por Iracema Almeida
“Parecia que eu estava em um sonho, mas simplesmente era a realização dele, com o registro do nosso cantinho. A gente se escondia aqui, mas agora a gente não se esconde mais! Agora, só em você chegar em um lugar e alguém perguntar qual seu endereço? E eu poder dizer: moro na Vila do Amanhecer, mostrar meu comprovante de residência é mais do que dignidade, é passar a existir como parte da cidade!”.
A celebração está na fala de Severina Oliveira do Nascimento Monteiro, 43 anos, artesã e moradora da cidade do Conde, Litoral Sul paraibano, que durante 16 anos viveu sem endereço registrado, sem energia elétrica ou acesso de locomoção viável. Que ainda lembra de todas as etapas que modificaram a comunidade: “A primeira coisa que fizeram foi a instalação dos postes e extensão da rede pública de iluminação, depois a medição dos terrenos, a abertura de estradas e ruas na largura correta, de sete metros. Vivíamos como se fosse em uma invasão”.
Quando se fala em construção civil, logo se pensa na responsabilidade ambiental e social de uma obra. Porém, essas atribuições vão mais além do que se preservar a natureza ou gerar oportunidades de conhecimento para a mão de obra, ou seja, aos colaboradores envolvidos nos equipamentos de edificação. É também devolver a dignidade de seres humanos que por muito tempo viveram longe das estatísticas de urbanização e da sociedade nas quais estão inseridos. Pioneira dessa iniciativa na Paraíba, a cidade do Conde é um exemplo da aplicação desse dever da engenharia e da arquitetura e urbanismo que, aos poucos, está conseguindo modificar uma realidade que pode ser encontrada nos 5.568 municípios brasileiros.
Garantir a regularização fundiária de um terreno também é responsabilidade social da construção civil, sobretudo do poder público. Então, como forma de colocar em prática esse dever, instituído pela Lei Federal 11.888/2018, o Conselho de Arquitetura e Urbanismo da Paraíba (CAU-PB), em parceria com a prefeitura municipal, que já atuava através do Escritório Popular de Arquitetura do Conde (EPA) proporcionou o sonho do chão de direito para 44 famílias que moram de forma irregular na cidade. O processo começou no fim de 2018 e passou pelas etapas de medição das terras, estudos das vegetações e relevos, viabilidade da preservação do mangue e rio existentes na região até ser concluído no fim de 2019, quando dos os moradores da comunidade Vila do Amanhecer receberam seu chão de direito, documento registrado em cartório que legitima a posse do terreno; todos com a mesma medida de 10 metros por 25 metros.
A artesã não segurou a emoção ao relatar os difíceis anos que passou até conseguir a posse do seu lar. “Vivíamos todos sem uma moradia certa, arriscando até perder o que tínhamos construídos, mas esse projeto chegou para nos ajudar a conquistarmos nossos terrenos e o nosso comprovante de residência. Passávamos por dentro dos matos para irmos trabalhar ou se quiséssemos ir ao posto de saúde ou levar nossos filhos às escolas”. Esse era o dia a dia de quem morava na Vila do Amanhecer, que foi transformada a partir do EPA.A vila surgiu através de doações dos terrenos feitas pelo proprietário das terras, mas até a chegada do EPA todos moravam de forma ilegal. Foi a partir da iniciativa do CAU-PB que a construção civil tomou para si essa responsabilidade fundiária e fez parceria com o município para por em prática a assistência profissional para quem não tinha condições de pagar. “Existe uma lacuna entre os profissionais especializados e a camada mais pobre da população, porque a construção civil gira em todas as instâncias e não só no alto padrão, assim como a sustentabilidade também deve estar em todas as camadas sociais. Por isso quando iniciamos as obras nessa comunidade, levamos em consideração a área de mangue que existe lá, como também a forte incidência do sol que foi primordial para a instalação da energia solar que abastece a iluminação pública das ruas”, explicou a arquiteta Jakeline Silva, 33 anos, que é doutoranda em densidade urbana, construção social e ambiental.
A profissional destacou que chegou o momento de se desmistificar a construção civil, para que essas profissões e seus profissionais precisam cheguem perto dessas populações carentes. Para ela, é preciso uma quebra radical nesse paradigma, senão vai se inviabilizar a vida nas cidades. “O acesso ao profissional de arquitetura foi elitizado durante os anos, isso é uma coisa que pessoalmente luto muito contra, porque todo mundo tem que ter, em todas as classes sociais. Quando se fala em engenharia e arquitetura a gente pensa logo em alto padrão, automaticamente. São profissionais com valor agregado mais alto e isso tudo precisa deixar de ser um estigma. Não pode, hoje em dia, existir uma prefeitura que não preste assessoria às comunidades que não podem pagar por esse serviço”. Ainda existe uma lacuna entre esse profissional e a camada mais pobre da população, porque a construção civil gira em todas as instâncias e não só no alto padrão e a sustentabilidade também a todas as camadas sociais.
A faxineira Maria Aparecida Dutra dos Santos, 45 anos, fez questão de expor sua satisfação, por ser uma das contempladas com as melhorias habitacionais e regularização fundiária feitas através do EPA. “Foi muito emocionante! Passei uma semana sem conseguir dormir e sem acreditar que nosso sonho estava sendo realizado depois de tantos anos! Meus filhos chegaram aqui todos pequenos, cheguei sem nada, construímos uma casa de taipa, no terreno que foi doado, mas não era registrado e agora está tudo legalizado. Hoje agradeço muito essa iniciativa por eu olhar para tudo que passamos e dizer: eu tenho um endereço!”. Ela acrescentou que o programa foi de extrema importância para que tivesse a dignidade de uma moradia, porque onde chegava era desconhecidas, como se a gente não tivesse um registro de nascimento porque não tinha residência legalizada. Através desse documento passou a ter energia dentro de casa. “Até agradece por receber essa conta, mesmo ela estando cada vez mais cara (risos). Agora, temos até energia solar nas ruas”.
O meio ambiente continua preservado por todas as 44 famílias da vida. “A gente respeita a área de mangue, nossos terrenos não invadem essa parte. Não derrubamos as árvores que estão em nossos lotes, porque elas nos ajudam a manter um clima agradável dentro de nossas casas e não jogamos lixo no rio. A gente cuida com muito zelo da nossa comunidade”, comentou a moradora Maria Aparecida. Todos os lotes acata a distância de 30 metros da margem do rio e sua encosta, conforme a orienta a legislação ambiental.
Vale ressaltar que projetos de Assistência Técnica Habitacional de Interesse Social (ATHIS) também pensam na preservação dos recursos naturais em todas as etapas das obras. A arquiteta Jakeline comentou que desde 2015 a sustentabilidade deixou de ser um objetivo e passou a ser um requisito da construção civil. Deixando de ser um objetivo e passa a ser parte do processo.A própria rotina do mercado imobiliário está mais voltado à construção muito mais ligada com a engenharia, mas verdade é um caminho duplo. O profissional de arquitetura e urbanismo que vai entender qual o organismo da cidade e qual o local onde se vai construir para que esse projeto seja viável. A responsabilidade social e ambiental se inicia no projeto, onde são observadas características como o entorno urbano, os acessos e tipo de mobilidade que vai ser produzido para que a edificação tenha o acesso facilitado, não agrida o meio ambiente e esteja em um local que tenha um respaldo para ser construído.
Conde é o primeiro município implantar lei de assistência técnica gratuita na Paraíba
A Lei Federal 11.888/08 garante o direito à assistência técnica gratuita para projetos de engenharia e arquitetura para famílias do Brasil com renda de até três salários mínimos, entretanto após os quase 13 anos que está vigor poucos são os municípios que cumprem a determinação. Na Paraíba, por exemplo, apenas a cidade do Conde aplica a legislação, a partir do Escritório Popular de Arquitetura (EPA) que atua na elaboração de projetos para a construção do crescimento ordenado das comunidades e bairros do município.
Desde sua criação, essa lei também é chamada popularmente com o ‘SUS da arquitetura’, por suas características de assistência pública para quem mais precisa. Afinal, através dela é possível assegurar moradia digna aos brasileiros, regularizando lotes em comunidades, promovendo a qualidade de vida e a reorganização dos espaços públicos, com otimização de custos e preservação do meio ambiente.
O CAU-PB foi quem lançou o edital para chamar a responsabilidade dos profissionais e da arquitetura para a função social da profissão. Pois é um aspecto de todas as profissões, mas na engenharia e na arquitetura se articulava muito pouco, por ser profissões elitistas. Então capacitou os arquitetos e fez parceria com prefeitura, que não tinha mão de obra qualificada nem recursos suficientes.Além da regularização fundiária, o EPA do Conde – que surgiu em 2018 – também atua em projetos de arquitetura e urbanismos voltados para reformas habitacionais. De acordo com a coordenadora do EPA, até o momento, por conta da pandemia da covid-19, foram realizadas as reformas em quatro casas do município, mas outras 20 residências já foram selecionadas para receberem as melhorias, a partir dos próximos meses. “A gente elenca as necessidades das comunidades e viabiliza as obras. Fazemos o estudo inicial e através de edital iniciamos os projetos em que o morador é participante desse processo, atuando como pintor, ajudante de pedreiro, carpinteiro, por exemplo. Assim, viabilizamos a geração de uma renda para a família e a otimização da obra”, pontuou a arquiteta Jakeline Silva.
A intenção do EPA é incorporar esse processo de responsabilidade social nos pequenos núcleos de comunidades que possuem deficiência estrutural. Além de resultar na diminuição do ciclo de degradação da marginalização dos locais menos favorecidos, que acaba ultrapassando o urbano e entrando na casa das pessoas. A ideia é viabilizar as reformas entre os próprios moradores, envolvendo-os nesse processo e que sejam remunerados pelos serviços, contribuindo com a melhoria de sua própria casa.
“Se você aí em uma comunidade que tem um arruamento e minimamente uma organização, a partir disso a gente consegue trazer esse resultado aos moradores e marginalidade começa a diminuir. Porque a dignidade e o empoderamento dessa comunidade é um ciclo de trabalho, educação e saúde. A gente acaba mostrando aos jovens que ali é sua casa, um cuidado com a própria família, e a geração dessa dignidade vai alcançando outros níveis culturais”, ilustrou a coordenadora do escritório popular de Arquitetura. Esse é mais um viés da responsabilidade social, ambiental e cultural da construção civil.
“Esse projeto melhorou muito nossa morada! Aqui em nossa casa, levantaram as paredes para que houvesse mais circulação do vento, trocaram as portas, rebocaram a paredes” contou o morador da comunidade Terras Belas, Gilson dos Santos Silva, 49 anos, que trabalha com sucata em geral. Dona Joana Antônia da Conceição, 81 anos, também comemora as melhorias e ressalta que não tinha nem banheiro dentro de sua casa. “Minha casinha era toda acabada, as telhas caíam e tomávamos banho e fazíamos as necessidades em um vala, lá no muro”, relembrou a idosa.
Em 2009, também foi criado o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social – através da Lei 11.124 – subsidiado com verbas oriundas do Orçamento Geral da União, de doações feitas por pessoas físicas ou jurídicas, organizações de cooperação internacionais e nacionais, tributos da construção civil e do Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social.
Maioria da população não tem acesso a profissionais da construção civil
O déficit no acesso à construção civil e de Assistência Técnica Habitacional de Interesse Social (ATHIS) ultrapassa 85% no país, o equivalente a mais de 58,6 milhões de famílias. Com o objetivo de diminuir esse percentual, desde 2012 o Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU-BR) vem promovendo a aproximação desses profissionais com as comunidades em vulnerabilidades estruturais e sociais, inclusive com a destinação de verbas para financiar os projetos residenciais e a realização de cursos, capacitações e oficinas sobre como atuar em pequenas construções.
Segundo o CAU-BR, apenas cerca de 70% das famílias realizam autoconstruções e apenas 7% construíram suas casas a partir de projetos arquitetônicos. No entanto, a contratação de um arquiteto e urbanista é essencial para se evitar o desornamento das cidades e manter a sustentabilidade da urbanização.
*Texto publicado originalmente, em versão reduzida, no impresso do dia 31 de agosto de 2021.