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Três décadas do Santo Daime na Paraíba

publicado: 16/10/2023 12h13, última modificação: 16/10/2023 12h13
Foi pelas mãos de um ex-guerrilheiro que os paraibanos começaram a ter conhecimento da existência e prática dessa religião genuinamente brasileira, baseada numa bebida feita do cozimento do cipó jagube e da folha de uma herbácea
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Festejo daimista no Céu de Campina - Fotos: Divulgação
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Sessão de Concentração e Meditação Daimista
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Alex Polari, sua esposa e Rômulo Azevedo
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Xico Nóbrega, atual dirigente do Céu de Campina
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Mestre Irineu, fundador da religião do Santo Daime
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Sebastião Mota de Melo
Final de um festejo daimista no Céu da Campina.jpeg
Sessão de Concentração e Meditação Daimista.jpeg
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Há 30 anos chegava à Paraíba o Santo Daime, religião genuinamente brasileira fundada no Acre pelo maranhense Raimundo Irineu Serra, na década de 1930, tendo como base o uso sacramental da bebida de nome primitivo ayahuasca. O contato dos paraibanos com a até então desconhecida doutrina ocorreu durante o II Encontro da Nova Consciência (ENC) realizado em 1993, em Campina Grande, durante o período de Carnaval daquele ano.

E foi pelas mãos de um ex-guerrilheiro que o Santo Daime, bebida feita a partir do cozimento do cipó jagube (Banisteriopsi caapi) e da folha de uma herbácea de nome rainha (Psychotria viridis), usada para fins espirituais e medicinais pelos povos originários da Amazônia Ocidental, que a Paraíba começou a ter conhecimento da existência, das práticas, as finalidades, os fundamentos e a que ela se propõe.

O ex-guerrilheiro e escritor Alex Polari de Alverga, fundador da Igreja Céu da Montanha, em Visconde de Mauá, no Rio de Janeiro, foi o responsável por trazer a doutrina à Paraíba, ao participar do ENC em Campina Grande, para lançar o livro ‘O Guia da Floresta’, com os ensinos de Sebastião Mota de Melo, principal seguidor do mestre Irineu e responsável pela expansão de igrejas no Brasil e pelo mundo.

“Ele foi ao Acre fazer um documentário com o Padrim Sebastião e se converteu ao Daime. Muitos anos depois estava em Campina lançando o seu segundo livro contendo as palestras do seu guru. Ainda publicaria uma terceira obra do gênero”, relata o jornalista Xico Nóbrega, atual dirigente da Igreja Céu da Campina, que está completando 30 anos do seu núcleo. Alex foi um preso político durante muitos anos, mas anistiado.

O evento acabou por ser um divisor de águas para a propagação da religião entre os paraibanos, considerando que, já naquele II Encontro da Nova Consciência, várias pessoas presentes ao evento foram iniciadas no Daime, entre alguns nomes o pastor presbiteriano Nehemias Marien.

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Xico Nóbrega, atual dirigente do Céu de Campina

Diante do avanço do conhecimento e das práticas da doutrina, sete meses após o inicial contato com a doutrina, em 15 de agosto de 1993, ocorreu a reunião inaugural do núcleo do Céu de Campina, a primeira igreja daimista fundada no Nordeste, inaugurada em 11 de outubro do ano seguinte nos arredores da cidade de Lagoa Seca, região polarizada por Campina Grande, sob a presidência do jornalista Rômulo Azevedo. Fundada e legalmente constituída, a crença passou a enfrentar significativo preconceito, principalmente pela desinformação em torno dela nos anos de 1990, visto o uso da bebida, que muitas vezes chegou a ser confundida como droga. “Desde os anos de 1980, houve muito debate, proibições e liberações governamentais da ayahuasca no Brasil. Mas, desde então, adeptos da ayahuasca do Santo Daime, da União do Vegetal e d’A Barquinha, médicos, profissionais da saúde mental, antropólogos, e outros profissionais desenvolveram estudos científicos que comprovam a eficácia da ayahuasca no tratamento de doenças, da depressão, do vício das drogas”, destaca Xico Nóbrega.

Além da obrigação de participar do feitio de daime, um momento único de iniciação daimista, o membro associado cumpre um calendário anual de trabalhos espirituais, baseado na tradição da Igreja Católica, que se inicia em 6 de janeiro de cada ano.

Basicamente há dois tipos de sessões daimistas: a concentração quinzenal e outros trabalhos especiais de cura, quando todos os participantes, uniformizados de branco e azul marinho, ou não, sentam-se em torno de uma mesa com um cruzeiro para cantar os hinos sagrados e meditar; e os chamados festejos nas datas magnas do Cristianismo, momento em que o batalhão masculino e feminino daimista traja uniforme de gala e dançam ao som de hinários, ocasião em que se realiza a Semana Santa, São José, Santo Antônio, São João, Dia de Finados, Festa de Nossa Senhora da Conceição e outras datas.

Igrejas pelo NE “saíram” de Campina

Atualmente na Paraíba e no restante do Nordeste, o Santo Daime é constituído de várias igrejas que reúnem periodicamente dezenas de filiados, que comparecem uniformizados (ou fardados). Todavia, recebe também um grande número de pessoas que procuram curas físicas e espirituais na bebida, mas sem vínculos associativos com esses centros. “Aquela semente, plantada por Alex Polari de Alverga, que por sinal nasceu em João Pessoa em 1951, no Encontro Para a Nova Consciência de 1993 germinou, cresceu e frutificou no primeiro centro daimista do Nordeste, a Igreja Céu de Campina (@ceudacampina), fundada em 1994, nos arredores da cidade de Lagoa Seca, na Paraíba”, relembra Xico Nóbrega. A maioria das igrejas do gênero na região Nordeste foi fundada e animada por pessoas que tiveram a prática iniciada em Campina Grande. Estão entre elas o Céu de São Lourenço, em Recife (PE); o Céu do Ceará, localizada na capital Fortaleza; e o Céu de Coqueirinho, no município de Conde.

No início de suas atividades no Nordeste, as igrejas do Santo Daime, para produzir a bebida, precisavam ir pegar no Acre a matéria-prima da bebida e assim realizar os trabalhos espirituais. Posteriormente, todas as igrejas nordestinas se tornaram autossuficientes, fazendo o sacramento em suas próprias sedes, através de processo minucioso de cozimento do cipó jagube macerado e a folha da rainha, com a participação exclusiva de homens. As mulheres atuam noutras atividades do feitio, como a coleta e lavagem das folhas da rainha. Xico explica que hoje há uma profusão de cerimônias xamânicas com a utilização da ayahuasca, intitulada de “medicina”, apresentando essa bebida e levando cura além das igrejas daimistas e dos centros vegetalistas.

Visão com a Virgem Maria

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Mestre Irineu, fundador da religião do Santo Daime
Fundador da religião teve o primeiro contato com a bebida do Santo Daime na fronteira do Brasil com o Peru

O jornalista Xico Nóbrega historia que, quando o fundador da religião teve o primeiro contato com a bebida do Santo Daime, na fronteira do Brasil com o Peru, houve o que ele denominou de cristianização da ayahuasca. “O dito Raimundo Irineu Serra, um descendente de escravos de quase dois metros de altura, assim que conheceu a bebida passou por um processo de iniciação, até que na força e na luz da ayahuasca teve a primeira visão da Virgem Maria ou Rainha da Floresta. A Mãe Divina rebatizou a bebida sacramental de ayahuasca para Daime”, afirma.

Conforme relata, nessa aparição ao fundador foram revelados hinos intitulados de ‘O Cruzeiro’, com teor cristão e mariano universal de paz e amor, cantado e bailado nas datas festivas das noites de São João, Natal e Festas de Reis nas igrejas daimistas. Outros seguidores do mestre Raimundo Irineu, a exemplo de Germano Guilherme, Antônio Gomes, João Pereira, todos nordestinos radicados no Acre, também teriam recebido hinos originários da doutrina daimista, cantados e bailados na Semana Santa e no Dia de Finados.

Ainda nos anos de 1960, outros seguidores também receberam os seus hinários, que também são celebrados no calendário daimista, sendo o mais destacado deles o de Sebastião Mota.

Uso do Santo Daime

Para o membro do Céu de Campina, o Santo Daime pode ser tomado por qualquer pessoa, visto que é comprovadamente inofensivo à saúde. No entanto, existe restrição ao seu uso caso o adepto esteja utilizando algumas medicações, a exemplos de antidepressivos, ansiolíticos, os remédios tarja preta em geral, e pessoas com gravidade de distúrbio psiquiátrico.

“Depois de décadas de debate sobre o uso ritualístico da ayahuasca e frágeis arcabouços jurídicos para o seu uso, envolvendo daimistas e vegetalistas cientistas, finalmente o Congresso Nacional aprovou o Projeto de Lei 179/20 que disciplina o uso do chá ayahuasca no Brasil e admite como entidades religiosas as instituições que o utilizam para fins ritualísticos, vetando a propaganda e o cultivo para fins comerciais”, declara.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 15 de outubro de 2023.