Uma pesquisa recente estimou que mais de 100 mil pessoas, incluindo crianças, foram diretamente afetadas e deslocadas à força de bairros próximos à orla de Maceió, em Alagoas, devido ao maior desastre ambiental urbano em curso no mundo: o caso da Petroquímica Braskem. O estudo foi conduzido por pesquisadores do Núcleo de Estudo e Pesquisa sobre Deslocados Ambientais (NEPDA), da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).
Resultados atuais de estudos feitos por pesquisadores estimam que não se sabe ao certo quantas crianças foram afetadas, quais as idades, se faziam tratamento de saúde física ou mental, ou em qual ano escolar estavam. Só por essa negligência percebe-se a violação grave de direitos específicos. O tema foi levantado durante o II Fórum Internacional Paraíba Sem Fronteiras, realizado em João Pessoa, pela professora Patrícia Martuscelli, qualificada como professora visitante no departamento de Relações Internacionais da UEPB, pelo programa Paraíba Sem Fronteiras.
O secretário da Secties, Claudio Furtado, ressaltou a importância do Paraíba Sem Fronteiras, que vai além do intercâmbio de estudantes. “Às vezes, pensamos só na questão do intercâmbio, na visitação de pesquisadores para outros países, e esquecemos a importância de qualificar cada vez mais o pesquisador para que a gente possa investigar e investir em projetos cada vez mais estruturantes. É o caso de projetos que impactam diretamente no dia a dia da sociedade, como foi o projeto da professora Patrícia, que hoje faz uma pesquisa extremamente importante para ver qual foi o impacto daquele acidente da Braskem, lá em Alagoas, nas crianças daquela comunidade junto com outros pesquisadores, mostrando uma maneira de se preparar para grandes desastres, para contenção de grandes problemas, o que é muito importante para a ciência sempre dar respostas”, disse.
O programa Paraíba Sem Fronteiras viabilizou a vinda ao Brasil da pesquisadora em Relações Internacionais Patrícia Nabuco Martuscelli, professora permanente na Universidade de Sheffield, no Reino Unido. Ela foi selecionada no Edital 31/2024 para professor visitante estrangeiro no âmbito do Programa Paraíba Sem Fronteiras, recebendo uma bolsa para sua estadia na Paraíba e seu desenvolvimento do estudo, durante o período de três meses.
A pesquisadora foi uma das debatedoras do “Painel Inspirador: Pesquisa e Internacionalização como Estratégia de Desenvolvimento Sustentável”, durante o Fórum de Internacionalização Paraíba Sem Fronteiras, que aconteceu entre os dias 13 e 15 de agosto em João Pessoa.
Patrícia explicou que teve uma aproximação com o caso Braskem após Andréa Pacífico, coordenadora do Núcleo de Estudo e Pesquisa sobre Deslocados Ambientais (NEPDA/UEPB), apresentar esse estudo ao grupo Pesquisa em Migração, da Universidade de Sheffield, do qual Martuscelli é codiretora.
“Esse caso precisa ser exposto. Dado que o desastre continua em curso, ainda há tempo para que os direitos sejam viabilizados, para que essas crianças tenham acesso a apoio psicológico, pedagógico e de saúde. Também é importante que novos estudos surjam para alcançarmos um entendimento de qual vai ser o impacto não só no curto prazo, mas também no desenvolvimento dessas crianças no médio e no longo prazo. Isso aconteceu em Maceió, mas poderia ter acontecido em qualquer parte do país”, argumenta Martuscelli.
Área atingida trouxe muitos problemas e afetou 14 mil casas
Patrícia Martuscelli integra o Núcleo de Estudo e Pesquisa sobre Deslocados Ambientais (Nepda), da Universidade Estadual da Paraíba, formado por cientistas de diversos estados do Brasil e de outros países. Ela revelou o impacto, à comunidade internacional de pesquisadores, do maior desastre ambiental em zona urbana em curso no planeta, a tragédia da Braskem. Trata-se das consequências da mineração descontrolada que provocou erosão e afundamento do solo, causou tremores de terra e ameaçou a vida de pessoas e afetou 14 mil casas, que foram evacuadas.
De forma resumida, desde 2017 a petroquímica Braskem extrai do subsolo o “sal gema”, um sal marinho usado na indústria química, principal componente do plástico PVC. Famílias diretamente afetadas em cinco bairros populosos de Maceió foram obrigadas a deixar para trás o lugar onde foram construídas as lembranças de uma vida e as memórias de gerações.
A cidade teve origem no local atingido pelas atividades de “mineração gananciosa”, como profere Patrícia Martuscelli. Um dos bairros, Bebedouro, é histórico, conhecido por suas festas e comércio.
Mas o que a pesquisadora ressalta é a invisibilidade das crianças e dos adolescentes na problemática social desse desastre. “Quando se pensa em pessoas afetadas, fala-se em famílias como se fossem um bloco sólido, sem considerar que existem crianças nesse bloco com necessidades específicas”, explica a pesquisadora. Além da escola e do atendimento à saúde, a família perde uma rede de apoio e, de repente, vê-se desestabilizada. Se os adultos sofrem pressões em uma situação catastrófica, quanto mais as crianças.
Ainda, continua Patrícia Martuscelli, “há um vazio acadêmico, jurídico, legislativo quanto aos direitos específicos das crianças que estão sendo violados; será que o interesse superior da criança, protegido tanto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) quanto pela Convenção dos Direitos da Criança (ONU), está sendo cumprido? Há mecanismos para o Estado identificar essas necessidades? Como protegê--los frente a outros interesses, como os da companhia e da especulação imobiliária?”.
A coordenadora do Nepda, Andréa Pacífico, também lidera um estudo inédito sobre as consequências sociais e econômicas de deslocados internos ambientais por motivos relacionados à construção ou manutenção de barragens na Paraíba. Conforme previsto no Regime Internacional de Proteção à Pessoa Refugiada (Convenção de Genebra), do qual o governo brasileiro é membro, essas pessoas têm direitos que não estão sendo cumpridos.
Os deslocados internos precisam deixar o lugar onde moram por causa de desastres ambientais, mas não migram para outros estados ou países. “Há casos de pessoas excluídas da categorização de ‘deslocado interno’ e, portanto, têm seus direitos violados”, sustenta Pacífico.
Ela informa que, no Brasil, o Projeto de Lei no 1594/2024, que “institui a Política Nacional dos Deslocados Ambientais e Climáticos (PNDac), estabelecendo seus direitos e fornecendo diretrizes para que o poder público promova a proteção” específica dessas populações, está pronto para pauta no plenário.
O Nepda publicou recentemente o relatório final “Acesso a direitos e políticas públicas de deslocados internos ambientais: os deslocados por barragens na Paraíba (2019–2024)”. A pesquisa teve a finalidade de analisar o acesso a direitos e políticas públicas pelos deslocados internos ambientais por barragens na Paraíba. “Os direitos dos deslocados internos estão garantidos, de forma transversal, nos tratados de Direitos Humanos e de Direito Humanitário. Contudo, na prática, esses direitos não são aplicados no Brasil”, diz o relatório final.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 31 de agosto de 2025.