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Dedicação

A arte de consertar brinquedos

publicado: 03/07/2023 11h59, última modificação: 03/07/2023 11h59
Hospital fundado há mais de 40 anos resiste ao tempo restaurando os melhores amigos das crianças
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Francisco Cavalcanti conserta brinquedos há 41 anos. Hoje, carros elétricos são maioria - Foto: Ortilo Antônio
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Foto: Ortilo Antônio
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A coleção tem bonecas dos anos de 1960 a 2000, com destaque para Amiguinhas- Foto: Ortilo Antônio
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por Carol Cassoli*

De seus 63 anos, Francisco Cavalcanti de Farias, tem dedicado os últimos 41 à arte de brincar. Não que ele tenha passado as últimas décadas brincando, muito pelo contrário, passou esse tempo trabalhando como doutor de um tipo diferente de paciente. Com técnicas específicas, ele tem direcionado seu cuidado ao tratamento de pacientes inanimados que ganham vida através da disposição de seus tutores: os brinquedos.

Com foco no conserto e restauração dos melhores amigos das crianças, sobretudo os eletrônicos, Francisco fundou, em Jaguaribe, o Hospital de Brinquedos, um espaço onde carrinhos, bonecas, enfeites festivos e outros acessórios eletrônicos ganham vida novamente. “Muitas vezes um brinquedo fica abandonado, porque está com algum defeito ou porque estragou por falta de uso. Este último caso acontece muito com enfeites natalinos, por exemplo. É aí que eles vêm para cá. Brinquedo é e sempre foi caro… nem todo mundo está disposto a se desfazer quando apresenta alguma falha”, explica o dono do hospital.

Em 1982, quando Francisco começou, o mundo era outro e os brinquedos também. Naquela época, era comum que as pessoas buscassem pelo conserto de seus itens, porque adquirir um novo do mesmo modelo era oneroso. É por isso que, para ele, o Hospital de Brinquedos é, de certa forma, sinônimo de resistência: “hoje as pessoas preferem, por inúmeros motivos, trocar a consertar”.

O fundador do hospital explica que, antigamente, os produtos eram desenvolvidos para durar “uma vida toda” e, como hoje a lógica de consumo é diferente, tem se tornado cada dia mais difícil encontrar não apenas pessoas que consertem eletrônicos diversos, mas também peças específicas para sanar cada demanda. “O foco dos consertos sempre esteve nos brinquedos eletrônicos. E, quando comecei, reparava tudo o que chegava aqui. Hoje isso já não é mais possível, porque muitas peças não estão disponíveis para venda individual”, conta ao explicar que, mesmo assim, se esforça para não deixar nenhum “paciente” ir embora “doente”; quando não há peças, Francisco Cavalcanti tenta, com uma ou outra “gambiarra”, trazer os brinquedos à vida mais uma vez.

Sozinhas, no entanto, as “gambiarras” não bastaram para reverter o pensamento contemporâneo de que o melhor mesmo é comprar brinquedos novos e, aos poucos, os pacientes do hospital foram diminuindo bastante. Restaram os clientes fiéis, que sabem o valor sentimental de um brinquedo de toda a vida; os colecionadores, que não confiam seus brinquedos a qualquer pessoa; e aqueles cujo conserto de brinquedos foi passado como tradição, de pai para filho.

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Foto: Ortilo Antônio

Tradição que foi passada de pai para filhos

No Hospital de Brinquedos, não são apenas os clientes que transmitem, de pai para filho, a tradição do conserto. Assim como Francisco, seus filhos também têm o dom do restauro e, quando têm um tempo livre com o pai, tratam logo de se enfiar no ateliê para realizarem delicados “procedimentos cirúrgicos” nas fiações de seus “pacientes”. “Para trabalhar com brinquedos, a gente tem que gostar de brinquedos. É uma relação de prazer, satisfação e amor por este universo”, diz o dono do hospital, que, passado o tempo da pandemia, tem se tornado um “estacionamento” para conserto de carros elétricos infantis que circulam por pontos estratégicos de João Pessoa, como na Lagoa e na orla de Cabo Branco.

Além do prazer de ver os filhos parcialmente envolvidos com seu ofício, Francisco também vê a esposa se dedicar ao restauro dos corpos de bonecas do tipo bebezão. É que, como parte destes brinquedos é confeccionada em espuma e revestida de tecido não tecido (TNT), é muito fácil ver bonecas sem postura, com os membros de plástico caídos.

Trabalho detalhado

“Minha esposa faz um trabalho muito detalhado. Ela costura um novo corpinho nas bonecas, desta vez mais firme e em tecido de verdade. Assim, elas duram mais e o trabalho fica mais bonito, porque tudo é feito com muito cuidado, manualmente”, conta ao revelar que, embora não restaure brinquedos, tem o cuidado de devolver essas “pacientes” limpas para seus donos. Em algumas ocasiões, quando as bonecas estão muito manchadas de caneta, Francisco chega a utilizar um produto especial, cujo nome ele não revela a ninguém, para remover apenas as manchas, não prejudicando a pintura original do brinquedo.

Colecionadora é cliente especial e restauradora

Nas mais de quatro décadas em que tem se dedicado ao universo dos brinquedos, Francisco encontrou muitas pessoas cuja filosofia de vida esbarrava na ideia de que “para lidar com brinquedos é preciso gostar deste universo”. Como tem o costume de guardar partes potencialmente úteis de alguns “pacientes desenganados” para utilizar em outros que ainda precisem de algum tipo de “transplante”, Francisco ganhou uma cliente especial no último ano: Jane Mara Moraes, colecionadora e restauradora de bonecas antigas, que eventualmente aciona o “colega-doutor” em busca de olhos para suas bonecas.

Colecionadora desde março do ano passado, Jane nutriu, durante toda a vida, profunda paixão por bonecas do tipo Amiguinha, um modelo pensado para simular que a criança está com uma amiga real, lançado no Brasil em 1960 pela Estrela. Como, quando criança, sua família não tinha condições financeiras para viabilizar este sonho, a senhora, de 58 anos, decidiu realizá-lo após encontrar um anúncio de Amiguinha na plataforma de comércio eletrônico OLX.

Dali em diante, ao contrário do que imaginava a fotógrafa aposentada, a vontade de ter Amiguinhas só cresceu e, hoje, já existem 12 bonecas enfileiradas na sala de seu apartamento. “Era um sonho. Me sinto feliz por ter realizado e, hoje, estou satisfeita”, relata ao afirmar que, por ora, não tem a intenção de expandir a curiosa coleção, onde todas as bonecas têm nome, personalidade e um valor sentimental inestimável para aquela que se considera “mãe” destes brinquedos.

Com a compra de bonecas antigas e a recepção de itens parcialmente avariados, Jane se viu diante de um desafio: devolver a estas bonecas o brilho dos tempos áureos. Foi assim que a senhora, que por muitos anos trabalhou também como cabeleireira de humanos, se tornou cabeleireira de um público incomum e passou a implantar cabelo em bonecas. “É como se você estivesse dando uma segunda chance para a boneca. Quando restauro, ofereço vida a este sonho. E, de certa forma, desenvolvo um vínculo com cada uma delas. É por isso que cada uma delas tem uma personalidade específica. Conforme vou restaurando, imagino uma história para elas”, conta.

Além de empunhar furador e agulha para implantar nas bonecas fios de fibra vegetal orgânica muito semelhantes ao cabelo humano, Jane também aprendeu a refazer maquiagem, corpo e coloração das Amiguinhas, tudo com o objetivo de deixá-las o mais fiel possível ao que eram quando saíram da caixa, no século passado. “O tempo não perdoa nada”, diz Jane que, em João Pessoa, é a única a restaurar bonecas e, junto de outro colecionador de Campina Grande, é uma das poucas colecionadoras de Amiguinhas na Paraíba.

Cuidados especiais

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A coleção tem bonecas dos anos de 1960 a 2000, com destaque para Amiguinhas- Foto: Ortilo Antônio

Na coleção de Jane, constam bonecas fabricadas entre 1960 e 2000. Todas tomam sol semanalmente. E embora, para alguns, possa soar estranho, o cuidado é necessário. “Faço isso para evitar que elas desenvolvam fungo nos olhos. A maresia e até mesmo a umidade do ar-condicionado propiciam muito o desenvolvimento de fungos nelas. Nos humanos, os olhos são a janela da alma; nas bonecas, são o que dá brilho ao brinquedo. Uma boneca sem brilho nos olhos não gera o mesmo encanto em quem está olhando. Os olhos dão o valor às bonecas”, conta.

Cada Amiguinha pesa em torno de quatro quilos, o equivalente a um bebê de dois meses. E, ainda que seu peso seja o de um bebê, seu tamanho é o mesmo de uma criança de três anos, que calça 24.

“Todas têm o próprio guarda-roupas e evito que elas compartilhem roupinhas, já que, quando as restauro imagino, também, personalidades diferentes para cada uma. Restaurar essas bonecas é, também, uma forma de ocupar a mente”, afirma enquanto mostra um tecido com estampa alusiva aos festejos juninos, utilizado em uma competição de bonecas de um grupo do Facebook. “No fim, minhas amiguinhas são uma salvação para mim. São minhas companheiras, assim como foram amigas de alguma criança décadas atrás e da mesma forma que os mais variados brinquedos são, atualmente, uma companhia para as crianças de hoje em dia. Não há nada no mundo que pague a alegria de se ter o brinquedo sonhado”.

Saiba Mais

Ironicamente, contudo, enquanto a maior parte do comércio enfrentou uma forte crise econômica por causa da pandemia de Covid-19, Francisco viu a procura por seu trabalho crescer muito. Sem poder encontrar os amigos, as crianças só tinham uma saída para dar vazão à energia acumulada: brincar sós. Foi nesse momento que muitos brinquedos já empoeirados pelo desuso ganharam uma nova oportunidade nas mãos de seus donos. O problema é que, justamente pela ociosidade, muitos perderam o vigor. E assim, a sala de espera do Hospital de Brinquedos se viu cheia de “pacientes” novamente.

“Houve um momento em que tive que parar de receber clientes. Estava com uma fila de brinquedos para consertar tão longa que não tinha condições de pegar mais nada. Na verdade, se pegasse mais algum, perderia de vista o prazo para devolução e isso não é legal. Existem, obviamente, alguns casos em que os brinquedos ficam aqui até eu conseguir consertar… mas isso é para cliente antigo, que deixa aqui e diz ‘faça como puder, no tempo que der’”, relata o restaurador ao afirmar que preza não apenas pela qualidade do serviço prestado, mas também pela celeridade do atendimento.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 2 de julho de 2023.