/09/2025 08h26
Não falar sobre o tema ou mantê-lo restrito ao período do Setembro Amarelo reforça estigmas e limita o acolhimento
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Ao evitarmos o assunto, deixamos mais gente sofrendo sozinha | Ilustração: Bruno Chiossi

por Priscila Perez*

Ansiedade, depressão, estresse. Mesmo que a saúde mental já seja encarada com alguma naturalidade, ainda existem temas quase impronunciáveis. O suicídio é um deles, talvez o maior tabu de todos. Mas o silêncio não salva vidas nem faz o problema desaparecer — pelo contrário. Ao evitarmos o assunto, deixamos mais gente sofrendo sozinha. E esse sofrimento não é nada abstrato: só na Paraíba, por ano, a cada 100 mil habitantes, nove têm a vida interrompida desta forma, segundo dados do Mapa da Segurança Pública 2025. No Brasil, são 44 vítimas por dia. Ainda que campanhas como o Setembro Amarelo ajudem a tornar  possível essa conversa difícil, é preciso ir além e acolher quem está em dor, transformando a escuta em prevenção.

Raízes históricas

Mas, se o problema é tão concreto, por que, ainda hoje, existe todo esse tabu em torno dele? Para responder, é preciso voltar no tempo e entender que a raiz do problema está diretamente ligada à forma como a sociedade, ao longo dos séculos, passou a enxergar a vida, a morte e a própria dor. Segundo Fátima Saionara Leandro, doutora em História, socióloga e professora de Filosofia do Instituto Federal da Paraíba (IFPB), o gesto já foi compreendido como ato de honra, pecado e crime, antes de ser tratado como questão de saúde pública. “Na Idade Média, com o avanço da moral cristã, o suicídio se tornou um pecado imperdoável. Já na virada para o período moderno, passou a ser tratado como crime, a ponto de o corpo ser exposto publicamente, enquanto os bens da família eram confiscados”, explica. Ao mesmo tempo, jornais da época publicavam cartas e bilhetes de despedida, evidenciando um problema que, embora condenado, não podia mais ser ignorado pela sociedade.

Patologização

Foi apenas na virada para o século 20 que o ato passou a ser enquadrado como questão de saúde mental, mas com ressalvas. Com o fortalecimento da psiquiatria como ciência e a criação de instituições especializadas, o suicídio foi, então, medicalizado — e o que antes era julgado sob a ótica moral passou a ser tratado como patologia. Mas essa leitura estritamente clínica trouxe um efeito colateral controverso que persiste até hoje: o abafamento do debate social, como se o contexto de vida não interferisse e tudo se resumisse ao indivíduo. “Houve uma proibição geral na sociedade de que se falasse sobre o suicídio. E, na medida em que se silencia o tema, crescem os dados”, lembra a professora Fátima Saionara. Ou seja, mesmo com o aumento expressivo dos casos no mundo, os números eram sistematicamente ocultados, tirando o tema das estatísticas. “Há pouco tempo que a gente tem o Setembro Amarelo colocando o assunto em evidência. Antes, se você buscasse a palavra ‘suicídio’, até no site da Organização Mundial da Saúde [OMS], dificilmente encontrava algo”, observa.

Colorização das datas

Entretanto, até essa visibilidade trazida pela campanha exige cautela. Como a sensibilização acontece de forma concentrada em um único mês, ela nem sempre vem acompanhada de escuta e acolhimento reais. Para a especialista, essa “colorização dos problemas sociais” precisa ser repensada. “Quando a conscientização se resume a um único mês do ano, o debate se torna perigoso se não for contínuo. Pode até estimular, porque é um assunto mal resolvido entre nós. Nunca falamos sobre ele e, de repente, está nas redes sociais e na mídia”, analisa. Essa superficialidade também ajuda a explicar por que a sociedade ainda não lida com o tema de forma madura. A prova disso está na forma como livros e filmes, muitas vezes, romantizam o ato ou banalizam a dor de quem sofre, reforçando estigmas em vez de abrir espaço para um diálogo mais profundo. “É uma conversa difícil porque envolve vida, morte, sofrimento e culpa, elementos que carregam um peso simbólico enorme”, completa.

Émile Durkheim

Não à toa, não dá para ignorar a dimensão sociológica que o tema carrega. Fátima lembra que Émile Durkheim, pensador do século 19, foi pioneiro ao tratá-lo como um fenômeno social, influenciado por fatores como pertencimento e crises coletivas. Uma ideia que segue válida até hoje, já que somos continuamente atravessados pela sociedade e suas grandes questões, como desemprego, instabilidade política e crises econômicas. “E tudo isso fragiliza o indivíduo e contribui para uma sensação de desamparo. Hoje, vivemos hiperconectados, mas também mais isolados do que nunca”, afirma Fátima. É por isso que, segundo ela, a questão precisa ser encarada de forma multidisciplinar, reconhecendo que nossos desejos e dores também são moldados pela sociedade em que vivemos.

Romper o silêncio é importante na mudança que se quer fazer

Mas romper o silêncio histórico é apenas o primeiro passo. Para transformar reflexão em mudança, é preciso agir de forma contínua — algo que o Núcleo Integrado de Prevenção e Posvenção do Suicídio (Nipps) vem fazendo desde 2019 em João Pessoa e, agora, no município de Sapé. Para a psicóloga Iracilda Cavalcante de Freitas, fundadora e presidente da associação, prevenção não é apenas impedir o ato em si, mas evitar que ele se transforme na única resposta possível para a dor, o que começa muito antes da crise. “Precisamos mostrar às pessoas que a dor é passageira, seja ela causada por divórcio  ou luto familiar. Muitas vezes, são questões que parecem sem solução, mas são momentâneas. Quando o indivíduo encontra saídas, também encontra motivos para viver”, diz. Por isso, ela defende que a saúde mental esteja presente no dia a dia, mostrando que pedir ajuda não é sinal de fraqueza, mas um ato de coragem. A raiz do problema, segundo ela, está na forma como as pessoas encaram os desafios da vida — algumas lidam melhor, outras nem tanto. “A melhor prevenção é ensinar o indivíduo, desde pequeno, a resolver suas questões”, reforça.

O trabalho do Nipps envolve escuta qualificada e uma rede de apoio comunitária, formada por profissionais voluntários que oferecem um atendimento integral, com direito a apoio psicológico e nutricional, práticas terapêuticas e até orientação financeira. São três meses de acompanhamento contínuo. “O Nipps é um serviço integral, porque entendemos que o sujeito é um sujeito integral. Se a pessoa com ideação suicida não consegue resolver sua situação financeira, ela terá escuta psicológica e assessoria financeira. Precisamos agir diretamente na causa”, explica Iracilda. Esse apoio multidimensional é fundamental para quebrar o isolamento e devolver ao indivíduo a sensação de pertencimento, mostrando a ele que não está sozinho. “Essa é a mensagem mais poderosa para alguém que pensa em desistir”.

Sentimento de culpa

Outro eixo central desse trabalho é a posvenção, termo cunhado pelo psicólogo americano Edwin Shneidman, em 1975, que envolve o cuidado com as famílias enlutadas. A psicóloga destaca que quem perde alguém por suicídio vive um luto marcado por culpa, vergonha e silêncio. “Integrá-lo é acolher sua dor e prevenir a reação suicida”, resume. Para ela, cuidar dos enlutados significa quebrar esse ciclo de sofrimento, reduzindo o risco de novos casos.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 27 de setembro de 2025.