O jornalista paraibano Maurício Melo viajou para a região da Palestina no fim do mês de fevereiro e por lá passou dez dias. Conversou com moradores, viveu o cotidiano, sentiu os problemas crônicos existentes no local. Desembarcou em Israel e fez a travessia da fronteira por terra, precisando passar por todas as barreiras do exército israelense e testemunhando como a população palestina é marginalizada.
Realizou, portanto, uma verdadeira imersão e mostrou um pouco da realidade em uma das fronteiras mais tensionadas do mundo na atualidade. Convidado pelo Jornal A União, escreveu em primeira pessoa uma espécie de diário de bordo (que será publicado em dois domingos) sobre suas experiências e vivências em território israelense e palestino, somando a isso informações e dados históricos pesquisados por ele.
Maurício, na verdade, possui uma longa experiência como jornalista, com mais de quinze anos de profissão e passagem por alguns dos veículos mais importantes do Estado. Atualmente, trabalha em assessoria de imprensa e cursa o mestrado profissional em Jornalismo pela Universidade Federal da Paraíba. Parte de sua experiência na viagem foi compartilhada também em seu perfil no Instagram (@jornalista_mauriciomelo) e em seu blog na internet (www.jornalismoalternativo.com.br). Ao leitor, seja bem-vindo nesta viagem:
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Por Maurício Melo, especial para A União
Nas últimas semanas fiz uma viagem a outro mundo. Conheci a cultura árabe, conheci beduínos e me relacionei com muçulmanos e judeus. Estive por dez dias na Palestina. Já esperava diferenças culturais e me deparar com línguas totalmente estranhas a mim. Mas, apesar das minhas pesquisas prévias, nada me preparou para o que testemunhei por lá.
Fiquei na cidade de Belém, mas estive também em Jerusalém, Hebron, Ramallah, Nablus, Jericó e outras cidades. Hospedei-me com um grupo de outros brasileiros na casa de uma família que vive no campo de refugiados de Aida. E diferente do imaginado olhando daqui, os campos de refugiados não são todos barracas ou acampamentos.
Antes de chegar, pensei se tratarem de famílias do campo formadas apenas por agricultores, mas logo percebi que havia professores, engenheiros, médicos, eletricistas, donas de casa, fisioterapeutas. Enfim, gente de todo tipo. Refugiados, na Palestina, são considerados assim apesar de continuarem em seu país.
São zonas urbanas para onde foram deslocadas as famílias expulsas de suas moradias em 1948, quando o Estado de Israel foi criado e evacuou cidades inteiras para que as terras e casas fossem ocupadas pelos sionistas.
Esse espaço não foi dado a essas famílias, elas estão aguardando por uma solução definitiva. Ou seja, os campos têm cerca de 70 anos e foram definidos ela Organização das Nações Unidas (ONU) para agrupar o povo que perdeu suas terras e moradias. Uma solução que seria temporária e que dura até hoje.
Entre os refugiados, a única coisa realmente comum a todos é a história trágica sobre como perderam suas terras e sobre como são marginalizados pelo Estado de Israel. Apesar de os campos estarem em terras palestinas segundo a ONU, são as leis de Israel que valem e as tropas armadas aplicam lei de guerra contra os palestinos.
Outro preconceito que logo caiu foi em relação ao véu das mulheres. Umas usam, outras não. Não é uma violenta imposição como imaginei do alto de minha ignorância, mas uma escolha que tem tudo a ver com a religiosidade individual de cada uma. Assim como As católicas brasileiras usam crucifixos ou não.
Por onde andei e com quem me relacionei sempre fui tratado com máximo respeito e cordialidade. Mesmo destoando esteticamente por onde passava e apesar da barreira da língua. Por lá se fala árabe, mas muitos palestinos têm o inglês como segunda língua. Isso ajudou muito na compreensão do que acontecia por lá.
A colonização que teve seu início formal em 1948 ainda não acabou. Muros e grades ainda são construídos e colônias são criadas dentro do território palestino, que é anexado ao Estado de Israel.
Território palestino foi sendo invadido ano após ano
As colônias são ocupações consideradas ilegais pela ONU no território palestino feitas com o intuito principal de ocupar território e retirar espaço dos moradores locais. Também em o efeito de inviabilizar a permanência dos moradores e dos comércios palestinos.
Toda colônia é protegida por estruturas militares e acabam fomentando o crescimento de estruturas de acesso proibido aos palestinos, ao ponto de algumas delas já terem ganhado o status de cidades israelenses com direito a estradas exclusivas ligando Israel a elas.
Como se vê no mapa, as colônias já estão presentes por todo o território palestino e têm a função que os bandeirantes tiveram no “desbravamento” do Brasil. Israel envia um grupo para morar no local, normalmente uma casa tomada a força por tropas militares. Em seguida, para “evitar confrontos entre os colonos e a população local”, criam uma estrutura militar. Com isso, novos colonos são enviados e novas casas são tomadas.
Ao longo das décadas, a comunidade internacional repudiou esse tipo de política e crimes de guerra (execução de crianças, de médicos e de pessoas rendidas, por exemplo) foram cometidos na implantação das colônias em seus desdobramentos.
Um povo oprimido por Israel
As colônias são uma realidade m todo o território palestino, mas para ilustrar vou contar como funciona a cidade histórica de Hebron, que representa, ainda que em escala menor, o que acontece no todo.
Hebron tem cerca de 200 mil habitantes e milhares de anos, comércio forte e turismo presente, mas se destacou para mim por ter núcleos de moradores israelenses, mesmo estando muitos quilômetros distante da Linha Verde da ONU, que divide o tradicional território da Cisjordânia entre Israel e Palestina.
Esses espaços são as colônias, que estão presentes em centenas de pontos do que originalmente era o território palestino e têm vários tipos de estrutura: algumas são condomínios fechados na periferia das cidades, outros são cidades inteiras, outros, como no caso de Hebron, ocupam ruas ou apenas habitações. Vale ressaltar que essas ocupações são consideradas ilegais pela ONU.
Todas as colônias são “protegidas” por estruturas militares. E essa divisão se torna ainda mais marcante pelos muros, grades e “checkpoints” instalados nos locais onde esses colonos vivem. São dois mil soldados destacados para fazer a segurança” de 400 colonos que moram em Hebron. Criando um apartheid que acaba por separar amigos e até famílias palestinas, uma vez que somente palestinos que moram nas ruas divididas com israelenses podem transitar livremente.
Hebron tem ruas desertas e teve seu comércio alterado nos lugares em que há colonos morando nos sobrados e palestinos no andar térreo. Nos locais ocupados onde ainda há comércio funcionando no térreo foi preciso instalar telas de aço e grades para que as pedras e lixo atirados pelos colonos não ferissem ninguém na rua.
É muito comum também que os palestinos que trafegam pelas ruas ocupadas sejam alvo de agressões, algumas vezes até físicas. Em uma dessas ruas há uma escola infantil e as crianças precisam ir sozinhas do checkpoint até ela e, após o registro de agressões, ONGs internacionais passaram a enviar voluntários para acompanhá-las. Essa proteção, no entanto, foi desautorizada pelo Estado de Israel esse ano.
Essa é uma das ruas onde os palestinos são impedidos de passar. Aliás, como disse o sociólogo palestino Bahia Hilo, “quase nada é proibido, mas precisa de autorização israelense” e é aí onde o povo fica de fora. A seleção de quem pode ou não passar fica como soldado de plantão. Além dos palestinos que não moram na rua, eu mesmo fui impedido de passar. Foi dito que eu estava fotografando e filmando a estrutura militar e que não poderia passar. Ativistas não costumam poder passar.
Essa realidade se repete por todo o território palestino. Os militares fortemente armados têm poder de barrar e mesmo prender qualquer palestino, ainda que sem acusação formal.
Na Palestina, a maioridade penal tem particularidades. O Estado de Israel considera maior de idade o cidadão israelense com mais de 18 anos, mas o palestino ganha esse “status” aos 14 anos. É comum, por exemplo, prender crianças apenas por jogarem bola em local não autorizado.
Esse tipo de prisão acontece mais à noite. Por conta isso, em campos de refugiados todos devem estar em casa após as 22h para evitar topar com uma guarnição militar. Essa foi uma das recomendações que recebi no campo de Aida.
Mesquita é dividida por imposição de Israel
Fazendo um paralelo entre Hebron e o que acontece em todo o território palestino, pode-se citar a mesquita Haram el-Khalil, uma das maiores de todo o território da Cisjordânia, e conhecida como o Túmulo dos Patriarcas, onde estariam enterrados Adão, Abraão, Isaac e Jacó junto com suas esposas Eva, Sara, Rebeca e Lea. Ela foi fechada em 1994 depois que um judeu ortodoxo dos EUA, israelense, foi até o local e abriu fogo contra os fiéis que rezavam de costas para ele: 52 pessoas morreram, outras 100 ficaram feridas. O terrorista acabou morto.
Por conta desse massacre, ocorrido em pleno Ramadã, data sagrada para os muçulmanos, a mesquita ficou fechada para reparos por meses e um toque de recolher foi decretado aos 120 mil palestinos da cidade. Quando o espaço foi reaberto ao público, se percebeu que além dos reparos, o local havia sido dividido ao meio, passando a funcionar de um lado a mesquita histórica e o outro uma sinagoga. O antigo templo muçulmano passou a ser compartilhado de forma imposta com judeus.
Ou seja, após um ataque contra os palestinos muçulmanos o Estado de Israel decidiu retirar uma parte da mesquita e oferecer um “local seguro” para que judeus pudessem visitar o Túmulo dos Patriarcas. Isso fez também com que a mesquita passasse a ser parte de um perímetro de segurança em que os palestinos não são bem-vindos.
Além de terem sido massacrados numa data religiosa, os muçulmanos perderam o poder sobre um dos mais importantes e simbólicos espaços religiosos que tinham. Do outro lado, o judeu ortodoxo sionista matou dezenas, feriu uma centena, propiciou a criação de um espaço religioso exclusivo ainda virou mártir. Sua lápide é local de peregrinação.
O sionismo, a propósito, é um movimento político baseado numa retórica religiosa que coloca os judeus (independentemente de sua nacionalidade) como donos das terras da antiga Judeia, onde historicamente existiu o antigo Reino de Israel.
Segundo esse pensamento, que surgiu no final do século XIX na Europa Central e oriental, o que se pretende é reverter a Diáspora Judaica e pregar que a Palestina foi ocupada por povos estranhos, que podem/devem ser expulsos.
O discurso dos sionistas
Em Israel há uma luta discursiva. O Estado de Israel tenta relacionar o direito à invasão de terras na Palestina à religião. O que se diz é que se for judeu, é israelense, onde nasceu não faz diferença. Por conta disso e também das políticas de incentivo, que dão salários e aluguéis pagos por até um ano para quem queira se mudar para uma das colônias em território palestino.
Quem se opõe ao avanço israelense é taxado de antissemita ou até de nazista. Uma confusão proposital entre o judaísmo e o sionismo, que é um movimento político que defende o direito à existência de um Estado nacional judaico no território da antiga Judeia. O Estado de Israel vem aplicando o arrocho e a expulsão dos povos que vivem na Cisjordânia há milhares de anos, como beduínos, árabes, sírios e egípcios, a grande base do povo palestino.
Portanto, não é uma luta de religiões. É uma luta por território. Todas as medidas sionistas são para tornar cada vez mais difícil a vida dos palestinos e forçá-los a deixar suas terras. Zleiha, moradora de Hebron e minha guia no local, contou que às vezes os colonos até tentam comprar casas na cidade, as os palestinos não vendem. “Então, de uma hora para a outra o exército chega e toma a casa. Expulsa a família da noite para o dia.”
Diferente do que eu sempre acreditei, não há um clima de intolerância religiosa. Pelo contrário, em muitas cidades palestinas há casas de árabes cristãos e árabes muçulmanos lado a lado e a convivência é pacífica. Entre muçulmanos e judeus, ou entre cristãos e judeus não foi possível medir porque as comunidades judias (as colônias) estão sempre cercadas de militares e os colonos são sempre muito agressivos com quem eles chamam de árabes.
Mas historicamente a convivência com os judeus palestinos (sim, nos últimos milhares de anos havia sim judeus na região) também costumava ser boa. O sionismo é que chegou com a “proposta” de reaver o território que, segundo as escrituras religiosas, pertencem aos judeus.
Por ter sido criado apenas em 1967, o Estado de Israel tem sua população formada por muitos estrangeiros. São judeus sionistas americanos, europeus, africanos. Mas em muitos desses lugares há judeus não sionistas também. Aliás, mesmo em Jerusalém, a cidade compartilhada entre Israel e Palestina, há grupos de judeus que são contra a instalação do Estado de Israel e suas práticas violentas.
Muro separa irmãos que vivem em casas de frente para a outra
“Minha irmã mora do outro lado do muro”, me disse um senhor já idoso, morador de Belém. Bem vestido com um blazer preto para se proteger do frio, mais cedo esse cidadão palestino passou por mim quando eu fotografava o muro e perguntou se eu estava gostando do que via.
Acredito que ele estava tentando descobrir se eu era contra ou a favor daquele monstro de concreto de 13 metros de altura. Eu respondi que não. Que achava terrível. Ele, que carregava sacolas, parou e voltou até mim. “Eu costumava ver minha irmã todos os dias. Depois que construíram esse muro dividindo a rua, a vejo apenas uma vez por ano, no Ramadã, quando sou autorizado a atravessar para o lado de lá. Ainda assim preciso ir de carro, porque a passagem longe”.
Por ser turista, tive liberdade para passar por quase qualquer lugar na minha visita à Palestina. A bem da verdade, muitas vezes só fui parado para ter os documentos verificados porque decidi, junto com o grupo que estava, me juntar em solidariedade aos “árabes” que tentavam atravessar os checkpoints ou verificações militares.
Como há uma diferenciação na identidade dos palestinos (são quatro tipos diferentes) e, portanto, no acesso às cidades, muitas vezes mesmo quando os cidadãos palestinos estão indo de uma cidade para outra dentro da Cisjordânia, os militares fazem a checagem e autorizam ou não, arbitrariamente, a passagem.
Quando a travessia é feita e van ou ônibus, ao chegar ao checkpoint, todos os palestinos precisam descer e apresentar ao soldado sua documentação. Se for para uma cidade sob administração de Israel, além da identificação, será necessária uma autorização emitida pelos israelenses.
Foi numa dessas paradas que nós descemos junto do ônibus. “Vocês não precisam descer, só os árabes, informou um outro estrangeiro”. Agradecemos e descemos. De pé e ao lado do veículo, esperamos alguns minutos até que os soldados chegassem. Eles estranharam, mas nos pediram, ainda que sem olhar direito, nossos passaportes. Em seguida nos instruíram a subir de volta no carro.
Apenas um senhor ficou para trás. Os militares questionaram a autorização que ele levava e o ônibus acabou seguindo sem ele, que ficou naquela barreira militar no meio da estrada.
Foi nessa mesma barreira que testemunhamos como os carros são escolhidos para serem parados e revistados. Placas de Israel já passam por uma fila separada. As placas palestinas passam devagar e sob olhar atento dos militares. Mulheres de lenço cobrindo a cabeça que estejam dirigindo são paradas e têm seus documentos pedidos.
Apartheid e tentativa de apagamento da cultura palestina
Outros checkpoints estão instalados nas entradas de pequenas cidades, nas extremidades dos muros e na entrada de colônias. A razão teórica para todas essas barreiras militares do exército e Israel é garantir a segurança. A segurança dos colonos que foram colocados e são mantidos ilegalmente pelo estado sionista entre os palestinos.
O muro e as grades criam um apartheid social muito violento. Ora, os protestos que acontecem regularmente são pelo fim dos muros e checkpoints, são também pela devolução das terras e casas tomadas pelo exército. E esses protestos, normalmente são de pedras contra fuzil. Bandeiras contra gás de pimenta e lacrimogêneo. Crianças contra bombas de gás.
Em uma das barreiras que passei a pé, a fila grande nos obrigava a passar de dois em dois na catraca. Mesmo tendo passado tão junto de um palestino, eu passei direto enquanto ele precisou levantar o casaco, tirar os tênis, esvaziar os bolsos, e ser revistado. Tudo isso na mira de um fuzil.
No famoso checkpoint 300, em Belém, vi um feirante, idoso, ser tratado aos gritos por um soldado, que, ao perceber que eu estava olhando, me questionou se eu era turista e me indicou um caminho para furar a fila e, obviamente, o deixar mais à vontade para continuar gritando.
A minha conclusão é de que as barreiras são apenas mais uma peça na grande engrenagem que tem por objetivo tornar a vida dos palestinos cada vez mais difícil. “O apartheid não é o objetivo, mas um meio para chegar à ocupação completa das terras da Palestina”, me disse o sociólogo Baha Hilo. Ele também falou que quem nasce filho de palestinos é considerado cidadão de segunda classe por Israel.
“A separação entre Palestina e Israel não é geográfica, é política. Ainda mais que o Estado de Israel vem sistematicamente ocupando e anexando territórios palestinos. Além disso, o Estado de Israel é quem dá as regras na Palestina. Se vocês (se referindo ao grupo de brasileiros do qual eu fazia parte) estão aqui, é porque Israel permitiu”, explicou Baha.
Foi ele quem, ao ver Jerusalém depois de um grande vale, disse: “Eu posso ver, mas não posso tocar”, se referindo ao fato de ser de Belém e não ter autorização para ir até a outra cidade. E esse é o conflito de muitos palestinos, uma vez que na cidade antiga de Jerusalém ficam muitos símbolos e mesquitas sagradas aos muçulmanos, impedidos de ir até lá pelo Estado de Israel.
Em Jerusalém, aliás, há uma série de regras que deixam muito claras as intenções e objetivos do Estado de Israel. Primeiro que a cidade é administrada pelos sionistas e os serviços básicos fazem diferença para os cidadãos israelenses ou palestinos. Todos pagam impostos, mas o carro de limpeza está mais presente de um lado que de outro. A água encanada só chega nas casas palestinas em dois a cada dez dias. Para os sionistas a água chega todos os dias.
Algumas leis (israelenses) ampliam os direitos dos sionistas e reduzem dos palestinos. Amany Khalifa trabalha numa organização que luta contra o apagamento da cultura palestina em Jerusalém. Ela conta que os palestinos nascidos nesta cidade não têm cidadania nem passaporte. “Eles recebem uma carteira de residência permanente. Mas como Israel tem todo o interesse de tomar toda a cidade que consideram sua capital para si, eles criaram a Lei do Centro da Vida”.
Essa lei impõe regras que podem revogar a “carteira permanente” e dita que seu portador deve ter Jerusalém como seu local de moradia, de seu sustento e de sua família. Então o palestino que casar com outro que não seja da cidade, pede o documento; se ele for morar em outra cidade por sete anos, perde a carteira; se ele receber uma visita do exército durante a noite não estiver em casa, ou se não tiver leite fresco na geladeira, ou roupas sujas no cesto, perde o documento.
O terror por trás dos muros - A verdadeira Palestina, aquela que os guias turísticos israelenses fazem questão de não mostrar aos visitantes
A jornada pela Palestina foi curta e intensa. Em dez dias andei por quase toda a extensão do país com um grupo de brasileiros que, entre outras coisas, se dispôs a conhecer a realidade que os guias turísticos israelenses não mostram: a realidade do povo administrado pelo Estado de Israel, mas que tem sua identidade negada por ele.
Quando se está do lado israelense dos muros, não é fácil fugir da imagem das cidades novíssimas e com todos os apelos dos centros mais modernos e tecnológicos do mundo; do discurso de respeito às diversidades e respeito às diferenças religiosas. Mas basta atravessar uma das tantas barreiras físicas ou do discurso plantado sistematicamente para se ter um vislumbre do que os sionistas estão promovendo.
Por exemplo, não é segredo que os israelenses querem expulsar os palestinos de suas terras. O próprio primeiro-ministro Benjamin Netanyahu fez diversas declarações recentemente deixando claro que vai prosseguir com a instalação de colônias no território palestino que será “anexado” como foram as Colinas de Golan, tomadas militarmente da Síria em 1967 a despeito dos protestos da Organização das Nações Unidas (ONU).
Netanyahu é primeiro ministro de Israel desde 2009 e disse em entrevista nos Estados Unidos que pretende pagar 3.500 dólares para migrantes africanos deixarem o país. “Israel é dos judeus apenas”, disse. Além disso, o parlamento israelense acaba de aprovar uma lei que prevê a aplicação de pena de morte para condenados por terrorismo.
Vale ressaltar que por lá crianças que jogam pedras no muro que divide as cidades palestinas são tratadas como terroristas. Muitas já são executadas ali mesmo, nas ruas, durante protestos.
Ações assim têm chocado inclusive grupos de judeus como J. Street e Americans for Peaced Now, que questionam os métodos e formas como o Estado de Israel em tratado o povo palestino. Eles comparam essa perseguição à forma como o próprio povo judeu foi expulso e atacado na Segunda Guerra Mundial pelos nazistas.
Terras invadidas por colonos de Israel
O fisioterapeuta e fazendeiro Mustafa Al-Afandi é casado com Dragica e vive no campo de refugiados Deheisheh, em Belém. Sua família conta com seis pessoas e eles têm uma terra de dois hectares ao sudeste da cidade.
Em 2002 a colônia de Efrata foi construída nas proximidades dessa terra, que passou a ser considerada pelo Estado de Israel, perímetro de segurança. Por conta disso, somente entre 2005 e 2015, Mustafa precisou recolocar as cercas e fazer o replantio das oliveiras que cultivava. A razão disso foi a sucessiva destruição de plantações e cercas.
Em fevereiro de 2018, uma organização doou 60 mudas crescidas de oliveiras para ajudar Mustafa e sua família a manter a terra e ajudar no sustento. Mas, poucos dias depois, todas foram arrancadas e destruídas por colonos e soldados de Israel.
Na Palestina, um país pequeno, a economia está estagnada. Apesar de sua formação, Mustafa não consegue trabalho de fisioterapeuta nem tampouco sobreviver com sua plantação destruída de oliveiras.
O que essas duas famílias têm em comum além das tragédias? Elas têm mulheres muito fortes que, apesar de toda pressão que o machismo exerce e se soma às lutas pela libertação da Palestina, são as responsáveis pela manutenção de suas famílias.
Islam, que também perdeu um irmão e teve outro que perdeu uma perna num confronto com tropas de Israel, comanda um projeto culinário formado por mulheres do campo. Ainda, ajudou a criar uma escola para crianças deficientes na comunidade e que também oferece hospedagem. É de onde vem a renda básica da família.
Dragica, esposa de Mustafa, encabeça uma rede de bordadeiras que gera renda para essas mulheres e suas famílias. Além disso, ela montou uma horta no telhado de sua casa e ensina outras mulheres a fazerem o mesmo.
Por morar num campo de refugiados, não há espaço para jardins ou quintais. Outra questão é o manejo da água, que é escassa para palestinos e eles são proibidos de reter água da chuva, por exemplo, usando calhas. A saída foi levar as plantações para os telhados. Os poços artesianos também são proibidos de serem perfurados na profundidade que se acharia água não salobra.
Cientista denuncia ‘apagamento palestino’
A pesquisadora do Grassroots Jerusalem, Amany Khalifa, conta que Israel tenta apagar a existência dos palestinos de várias formas. Destruindo prédios históricos, derrubando oliveiras milenares e, inclusive, digitalmente.
“Uma das formas de contar a história dos palestinos e provar sua existência histórica é falar das plantações de oliveiras milenares. Essas árvores são passadas de geração para geração como fonte de renda familiar. Ora, se as famílias têm oliveiras milenares, como poderiam não estar ali durante esse tempo?”, questiona Amany.
“Ao perceber isso, o Estado de Israel passou a derrubar não só as casas, mas também as plantações de oliveira. Algumas árvores om mais de dois mil anos são retiradas e replantadas como troféus nas colônias”, disse a pesquisadora.
Além disso, muitas estradas, pontos comerciais e turísticos estão sumindo dos mapas digitais, como o Google Maps. O que se supõe é que acordos com o Estado de Israel fazem com que cidades deixem de aparecer com marcações nesses mapas e as colônias vêm sendo incluídas.
Estradas históricas já não constam mais nos mapas, inclusive porque foram obstruídas por muralhas, e novas estradas, de uso exclusivo de sionistas, ligam as colônias e passam a integrar os programas e aplicativos. Quando se pesquisa por cidades palestinas no Google Maps, as informações são mínimas, sequer tem o país a que fazem parte é citado.
amílias marcadas pela opressão
Islam e Ahmad têm seis filhos hoje e vivem num campo de refugiados. Ela deu uma aula de gastronomia típica e ele nos apresentou o lugar. O que só soubemos depois é o que aquele risonho casal já havia passado naquele lugar.
Uma noite os soldados chegaram. Eles procuravam o irmão de Ahmad por estar guardando um rifle em casa. Isso aconteceu durante a segunda intifada, no ano de 2004, quando vários jovens se revezavam na segurança do campo contra tropas israelenses. Mohamad era um deles. A arma ficava guardada um dos andares de cima da casa, onde ele estava.
Tentaram impedir a entrada dos soldados, mas o que viram foi a entrada da tropa que já trazia consigo um grande saco. As mulheres mandaram a criança mais velha correr e avisar o tio que fugisse. Mais tarde a pequena contou ter ouvido dele: “Hoje seu tio morre”. De fato, os soldados localizaram Mohamad e o executaram.
Em seguida trouxeram o corpo para botar no saco e passaram a torturar Ahmad. Tudo isso em frente à esposa, à irmã, às crianças à mãe idosa. Fizeram ele andar sobre vidro quebrado, quebraram suas costelas e o levaram preso. A partir dali a família ficou marcada como sendo parentes de “terrorista” e assou a ser alvo de frequentes ações dos militares.
Uma das formas de punição das famílias de “criminosos” e “terroristas “é a destruição de suas casas. A casa deles foi bombardeada e a família passou meses morando nas ruínas sem poder receber apoio de outras famílias que temiam represálias. Mesmo um irmão de Islam, que veio tentar ajudar, acabou preso.
O corpo de Mohamad ficou retido (outra punição indireta), algo comum principalmente nas prisões palestinas. Quando um preso morre, seu corpo só é devolvido à família depois o tempo de prisão previsto. As famílias sequer podem velar seus mortos.
Um ano depois, quando a casa já havia sido reerguida com ajuda financeira da ONU, militares metralharam o prédio com a família dentro. Uma das balas atingiu a irmã de Ahmad e Mohamad, que morreu na frente da mãe. Ela, por sua vez, adoeceu ao ver dois de seus filhos serem assassinados e, pouco tempo depois, também morreu. Foi retirada com a família de suas terras em 1948 e havia passado a viver como refugiada.
Ahmad ficou com sequelas por causa das torturas que sofreu e, com epilepsia, não conseguiu mais emprego como eletricista. Passou a fazer bicos e a ter problemas financeiros.