Notícias

LGBTs contam como driblam o preconceito nos estádios

publicado: 24/03/2018 20h05, última modificação: 24/03/2018 20h59
4.jpg

Torcedores que enfrentam a batalha contra a homofobia durante os jogos de futebol pelo Brasil - Foto: Divulgação

tags: lgbts , estádios , preconceito


Lance

Assim como o futebol ganha fãs todos os dias, gays, bissexuais, travestis e transexuais morrem em todo o mundo. Só no Brasil, 445 LGTBs foram assassinados em crimes motivados por homofobia no ano de 2017, o que representa uma vítima a cada 19 horas, de acordo com levantamento realizado pelo Grupo Gay da Bahia (GGB). Reflexo da sociedade, a hostilidade também é comum nos estádios e o preconceito muitas vezes acaba ficando na cadeira de alguém que deixa de assistir aos jogos por medo. Há duas semanas, o palmeirense William de Lucca, de 32 anos, presente em vitória do Palmeiras por 2 a 0 sobre o São Paulo, no Allianz Parque, virou assunto nas redes sociais por ter manifestado incômodo com reações homofóbicas de alguns alviverdes no estádio. William é gay, sentiu-se ofendido com cânticos entoados contra são-paulinos e manifestou-se pelo Twitter.

No último fim de semana, uma mãe se manifestou na mesma rede social sobre atos da torcida Independente, organizada do São Paulo, no Estádio Anacleto Campanella, em São Cateano do Sul: "Meu filho tem 14 anos. Ama o SPFC. Estamos no Anacleto, próximos à torcida e a Independente mandou todos os moleques tirarem os brincos pra não pareceram viados e que ali era “torcida organizada”. A molecada, com medo, tirou", desabafou. “A homofobia reforça os piores sentimentos humanos e também o pior de nossa formação familiar, escolar e social como um todo”, destaca Maurício Murad.

Segundo a Folha de São Paulo, o Brasil é o sexto em ranking de países mais multados pela Fifa por homofobia. Só durante as eliminatórias para a Copa do Mundo, a CBF foi punida cinco vezes e teve que pagar R$ 336 mil à Federação. Para promover a inclusão do público LGBT, torcedores criaram movimentos no Facebook, como GaloQUEER, Palmeiras Livre, QUEERlorado, Bambi Tricolor, entre outras, mas falta apoio para levantarem a bandeira no estádio. Tamanha resistência de parte do público que frequenta partidas de futebol é entendida pelo sociólogo Maurício Murad como reflexo da formação cultural do país.

“A nossa formação cultural é muito patriarcal, conservadora e machista. O futebol é um fenômeno da paixão da multidão e a multidão apaixonada tende a exacerbar, acentuar tudo, para o bem e para o mal. Neste caso, é evidente que é para o mal, porque a homofobia reforça os piores sentimentos humanos e também o pior de nossa formação familiar, escolar e social como um todo” apontou.

Advogada e participante de movimentos e organizações de luta pelos direitos de igualdade, Luísa Stern (PT) é a primeira mulher trans a assumir uma cadeira na Câmara de Vereadores de Porto Alegre. Suplente com aproximadamente 500 votos nas últimas eleições, ela trabalhou durante os dias 7, 8 e 9 de março na vaga de um colega de legenda que tirou licença. Além da carreira política, Luisa é uma das criadoras da QUEERlorado, um movimento no Facebook formado por torcedores do Internacional que lutam contra todos os tipos de preconceito, algo que tem presença constante em sua vida.

“Já senti medo de ir ao estádio por ser trans. Eu fiz a minha transição com uma certa idade, então eu estava acostumada a ir aos jogos com identidade masculina e quando comecei a ficar com a aparência andrógina, tive depressão e parei de frequentar estádios por quase sete anos. Quando voltei, com uma aparência feminina, deixei de ser incomodada” contou.

Palmeirense

O palmeirense William de Lucca fez um apelo para não chamarem a torcida do São Paulo de "bambi" e sofreu uma série de agressões verbais e ameaças por parte dos próprios admiradores do Verdão. Para Luísa, tais reações mostram que o público LGBT está longe de ser aceito nos estádios. “Creio que ainda temos um longo caminho pela frente na luta por mais espaço. O caso recente do William de Lucca, que recebeu ameaças após pedir que a torcida parasse de chamar os rivais de 'bambi', mostra o quanto a gente ainda precisa avançar neste ponto. Acredito que é por isso que esses grupos LGBT e Queer ainda não criaram coragem de se organizar e ir para o estádio, porque a reação pode ser muito dura com ofensas e agressões. Quando estamos sozinhas, até passamos batidas no meio da torcida, mas se um grupo levantar a bandeira, o risco de ser agredido é bem maior” comentou a militante.

Torcedor do Vasco Sérgio Manfredi, que é gay, explica que é necessário “não deixar a orientação sexual transparecer” e até agir como uma pessoa grosseira e rude para ter o respeito dos demais torcedores no estádio. Apesar de nunca ter sido agredido “por sorte”, Sérgio presenciou atos homofóbicos contra pessoas na arquibancada. “Já vi uma torcedora sendo completamente humilhada na arquibancada. Como sempre, nada foi feito, porque não é somente uma pessoa que agride. Começa com um e quando você vê, um setor inteiro está participando de algo que, para eles, é brincadeira”.

Walter (Internacional)

No dia 28 de junho de 2017, data em que comemora-se o Orgulho LGBT+, clubes como Internacional, Grêmio, Bahia, Avaí, São José, além da Federação Mineira de Futebol (FMF) e o Mineirão homenagearam o público por meio de imagens postadas em suas plataformas digitais. No Rio de Janeiro, apenas o Flamengo se mostrou favorável ao fim do preconceito e, seguindo os passos do clube, a Nação 12 foi a única organizada que exaltou a diversidade da torcida.

“Acreditamos que o amor pelo clube do coração se dê independente de cor, gênero, religião ou orientação sexual. Se a pessoa for apaixonada pelo 'Mengão', gostar de cantar o jogo todo, balançar a bandeira e respeite o próximo, ela tem exatamente o que procuramos num integrante”, revelou Diego, um dos líderes da torcida organizada. Na Nação 12, ninguém, que seja do nosso conhecimento, defende que alguém sofra agressão por ser LGBT. Nesse caso, o integrante estaria totalmente passível de expulsão”, disse o torcedor.

Após o ato, no empate em 1 a 1 com o Luverdense, pela Série B de 2017, integrantes da Terror Bicolor fizeram represálias e agrediram membros do grupo, o que resultou na denúncia do Paysandu, pelo STJD, por discriminação de gênero, sendo este o primeiro caso de denúncia por preconceito de orientação sexual no futebol brasileiro. O clube também foi indiciado no artigo 213 por não ter tomado providências para prevenir e reprimir desordem no estádio.

Paysandu

Ao Lance!, um torcedor assíduo do Paysandu garantiu que mesmo com os casos de violência registrados após a manifestação de apoio, “a quantidade de mulheres e LGBTs na torcida aumentou significativamente por se sentirem mais seguros”. O clube ainda iniciou um projeto para banir cantos homofóbicos e, apesar de estar estagnado, membros do Papão afirmam à torcida que darão sequência aos planos.

Na arquibancada, a forma de preconceito que mais chama a atenção está nas músicas com conotação homofóbica. Antes das ofensas aos torcedores, jogadores e árbitros são facilmente xingados, o que é considerado pela torcida parte da prática de torcer ou "brincadeira", como explica o antropólogo Wagner Camargo. “Esse debate é longo. Mas penso que a normalidade instituída em piadas e brincadeiras vem, antes de tudo, de uma ideia de senso comum que encara serem tais gritos ou expressões como “produto do torcer”, isto é, da banalidade desse sentimento de identificação com um clube, com um escudo ou com dado jogador. Isso não pode ser visto dessa forma. Qualquer piada ou brincadeira sobre a sexualidade de um jogador ou jogadora (um/uma atleta) não deixa de estar implicada numa rede de preconceitos, criados e instituídos historicamente” afirma o pesquisado que estuda a sexualidade e gênero nos esportes.

Entre os entrevistados, a resposta para a solução do problema é unânime: investimento dos grandes clubes em campanhas de conscientização para a torcida e maior interferência da segurança nos estádios quando testemunhar ou for acionada para registrar a ocorrência. Wagner Camargo acredita que a medida é a porta de entrada, mas acrescenta que ídolos do futebol também podem desempenhar papel importante nessa luta. “A proposta seria interessante, inclusive se viesse atrelada a algum cumprimento obrigatório que o sócio-torcedor tiver que apresentar em relação ao clube. Ou algum outro mecanismo que possa solicitar, das organizadas, por exemplo, uma responsabilidade perante atos LGBTfóbicos. Os jogadores de futebol também têm importância na campanha. Não é necessário que alguém como Cristiano Ronaldo chegue e diga que é gay e que então que “todos devam gostar de gays”. Não se trata disso. Ou ainda que Neymar apareça fazendo discurso de inclusão de pessoas transgênero no esporte” explica Camargo.

O antropólogo acredita que as atitudes dos jogadores podem refletir no comportamento da torcida. Por conta disso, caso os clubes lancem propostas de conscientização com o apoio de ídolos do esporte, é necessário que estes saibam se portar para não causarem ainda mais atrito entre os torcedores favoráveis à causa e os que são resistentes quanto a presença de LGBTs nos estádios.

“Seria produtivo se tais figuras célebres não reforçassem preconceitos em suas vidas pessoais junto aos torcedores, não se pronunciassem de modo equivocado ou errôneo (por exemplo, dizendo que “tudo bem gays no esporte, desde que não cheguem perto de mim”) e fossem em prol dos direitos humanos e da inclusão do diferente no futebol/nos esportes – o diferente passa pelo sexualmente dissonante, como também passa pelo corporalmente distinto (uma pessoa com deficiência, por exemplo).