“Com R$ 379,50, vocês compram a alimentação no mês? Vocês pagam água, luz e internet? Nós precisamos de internet porque é por lá que ficamos sabendo de todas essas decisões que são tomadas”.
O questionamento foi feito por Patrícia Passarela a autoridades presentes em uma audiência pública realizada há duas semanas pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG). A pauta era o iminente fim do Programa de Transferência de Renda (PTR), benefício instituído pelo acordo global para reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem da mineradora Vale, ocorrido em janeiro de 2019. Os atingidos agora tentam reverter a situação em uma ação contra a mineradora e também cobram providências do Ministério Público.
A barragem integrava um complexo minerário em Brumadinho (MG) e sua ruptura liberou uma avalanche de rejeitos que alcançou o Rio Paraopeba e gerou impactos em diversos municípios. A lama também soterrou 272 vidas, incluindo nessa conta dois bebês de mulheres que estavam grávidas.
Pressionada em meio ao caos instaurado, a Vale começou a pagar, logo nos primeiros dias, um auxílio emergencial aos atingidos. Na época, o benefício foi estabelecido com um valor variável, a depender da faixa etária de cada atingido: um salário mínimo por adulto, a metade dessa quantia por adolescente e um quarto para cada criança.
No fim de 2019, esses valores foram reduzidos pela metade. Os repasses nesses patamares vigoraram até 2021, quando foi firmado o acordo global de reparação entre a mineradora, o governo de Minas Gerais, o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), o Ministério Público Federal (MPF) e a Defensoria Pública do estado (DPMG). Ao todo, foram destinados R$ 37,68 bilhões para uma série de medidas pactuadas. Uma das cláusulas fixou a criação do Programa de Transferência de Renda (PTR) como substituto do auxílio emergencial, sendo estabelecido um aporte de R$ 4,4 bilhões.
Foram também previstos novos critérios de enquadramento dos beneficiários, levando a uma ampliação do número de atingidos atendidos, que atualmente superam a marca dos 150 mil. A Fundação Getulio Vargas (FGV) assumiu a gestão do PTR. Aplicando os recursos, ela obteve rendimentos que elevaram os valores disponíveis para R$ 5,56 bilhões, um acréscimo de R$ 1,16 bilhão. Mas prevendo o esgotamento dos recursos disponíveis, a partir deste mês de março, o benefício foi mais uma vez cortado pela metade.
O repasse chegou, assim, ao valor citado por Patrícia Passarela: R$ 379,50 por adulto, equivalente a um quarto do salário mínimo. As parcelas destinadas a adolescentes e crianças também foram cortadas em 50%. O fim definitivo do PTR está previsto para abril de 2026. A reação a esses anúncios também já se desdobrou em ação judicial contra a mineradora Vale, na qual os atingidos pedem que a mineradora seja obrigada a garantir recursos para manter o programa sem redução de valores.
Patrícia Passarela é moradora da Comunidade de Taquaras, localizada no município de Esmeraldas (MG). Ali, segundo conta, os modos de vida estavam diretamente ligados ao Rio Paraopeba. A pesca e a agricultura familiar foram afetadas. Na audiência pública realizada pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais, a atingida alertou que a reparação não chegou e que, sem o PTR, não há outra fonte de renda. Ela não foi a única a bater nessa tecla.
A assembleia aconteceu no dia 14 de março, tendo sido transmitida pela plataforma YouTube, e contou com a mobilização de centenas de atingidos. “Ninguém queria estar aqui se manifestando. A gente queria estar nas nossas casas, vivendo nossas vidas, pescando e garantindo a subsistência com a força das nossas mãos. Mas isso nos foi tirado. E, agora, como podem falar em corte se não chegou ao nosso território nenhum tipo de reparação? Nós somos comunidades ribeirinhas. Sem o rio, não tem outro tipo de emprego”.
Entidades esperam que a Justiça determine os depósitos em juízo
No processo movido contra a Vale, os atingidos são representados pela Associação Brasileira dos Atingidos por Grandes Empreendimentos (ABA), a Associação Comunitária do Bairro Cidade Satélite (Ascosatélite) e o Instituto Esperança Maria (IEM). As entidades esperam que a Justiça determine à mineradora que faça depósitos em juízo dos recursos necessários à manutenção do PTR sem redução dos valores, até que sejam alcançadas as condições de vidas no mínimo equivalentes às existentes antes da tragédia.
A ação lembra que, durante as discussões sobre a implantação do PTR, uma estimativa das assessorias técnicas que prestam suporte aos atingidos apontou a necessidade de um mínimo de R$ 9,8 bilhões. “Mesmo com o alerta feito, a acordo destinou apenas R$ 4,4 bilhões”, registra a ação judicial.
Também há menção a promessas de que a fase final do PTR aconteceria por meio de uma redução gradual dos valores. Os atingidos consideram que o corte de 50% se deu de forma abrupta, contrariando o que vinha sendo anunciado. As três entidades também destacam o cenário de contaminação, citando estudo divulgado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em janeiro, que aponta a presença de metais em amostras de urina de crianças de zero a seis anos que vivem na região afetada.
Agora, os atingidos aumentaram a pressão sobre o colegiado formado pelas instituições de Justiça. O MPMG, o MPF e a DPMG foram cobrados na Assembleia Legislativa para se envolver na construção de uma solução. “O fim do programa não é uma deliberação ou uma decisão política discricionária. O fim do programa é o fim do recurso”, afirmou Leonardo Castro Maia, promotor de Justiça do Ministério Público de Minas. Ele acrescentou que embora o acordo dê às instituições de Justiça a responsabilidade de acompanhar o cumprimento do acordo, elas não têm a atribuição de adotar novas medidas.
No entanto, parlamentares que conduziram a audiência pública também reforçaram a importância de uma mobilização, o que levou o MPMG a concordar em formular respostas para as questões levantadas em um prazo de 10 dias úteis, que se encerra na próxima sexta-feira (28). Na segunda-feira (24), a instituição voltou a ser cobrada durante solenidade de lançamento das atividades do Núcleo de Acompanhamento de Reparações por Desastres (Nucard). Criado pelo MPMG, ele reunirá promotores que atuam na fiscalização dos acordos de reparação da tragédia ocorrida em Brumadinho e também da que ocorreu em Mariana, em 2015, a partir do rompimento de uma barragem da mineradora Samarco.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 27 de março de 2025.