Paredes derrubadas, concreto excedente, restos de cerâmica, madeira, vidro, plástico. Tudo isso, somado, forma o resíduo da construção civil, um dos mais volumosos do ambiente urbano. Com o ritmo acelerado das obras em João Pessoa e em outras cidades paraibanas, esse tipo de lixo tem crescido de forma significativa. Entretanto, iniciativas públicas, privadas e acadêmicas mostram que o entulho não precisa ser necessariamente um problema: pode virar parte da solução.
No Brasil, esse tipo de resíduo já representa cerca de 50% do total de lixo urbano. Na Paraíba, os números exatos ainda são escassos, mas o que se vê nos canteiros confirma a tendência nacional. A construção civil segue crescendo, seja com grandes obras públicas de infraestrutura, seja com o mercado imobiliário que avança de forma acelerada. O impacto ambiental precisa ser enfrentado com planejamento, tecnologia e responsabilidade.
A legislação ambiental estabelece que o gerador (empresa ou particular) deve se responsabilizar pelo manejo correto do que produz: desde a separação adequada até a destinação final. Isso inclui não só impedir o descarte irregular em terrenos baldios ou margens de rios, como também aproveitar o que pode ser reciclado, reduzindo o impacto ambiental e, muitas vezes, os custos da própria obra.
Um exemplo é a Usina de Beneficiamento de Resíduos Sólidos da Construção Civil (Usiben), em João Pessoa. Administrada pela Autarquia Especial Municipal de Limpeza Urbana (Emlur), a usina tem capacidade instalada de 20 m3 por hora. Contudo, a Emlur coleta quase 400 toneladas ao dia de material que, muitas vezes, é misturado a resíduos domiciliares, fruto de descarte irregular. Isso impede que os rejeitos da construção civil sejam beneficiados e acabem indo para o aterro sanitário.
“Nem todos os resíduos de construção e demolição da cidade são destinados à Usiben, porque há outros locais não públicos de descarte devidamente habilitados para tanto. No entanto, a Emlur busca constantemente fiscalizar e conscientizar para que sejam destinados adequadamente o máximo possível de resíduos sólidos gerados na cidade”, afirma Emanoel Lopes, gestor da usina.
Os resíduos que chegam à Usiben são processados e dão origem a outros tipos de materiais. O concreto vira pó de brita, cascalhinho, brita 19 e macadame, um tipo de pavimento feito de brita compactada para ser utilizado em estradas. Já a metralha beneficiada é transformada em bica corrida. Esses insumos são utilizados pela Secretaria de Infraestrutura, responsável por cuidar da pavimentação, terraplenagem e recuperação das ruas de João Pessoa.
Crime ambiental
O grande desafio, segundo o superintendente da Emlur, Ricardo Veloso, é afastar a atuação dos transportadores irregulares, que descartam os resíduos de construção civil (RCC) em diversos pontos da cidade, cometendo crime ambiental. “Nos dias 15 e 16 deste mês, a Emlur recolheu mais de 300 toneladas de RCC em um único ponto no bairro do Cristo Redentor. A finalidade maior da Usiben é facilitar o acesso das pessoas a uma destinação ambientalmente adequada”, destaca.
Para coibir essas ações, a Divisão de Fiscalização da Emlur conta com o apoio da população para denunciar e registrar o descarte irregular. O registro em foto da placa do veículo que faz o descarte irregular pode ser enviado à Emlur por meio do Aplicativo João Pessoa na Palma da Mão. O descarte irregular de resíduos é um ato ilícito e punível com multa, que pode chegar a 400 Unidades Fiscais de Referência (Ufir), equivalente à quantia de R$ 20.572.
Setor privado devolve restos de obras à cidade com nova função
O reaproveitamento não só evita o acúmulo de lixo como também fecha um ciclo virtuoso: o que seria descartado volta ao espaço urbano em forma de melhoria para a população. Do lado das empresas, o setor privado também tem buscado respostas e formas de se adequar à obrigação legal. Grandes construtoras que atuam na Paraíba, como a MRV, vêm implementando estratégias para reaproveitar o que antes era descartado. Um dos exemplos é o uso do concreto excedente de caminhões-betoneira, que é transformado em peças pré-moldadas nos próprios canteiros: meio-fios, pisos, ladrilhos e guias.
A empresa também separa resíduos como papelão, vidro e plástico, destinando esse material para cooperativas locais. A prática reduz a geração de lixo, diminui os custos com transporte e beneficia comunidades envolvidas com reciclagem. Reaproveitar o concreto nas obras, afirma o gestor de obras da MRV na Paraíba, Diogo Campos, ajuda a diminuir o lixo e o transporte de entulho, reduzindo também a poluição.
“Quando usamos o concreto que sobra dos caminhões-betoneira para fazer peças pré-moldadas, evitamos jogar esse material fora como lixo comum da construção. Isso ajuda a diminuir a quantidade de entulho que vai para os aterros e também reduz a necessidade de produzir e transportar novos materiais, o que acaba diminuindo a emissão de gases que prejudicam o meio ambiente”, explica.
Esse tipo de economia circular no setor da construção cumpre a legislação e demonstra que é possível que os resíduos que antes eram tratados como problema passem a representar economia, eficiência e até oportunidade de negócio. “Entre os principais critérios para a aquisição de materiais mais sustentáveis, estão a análise do ciclo de vida dos materiais, priorizando aqueles com menor impacto ambiental; a certificação de origem, com preferência por insumos que atendam a normas e selos ambientais reconhecidos; e a viabilidade de reutilização e reciclagem”, completa o gestor da MRV.
Ainda há desafios. A falta de informação, a ausência de fiscalização efetiva e o desconhecimento sobre os benefícios do reaproveitamento dificultam a ampliação dessas práticas. Pequenos geradores, como reformas residenciais, nem sempre têm acesso às estruturas adequadas para destinar corretamente seus resíduos. E muitas cidades do interior ainda carecem de políticas públicas específicas ou equipamentos como usinas de beneficiamento.
Pesquisa transforma o que sobra e aponta caminhos sustentáveis
Nas universidades, ações de manejo e beneficiamento desse tipo de resíduo também geram preocupação e oportunidades. No Campus I da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), desde 2015, um projeto de gestão ambiental mapeia os materiais oriundos de obras realizadas dentro do campus. A iniciativa nasceu na Comissão de Gestão Ambiental da UFPB — em parceria com professores das engenharias Civil e Ambiental — e, hoje, é coordenada por Joácio Morais, também à frente do Laboratório de Pesquisa em Sistemas Ambientais Urbanos (LPSAU).
“O intuito era reaproveitar os resíduos gerados nas obras internas e, junto aos laboratórios, buscar as melhores técnicas para beneficiamento e aplicação desses materiais reciclados em novas obras dentro da própria universidade”, conta. Segundo ele, o projeto já atinge 100% da separação de resíduos de classe A, como concreto, argamassa e blocos cerâmicos. Parte desse material é encaminhada para usinas de beneficiamento em João Pessoa, mas outra parte é processada na própria instituição, com apoio do Laboratório de Materiais de Construção (Labeme), parceiro técnico na iniciativa.
Apesar dos avanços, o projeto enfrenta obstáculos. “Hoje, estamos apenas na fase de coleta e buscando novos parceiros para aplicar o material beneficiado. Precisamos reativar algumas colaborações dentro da própria universidade”, admite. Ainda assim, a UFPB afirma cumprir a legislação ambiental e já demonstra como a separação correta pode reduzir impactos ambientais e abrir caminhos para soluções sustentáveis.
Morais alerta para a baixa qualidade da separação feita nos canteiros, mesmo quando há intenção de cumprir a legislação. Materiais incompatíveis são misturados e enviados às usinas, que acabam sobrecarregadas, tendo que lidar com resíduos perigosos, como manta asfáltica e tinta, que não deveriam estar ali. “Se as construtoras separassem direitinho, o que fosse reciclável seria aproveitado e o que não fosse teria a destinação adequada”, resume.
Mais do que uma exigência legal, o reaproveitamento dos resíduos representa um ganho ambiental e econômico para toda a sociedade. “A grande vantagem é economizar recursos naturais. A areia e a brita usadas nas obras vêm da mineração e das margens de rios. Ao evitar essa extração e usar materiais reciclados, a cidade ganha o meio ambiente ganha, e a construtora também se beneficia”, pontua.
O caminho para uma construção mais sustentável, segundo ele, passa por uma mudança de cultura no setor e pelo fortalecimento de políticas públicas que incentivem, fiscalizem e reconheçam as boas práticas. “A gente precisa parar de ver o entulho como lixo. Ele pode ser recurso, pode voltar à cidade com nova função. Basta tratarmos isso com a seriedade que o tema merece”.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 27 de julho de 2025.