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Lutas clandestinas

publicado: 04/03/2024 15h35, última modificação: 04/03/2024 15h35
Projeto que tramita na Câmara Municipal de João Pessoa, do vereador Zezinho Botafogo, quer proibir a realização de eventos de MMA sem autorização dos órgãos competentes
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Disputas entre lutadores amadores organizadas pelas redes sociais estão sendo realizadas em praças públicas sem nenhuma autorização | Ilustração: Tônio

por João Thiago*

A Praça São Sebastião fica na entrada de Mamanguape, no Litoral Norte paraibano. Cercada por pequenas árvores e com um pináculo no meio, ela é acesso de intercessão entre algumas das principais vias da cidade. Na praça tem uma quadra de futebol. O azul do piso chega a estar descascando de tanto que os moradores usam o local para jogar bola. Em 17 de outubro do ano passado, no entanto, a quadra foi usada para dar espaço para outro esporte. Um grupo de jovens se reuniu no local para organizar um torneio ilegal de lutas de rua.

Entre estes jovens estava José Laudiclécio Nascimento da Silva, de 22 anos. Em um vídeo curto, de 11 segundos, é possível ver o momento em que ele entra na luta contra outro rapaz. Eles tocam luvas e começam a trocar socos. Sem técnica, sem qualquer preparo, eles socam o ar diversas vezes antes do jovem acertar um direto no rosto de Laudiclécio, que cai, desacordado.

O vídeo, que circulou nas redes sociais e foi usado pela Polícia Civil para indiciar o agressor por lesão corporal grave, acaba aí, no momento em que Laudiclécio cai, braços estendidos, no chão descascado da quadra. A partir daí, tudo o que se tem são os relatos de quem estava no local, mas não quer se identificar.

“Ele começou a ter uma convulsão e babar enquanto estava caído no chão. os meninos viraram ele de lado e chamaram o Samu. Eles chegaram rápido. Não demoraram. Foi assustador. Espero nunca mais ver algo assim”, disse um jovem que afirma ter assistido à luta, mas não quer se identificar.

Laudiclécio foi levado para o Hospital Regional de Mamanguape. Os ferimentos eram um pouco mais graves do que se imaginava a princípio. O jovem sofreu um traumatismo cranioencefálico grave, e teve que ser levado para o Hospital de Emergência e Trauma Senador Humberto Lucena, em João Pessoa. Passou treze dias na unidade, se recuperando.

 O evento, ilegal, foi organizado por um grupo de um aplicativo de mensagens. “Eles se reuniam para organizar pequenas competições de futebol em Mamanguape, Rio Tinto e Baía da Traição. De repente resolveram organizar um torneio de lutas. Tudo feito informalmente, só por redes sociais”, destacou o delegado Silvio Rabelo, responsável pela delegacia em Mamanguape e que investigou o caso.

“Quando você organiza um evento esportivo é necessário comunicar o poder público. Corpo de Bombeiros, Polícia Militar, Civil, Prefeitura. Você precisa solicitar ambulância para acompanhar e precisa realizar o evento em um local que ofereça toda a infraestrutura de segurança necessária. Eventos organizados assim são perigosos. O menino poderia ter morrido”, explicou o delegado.

O adversário de Laudiclécio é chamado de “agressor” pelo delegado, que segue investigando o caso. “Ele já foi indiciado. Vamos indiciar, também, os organizadores por terem realizado o evento sem cobertura nenhuma. Não havia nada seguro lá. O mais próximo de alguma segurança que tinha no local eram lutadores que estavam dando algumas instruções para os lutadores. Isso não é o suficiente”, disse.

Clube da luta

Eventos como este acontecem não apenas em Mamanguape, mas em João Pessoa também. Seguindo a máxima do livro de Sam Peckinpah, “A primeira regra do Clube da Luta é que ninguém fala sobre o Clube da Luta”. E eles seguem à risca esta regra. É difícil ter informação sobre estes eventos. Não se sabe quando e onde acontecem, quem participa, se oferece prêmios, apostas, nada.

Lutadores que não quiseram se identificar explicaram que são eventos comuns. “Geralmente são lutas de boxe. Uma das mais conhecidas acontece na Praça do Coqueiral, em Mangabeira. Junta gente de academias, pessoas que estão passando. Quem quiser participar é só colocar as luvas e lutar”, explica um lutador que não quer se identificar.

Outro conta sobre as lutas na Praça Engenheiro Solon de Lucena, no bairro do Geisel. “Eu vi uma dessas há umas duas semanas. As pessoas se juntam. Sempre tem lutadores mais profissionais que oferecem uma base pra quem vai lutar. E geralmente tem gente da área da saúde que participa também. O pessoal chega a levar até tatame para a praça, pra ficar mais organizado. Lutas com luvas, tudo direitinho”, justifica.

Mas quando perguntamos quando as lutas acontecem, ninguém sabe, ninguém lembra, ninguém diz. O “Clube da Luta” se protege, omitindo informações, falando em grupos privados, juntando interessados de forma secreta para as lutas clandestinas.

Outro questionamento que segue sem respostas é sobre a existência de bancas de apostas, lutadores empresariados e um esquema econômico durante as lutas. Em Mamanguape, segundo o delegado Sílvio Rabelo, as lutas não aconteciam por dinheiro. “Nós investigamos e vimos que não aconteciam apostas na luta, o que não impediria que, no futuro, isso não viesse a acontecer”, destacou.

Projeto de lei

O problema tornou-se tão grande que estes encontros, em João Pessoa, podem se tornar ilegais. Um projeto de lei do vereador Zezinho Botafogo (PSB), proíbe a realização de competições como esta na cidade. Segundo o documento, qualquer evento esportivo que envolva lutas de Mixed Martial Arts (MMA) realizado sem as devidas autorizações dos órgãos competentes, ou que violem normas vigentes, está terminantemente proibido.

“Já estava tomando uma proporção muito grande. Foi preciso um jovem na cidade de Mamanguape se ferir para a mídia tomar ciência do que acontecia e reverberar o fato, destacando a dimensão do ocorrido”, asseverou. O PLO recebeu parecer favorável da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Municipal de João Pessoa.

Já em Mamanguape, a Praça São Sebastião já não sedia mais eventos como o que deixou Laudiclécio internado por duas semanas. Depois do nocaute, o jovem segue tentando se recuperar. Ele voltou para casa confuso, sem se lembrar da luta, e ainda passa por acompanhamento com neurologista para combater as sequelas resultantes do golpe que sofreu. “É um milagre ter meu filho de volta em casa. Ele está se recuperando. É um processo demorado, mas ele vai voltar”, comemora a mãe.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 03 de março de 2024.