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João Pessoa

Centro Histórico: amor e resistência

publicado: 28/08/2023 11h21, última modificação: 28/08/2023 11h21
Moradores revelam sentimento de pertencimento e mantêm vivo o desejo de uma retomada da ocupação
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Alana Claúdia é comerciante, e da varanda do prédio com mais de 110 anos de existência, defende a área em que mora e trabalha - Foto: Evandro Pereira
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Foto: Evandro Pereira
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Vó Neta e Joab Vicente moram em frente à Casa da Polvora - Foto: Evandro Pereira
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Nildo Avelino e Francisco Ripo moram na Avenida Duque de Caxias, e na casa, com mais de 200 anos de construção, o porão guarda arcos originais - Foto: Evandro Pereira
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por Taty Valéria*

No topo da Cidade Alta, especificamente em frente à Casa da Pólvora, na Ladeira de São Francisco, Vó Neta e Joab Vicente, reafirmam duas histórias de amor: pelo Centro Histórico de João Pessoa, e um pelo outro, que completaram 57 anos de casados. O casal, de 75 e 80 anos, respectivamente, fala com orgulho do lugar em que vive. “Os filhos cresceram, cada um foi morar num canto, mas nós continuamos firmes aqui”, diz Vó Neta, com um complemento de Seu Joab: “essa é uma das melhores moradas de João Pessoa”.

Em outro ponto da Cidade Alta, dessa vez na Avenida General Osório, reside Alana Cláudia. Da varanda do pequeno prédio residencial com mais de 100 anos de existência, a comerciante contempla o movimento das pessoas nas calçadas e lamenta. “Só nessa rua, são 18 casarões abandonados. Alguns estão sendo reformados e colocados à venda. Mas me dói o abandono”. Apesar da lástima pontual, Alana defende a área em que mora e trabalha.

O sentimento de pertencimento também é do casal morador da Ladeira de São Francisco. Vó Rita nasceu, se criou e continuou morando ali, nunca saiu da área. “Nasci no Róger, me casei e fui morar em frente à casa da minha mãe. Ainda morei por dois anos na subida da ladeira. Cheguei aqui e não saí mais”, e completou, “Eu jamais sairia daqui pra morar em nenhum outro lugar, nem que fosse na praia!”.

Se engana, porém, quem pensa que esse sentimento é exclusivo dos pessoenses. “Em 2010 vim prestar um concurso público aqui em João Pessoa e fiquei encantado com esse lugar”, revela o professor de Teoria Política, Nildo Avelino. Cearense de nascimento e morando boa parte da vida em São Paulo, foi só em 2011 que ele se estabeleceu na capital. “Quando cheguei para morar, meus colegas praticamente me ‘empurraram’ para a praia, e claro que eu gostei, não há como não se encantar com o mar de João Pessoa! Mas sempre vínhamos passear nessa área e nos encantamos com essa casa, que estava à venda”. De fato, a casa é uma preciosidade em plena Avenida Duque de Caxias. Com mais de 200 anos, a construção abrigava um verdadeiro tesouro escondido entre escombros e entulhos.

Ao começar a reforma, as estruturas originais foram aparecendo e hoje é uma residência com mais de 500 metros quadrados. O porão, todo recortado por arcos originais (descobertos durante a reforma), se dividem em escritório, sala de cinema, e pequenos espaços que ainda estão sendo decorados. Na altura do porão, um pequeno quintal com árvores e um mini lago com carpas, e no piso superior, um terraço com uma vista do Rio Sanhauá de tirar o fôlego.

Manter viva a memória da região virou uma questão para Nildo e seu companheiro, Francisco Ripo. Já Vó Neta enfatiza a importância da ocupação cultural para revitalizar a área.

Preservação da memória histórica e afetiva do local

Para essas pessoas, que defendem, amam e admiram o Centro de João Pessoa, continuar morando na área é uma forma de resistência na medida em que mantém vivo o desejo de uma retomada da ocupação. “Enquanto estivermos vivos e morando aqui, vamos continuar nessa batalha”, afirma Alana Cláudia, enquanto anda pela calçada cumprimentando comerciantes, guardadores de carros e moradores de rua. Ela entende o tamanho da importância do lugar não apenas como histórica, mas como memória afetiva.

“Na minha época de estudante, de adolescente, saíamos mais cedo da escola para passear aqui. Recentemente tivemos a Festa das Neves e aqui, onde a cidade praticamente nasceu, não foi colocado um único enfeite, nem uma maquiagem. Isso é lamentável”, fala.

A memória afetiva também é um ponto em comum com Vó Neta. “Eu brincava de barra bandeira no terreno lá de baixo, quando a rua não era nem calçada, era barro. Aqui onde existe essa praça (ao lado da Casa da Pólvora), era um sítio e nós pulávamos o muro para roubar manga, goiaba, araçá. Eu ficava bem escondidinha pra não apanhar, mas apanhei algumas vezes”, diz a idosa enquanto sorri.

O professor Nildo, toca num ponto que parece ser essencial nesse processo de resistência. “Não adianta ocupar se não tiver a percepção do valor que existe aqui. Então além de ocupar, é preciso promover a educação patrimonial e fiscalizar o que é feito dos imóveis”, enfatiza o professor.

Francisco está à porta de uma das casas da rua. Com o teto caindo, móveis esquecidos e coberta de poeira e teias de aranha, ele observa o imenso potencial que existe naquele espaço. “Quando não estivermos mais aqui, isso tudo vai continuar. Esse lugar é maravilhoso!”.

Já seu Joab Vicente se emociona quando fala sobre sair dali. “Tive uma conversa com Jesus. Só vamos embora quando for a ‘nossa hora’”.

Espaço de cultura, arte e atividades turísticas

“Falar de Centro Histórico é falar de um lugar de resistência, seja ao observar as estruturas físicas, históricas e tombadas, em abandono e não zeladas, ou por falarmos dos fazedores e protetores de cultura do Centro, aqueles que promovem o lugar de forma alternativa e independente”. A produtora cultural e liderança comunitária Rayssa Holanda, descreve sua própria percepção do que representa o Centro Histórico enquanto espaço de cultura e arte.

Para Rayssa, o Centro Histórico não representa um espaço democrático e acolhedor para quem está no pé das ladeiras. “É preciso um projeto que nasça num formato multidisciplinar, que precise de gente, de saberes populares, de vivência de pessoas, principalmente pessoas que já vivem, habitam e reexistem no local”, diz.

A gente luta muito para preservar nossa história, mas é preciso, também, abrir espaço para novas histórias

Um dos prédios mais simbólicos e que resiste à ação do tempo, é o Hotel Globo. “O local se tornou referência ao abrir espaços para novos artistas que nunca tiveram oportunidade de expor e valorizar seu trabalho”, diz Willian Macêdo, gestor cultural do Hotel Globo.

Artista visual que expõe no local, Davi Queiroz enxerga a própria estrutura arquitetônica da Cidade Baixa como um ato de resistência cultural. “O próprio espaço de tijolo e calcário, já se coloca como resistência nesse sentido.”, afirma o pintor, escultor e ceramista certificado. Ele defende que outras alternativas possam potencializar a cena artística na região. “Uma ação conjunta, que se agregue a todas as áreas, inclusive à arte gastronômica”.

Rayssa Holanda exalta as atividades de turismo de base comunitária, a exemplo do Coletivo de Jovens Garças do Sanhauá do Porto do Capim. “O Coletivo oferece um pacote de serviços e produtos com tour guiado, acolhimento, apresentações culturais, visitações em resquícios arqueológico e passeio de barco, cultivando a tradicional idade indenitária e cultural do povo ribeirinho.”, afirma Rayssa.

Willian Macêdo, aponta que o Hotel Globo passou a receber um público de visitações que vai além do turista tradicional. “Os trabalhadores do entorno da região, durante o horário de almoço, passam para apreciar a vista, as exposições, o próprio lugar”, diz Macêdo, que encerra sua fala com uma frase que talvez agregue as intenções e impressões sobre o Centro Histórico de João Pessoa. “A gente luta muito para preservar nossa história, mas é preciso, também, abrir espaço para novas histórias”.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 27 de agosto de 2023.