Negligenciada. É assim que a população com direito às cotas se sentiu durante os anos em que o acesso ao Ensino Superior brasileiro foi dificultado pela inexistência de ações afirmativas para ingresso às universidades. Mas esta realidade está mudando e, nos últimos anos, os resultados da implementação da lei de cotas podem ser vistos nas instituições de ensino, porque o perfil dos alunos no Ensino Superior tem mudado e as perspectivas dos estudantes brasileiros também.
Indígena potiguara, Ozivan Mendonça, é uma das pessoas que conseguiu acesso à Universidade Federal da Paraíba (UFPB) depois de ser aprovado para o curso de Serviço Social, através do Sistema de Seleção Unificado (Sisu). Como ao longo da vida havia visto a família recorrer à Fundação Nacional dos Povos Indígenas para a reclamação de alguns direitos, Ozivan não teve dúvidas na hora de considerar as ações afirmativas e ingressou na UFPB como uma pessoa indígena, oriunda de escola pública e de família de baixa renda. Foi assim que se tornou a segunda pessoa da família a obter um diploma e a primeira a utilizar-se das cotas, já que o outro membro da família fez faculdade antes da existência destas ações. “Recorri às cotas porque era um direito e era o justo, apesar da minha nota também ser suficiente para passar em ampla concorrência”, conta.
Considerada por muitos tardia, a adoção do sistema de cotas no Brasil só aconteceu em todo o território em 2012, com a sanção da Lei nº 12.711. Com ela, todas as entidades federais de Ensino Superior do país passaram a reservar parte de suas vagas para candidatos que se enquadrem em um ou mais dos seguintes critérios: ter vindo de escolas públicas, ser negro ou indígena, ou vir de uma família de baixa renda.
De acordo com a professora do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da UFPB, Glória Rabay, o sistema de cotas é uma tentativa de reparação histórica; elas são um esforço para reduzir o fosso das desigualdades no Brasil. “Não restam dúvidas de que a política de cotas democratizou o acesso das populações mais carentes, em especial, da população negra, às universidades. Se antes de 2012 a universidade era um local onde mais de 80%, quase 90% dos alunos vinham de escolas privadas, hoje temos um número equiparado: 50% dos alunos que frequentam nossas universidades públicas vêm de escolas públicas. Isso é muito importante”, explica a pesquisadora.
Mesmo com a promulgação da Lei nº 12.711, um grupo ainda continuou preterido no espectro de acesso ao Ensino Superior no Brasil, o de pessoas com deficiência (PcD). Os benefícios para uma PcD ingressar em universidades públicas federais só chegaram quatro anos depois das cotas étnico-raciais, o que atrasou ainda mais o acesso digno destas pessoas ao Ensino Superior.
Aos 21 anos, Antônio Lucas Silva dos Santos realizou há dois o sonho de entrar em uma universidade, não mais como visitante, mas dessa vez como aluno. E isso só foi possível devido às cotas. “Eu sempre tive consciência e sempre entendi que as cotas são uma coisa muito importante para nós, porque elas ajudam não a igualar, mas, pelo menos, a aproximar nossas oportunidades às de uma pessoa que tenha estudado em escola privada”, conta.
Funcionamento
O percentual de vagas destinadas aos grupos identitários é diferente em cada estado do país. Isso acontece porque o cálculo é realizado com base nos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e na quantidade de pessoas autodeclaradas pretas, pardas e indígenas em cada unidade federativa.
A lei propõe que as pessoas com direito às ações afirmativas sejam separadas em dois grupos distintos. Essa divisão acontece por renda. Assim, metade do percentual de vagas separado para cotistas é reservado para estudantes oriundos de escolas públicas que tenham renda familiar mensal de até 1,5 salário mínimo per capita.
Há dez anos, as instituições deveriam reservar 12,5% de suas vagas para estudantes de escolas públicas. Esse número foi aumentando progressivamente para corresponder a 50% das vagas e, em 2016, chegou à meta. De lá para cá, metade dos estudantes que ingressam no Ensino Superior pelo sistema de cotas tem direito a ação afirmativa por ter estudado em unidades públicas.
Na prática, se um curso tiver 100 vagas abertas, 50 delas serão para ampla concorrência e 50 para ações afirmativas, sendo 25 vagas para pessoas de baixa renda e 25 para pessoas com renda superior a 1,5 salário mínimo per capita. E a distribuição dessas vagas entre os cotistas acontecerá de acordo com as estatísticas do IBGE. Ou seja, se os dados demonstrarem que, naquele estado, há mais pessoas negras e indígenas e menos pessoas com ou sem deficiência, uma quantidade maior de vagas será destinada às cotas étnico-raciais, enquanto as cotas sociais representarão um número menor de vagas para pleiteio. Nos quatro campi da UFPB, por exemplo, das 7.825 vagas oferecidas para graduação presencial este ano, 3.918 foram reservadas para a reparação promovida pelas cotas às pessoas que sofrem algum tipo de exclusão histórica.
No Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba (IFPB), além das cotas obrigatórias em todo o país, também existem as ações de inclusão regional, que representam uma bonificação de 10% na nota final do Enem para que alunos de dentro da Paraíba tenham mais chances de ingressar em uma instituição de ensino superior. De acordo com o IFPB, lançada em 2021, “a iniciativa faz parte de uma política de inclusão social que democratiza e amplia as chances do acesso da população a um curso superior”.
Apoio para a permanência dos cotistas ainda é um desafio
A manutenção da lei de cotas é fundamental para a concretização do processo de reparação histórica. No entanto, sozinha, ela não é suficiente. Para Glória Rabay, é necessário assegurar também a permanência destes estudantes na universidade. “A abertura formal da universidade para essa população não resolve todos os problemas, pois, os alunos conseguem entrar na universidade, mas não permanecer”.
Para estudar, é preciso que se tenha o mínimo para as obrigações acadêmicas. “Você precisa, estar lá e isso implica em transporte todos os dias, que se alimente, durma em um ambiente salubre e tenha acesso ao mínimo de material para realizar seus estudos, o que hoje significa que você precisa ter um smartphone e um computador, além de livros, recursos para xerox e outras coisas, como, inclusive, se vestir. Acho que esse é um dos grandes desafios da universidade nesse período pós-implementação das cotas”, observa.
Antônio Lucas é a prova disso. Como é deficiente visual, assistência e empatia são requisitos para sua permanência na universidade. Mas, infelizmente, a rotina do aluno acaba se distanciando destas premissas. Embora não devesse ser assim, o problema começa na sala de aula. “Tenho enfrentado algumas dificuldades com relação ao suporte oferecido pela universidade. Apesar de termos um apoio muito importante às pessoas com deficiência, que são os alunos apoiadores, ainda falta muito em termos de estrutura, materiais e até mesmo conciliação com os professores”, diz.
As dificuldades para permanência, de maneiras diferentes, atingem todos os cotistas. De acordo com o Censo Demográfico 2010 e com o balanço do Censo 2022, o número de indígenas ingressantes nas universidades brasileiras é maior que o de alunos egressos, comprovando que se manter no Ensino Superior pode ser tão desafiador quanto entrar nele.
Reconhecimento
Conforme o Censo da Educação Superior 2021, divulgado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), a quantidade de pessoas com deficiência matriculadas no Ensino Superior (público ou privado) subiu de 22.367 para 63.404 indivíduos entre 2011 e 2021. De acordo com o IBGE, a proporção de negros autodeclarados no Brasil também cresceu de 53% para 56,1% neste período. Segundo o Censo, alta considerável foi registrada, ainda, na quantidade de alunos autodeclarados indígenas. Neste grupo, o salto foi de 374%.
Essas mudanças são reflexo não apenas das políticas de compensação histórica, mas também do letramento étnico-racial. Nathália Galdino aos 22, está prestes a se formar em Enfermagem, curso que escolheu em decorrência do sonho de cuidar de sua comunidade, os potiguaras. “Me inseri no movimento indígena por melhorias para o meu povo. Por meio de nossas organizações, sempre estamos buscando incentivar o ingresso dos nossos guerreiros indígenas nas universidades, lembrando do direito às cotas”, conta.
Para a vice-reitora da Universidade Estadual da Paraíba, Ivonildes Fonseca, as cotas ampliam o espaço de acesso à universidade e contribuem para a redução do eurocentrismo na academia. “Se não temos a diversidade brasileira dentro das universidades, esse conhecimento virá com uma visão de um único segmento étnico da população”.
A pesquisadora Glória Rabay concorda com Ivonildes. “As cotas mudaram a cara da universidade, trazendo problemas para o campo acadêmico que antes não eram pensados. Hoje se discute com muita frequência temas como o racismo e o acesso das pessoas negras, a falta de autoras e autores negros no debate acadêmico”.
Ozivan Mendonça sempre soube de suas origens, mas foi dentro da universidade que ele passou a entender a importância de se reconhecer indígena. “Embora todos se reconhecessem enquanto indígenas, não havia um engajamento dos meus familiares nos movimentos”. As aulas de História e os trabalhos de outros pesquisadores não refletiam a realidade que Ozivan vivenciava em Baía da Traição.
“Passei a me interessar mais pela discussão, estudar sobre cultura e identidade, e me apropriar melhor de elementos da minha etnia. Foi a partir disso que passei a me inserir em movimentos e coletivos indígenas da juventude”, lembra o assistente social, residente em saúde e que foi aprovado em primeiro lugar no processo seletivo de residência multiprofissional em saúde mental da UFPB.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 4 de junho de 2023.