Paredes em tons de rosa contrastando com os grandes fachos de luz do sol que entravam por todos os espaços vazados da construção davam um ar de tranquilidade. Ao fundo, um som de flauta doce melodiava Luiz Gonzaga e Alceu Valença convidava a entrar. O Centro de Atendimento Socioeducativo Feminino Rita Gadelha, em João Pessoa, diferente do que se imagina, é um ambiente acolhedor.
Atualmente, são 12 meninas internas, que já receberam sentença e quatro que estão lá, provisoriamente, aguardando decisão judicial. As idades variam entre 12 a 17 anos e 11 meses. Caso completem 18 anos dentro da unidade, elas podem permanecer até os 21. Lá dentro, as meninas têm uma rotina escolar.
Um Centro de Atendimento Socioeducativo atende a adolescentes e jovens em conflito com a lei durante o cumprimento de suas medidas socioeducativas em meio fechado. As medidas são ‘provisória’, até 45 dias de atendimento, e ‘internação’, de 6 meses a 3 anos. Dentro desses centros, diversos serviços são oferecidos, como assistência social, psicológica, jurídica, médica, ortodôntica, por exemplo, sendo a centralidade da medida socioeducativa a escola.
São seis Centros de Atendimento Socioeducativos na Paraíba, dos quais quatro - Centro Educacional do Adolescente (CEA), Centro Educacional de Jovens (CEJ), Centro Socioeducativo Edson Mota (CSE) e Casa Educativa Rita Gadelha - estão em funcionamento em João Pessoa. Os outros dois são um em Lagoa Seca (Lar do Garoto) e um em Sousa (CEA Sousa).
Tatiana Pinangé é gestora escolar da Escola Cidadã Integral Socioeducativa Almirante Saldanha, uma escola que funciona dentro das quatro unidades socioeducativas da cidade de João Pessoa. Ela explica que a equipe já é capaz de reconhecer e colher os frutos da transição para a Escola Cidadã Integral.
As estudantes têm aulas em período integral, divididas em disciplinas da Base Comum Curricular, ou seja, Português, Matemática, Biologia, e da Parte Diversificada, que são as disciplinas eletivas de Mangá e Maquiagem. Na unidade, as aulas não são divididas em séries, mas em ciclos, já que lá funciona a modalidade de Ensino de Jovens e Adultos (EJA).
Francineya de Oliveira é coordenadora pedagógica da unidade. Questionada sobre o convívio e a relação das meninas, Neya, como prefere ser chamada, ri ao dizer que “elas até que convivem muito bem. Aqui não há facção, isso ajuda muito”, conta. A coordenadora explica ainda que o contato que as meninas tiveram com a escola antes de entrar na unidade era mínimo. “Algumas só tiveram contato com as séries iniciais”, revela.
Durante a visita, três alunas ensaiavam músicas que seriam apresentadas em uma exposição cultural do governo, o FONACRIAD, um fórum governamental de defesa dos direitos da criança e do adolescente.
Beatriz (nome fictício) tem 17 anos e era uma das alunas que se preparavam para a apresentação musical. Apesar de gostar da escola, Beatriz cursou até o sétimo ano e só ia para as aulas de segunda a quinta-feira. “Aqui, a gente tem aula de manhã, até às 11h30, paramos para o almoço e voltamos às 13h30. Temos todas as matérias, e o curso de culinária. Além delas, temos as eletivas de maquiagem e mangá”, explica.
Em outra sala, Laura (nome fictício) se preparava para a aula. Nas primeiras trocas de palavra, a menina de 16 anos deixou claro que nunca havia gostado da escola, até então. “Larguei a escola no 6º ano, não gostava de nada lá, achava chato. Depois que eu cheguei aqui tudo mudou, agora eu consigo estudar, eu estou dando valor a aula”, conta.
A coordenadora pedagógica explica que a família também tem um papel de fundamental importância no incentivo e continuidade dos estudos das meninas. Nos dias de visita, a escola também realiza “plantões pedagógicos” para conversar com os pais sobre o desempenho das alunas em sala de aula.
O cuidado com a escola também é visível. Nas paredes, desenhos grandes e coloridos feitos pelas próprias meninas enfeitam a unidade. A diretora da escola explica que o carinho com a estrutura física da escola por parte das alunas é nítido e diário. “Elas têm o sentimento de pertencimento. Essa é a escola da reflexão”.
O diretor da unidade, Marcos Bento, trabalha no sistema há 32 anos. Ele explica que a Paraíba foi pioneira no país, na implementação do modelo integral para as unidades socioeducativas. “O formato integral revolucionou a unidade socioeducativa. Isso tirou a ociosidade dos adolescentes, eles ficavam muito tempo fechados, porque não tinham muitas atividades. Depois que as aulas preencheram o dia todo, os conflitos diminuíram, isso só ajudou. Trabalho há muito tempo no sistema e só agora vejo a socioeducação evoluir dessa forma”, afirma.
Tatiana percebe que antes de chegar à unidade, as meninas já tinham contato com um Projeto de Vida. “Elas já vêm de fora realizando um Projeto de Vida, eram protagonistas lá fora, mas a gente sabe que é um Projeto de Vida que não vai levar elas além. Aqui a gente descontrói isso aos poucos e ajuda elas a construir outro”, explica.
Além de dividir a sala de aula, as conversas à noite e os testes de maquiagem, Laura e Beatriz também despertaram um novo interesse na escola: ambas descobriram, lá dentro, o gosto pela matemática.
Apesar dessa nova afinidade com os números, o Projeto de Vida das meninas é outro. A coordenadora conta que Beatriz já tem um ótimo desempenho em maquiagem, e é isso que a menina almeja quando sair de lá. “Quero terminar meus estudos e me formar em Estética”, revela.
Laura também tem como seu Projeto de Vida o desejo de terminar os estudos. E sobre o futuro? Ela, timidamente, olha para cima, sorri, e diz “Eu gosto de cozinhar”.
Modelo de escola leva à “liberdade condicionada”
Centro Educacional de Jovens (CEJ) - No Centro Educacional de Jovens, a unidade masculina conhecida como CEJ, os cerca de 100 jovens circulam acompanhados por agentes pelos corredores. Através da implantação do modelo de Escola Cidadã, de mudanças internas de controle dentro da unidade e do próprio comportamento dos meninos, eles ganharam uma “liberdade condicionada”: circulam de uma sala para a outra, desde que estejam na companhia de algum dos agentes socioeducativos.
Assim como na Rita Gadelha, as aulas da ECIT Almirante Saldanha, que acontecem dentro da unidade, são divididas por ciclos, adequando-se a faixa etária dos alunos. Do lado de dentro da unidade, os jovens ficam divididos em seis alas, pois as divergências que trazem consigo, da vida fora da unidade, não permite que convivam entre si: a rivalidade entre facções é um problema que as grades não conseguem separar. Por esse motivo, as aulas também acabam sendo fracionadas, mesmo dentro de um mesmo ciclo, evitando possíveis conflitos e preservando a integridade física desses estudantes.
Wendel Lacerda é diretor da unidade. Ele conta que faz parte da Fundação de Desenvolvimento da Criança e do Adolescente Alice de Almeida (FUNDAC), há sete anos, e que é a terceira vez que é convidado para dirigir a unidade. O diretor explica que antes da mudança da escola para o modelo das cidadãs integrais, apenas 20% dos alunos frequentavam as aulas.
Com tantas inovações pedagógicas, hoje eles conseguiram atingir 100% de frequência desses estudantes em sala de aula. “Os meninos entenderam que a participação deles em sala de aula era positiva para eles. Hoje, a frequência é encaminhada mensalmente para a justiça, e a partir dessa participação, eles conseguem uma progressão de medida”, explica Wendel.
De acordo com a coordenadora pedagógica, Hilka Macieira, hoje, a direção já consegue juntar algumas turmas numa mesma sala, apesar das divergências que eles trazem de fora, graças ao trabalho em conjunto da equipe pedagógica.
E em se tratando de medidas pedagógicas, o engajamento dos meninos com a leitura está cada vez mais nítido. Através de uma apresentação prévia de cinco figuras importantes da literatura, os alunos fizeram uma votação para escolher o nome que representaria a Biblioteca da unidade. Dentre quatro homens importantes para a literatura, os alunos escolheram a única mulher: Carolina Maria de Jesus, moradora da periferia e catadora de material reciclado que escreveu um diário com mais de dez mil cópias vendidas. Atualmente, a biblioteca está em reforma, mas já existe há um ano. Graças ao contato tímido dos meninos com os livros, os professores decidiram criar um Clube de Leitura, que tem ganhado muita aceitação por parte desses estudantes.
Além do clube, os meninos também participam da Oficina de fabricação de materiais de limpeza. Futuramente, a coordenadora pedagógica Hilka Macieira, explica que a unidade pretende implementar um curso profissionalizante de pintura de parede.
Exemplo e Motivação - Ao verem o microfone durante essa reportagem, os professores entusiasmados perguntavam se alguém já havia contado a história de Leonardo (nome fictício). O ex-aluno da escola é um orgulho para todos os funcionários da unidade. Após passar por um processo difícil de ansiedade, Leonardo não queria mais frequentar as aulas. Com o apoio e insistência de agentes e professores, o estudante voltou a frequentar as aulas e produzir redações de ótima qualidade. No final do ano, uma grande surpresa: Leonardo teve um ótimo desempenho no Enem e conseguiu ingressar na Universidade, tornando-se um exemplo para os demais colegas.
O caso de Leonardo se transformou em doses de motivação para os demais. Caio (nome fictício) tem 19 anos. Largou a escola na 8ª série, mas dentro da unidade, hoje cursa o 3º ano do ensino médio, no Ciclo VI. O estudante afirma que está mudando de vida através da escola dentro da unidade. “Eu quero ser jogador de futebol, tem um professor que está me ajudando e eu peço a Deus que dê tudo certo, esse é o meu sonho”, explica.
Fernando (nome fictício) também teve sua vida transformada através do contato com a escola dentro da unidade. Ele conta que frequentou a escola até o 1º ano, mas por nunca ter tido motivação, acabou largando os estudos. “Aqui eu desenvolvi meus estudos e outras habilidades. Eu era muito fechado, hoje eu já me sinto à vontade para dialogar. Não gostava muito de português, hoje tenho uma visão diferente. Aliás, tenho uma visão diferente de mim. Hoje eu me enxergo de uma forma diferente, tenho consciência da minha capacidade”, afirma o estudante.
Questionado sobre o seu Projeto de Vida, o jovem de 18 anos explica que pretende ganhar sua liberdade, concluir os estudos e entrar numa universidade. “Quero cursar engenharia civil, ajudar minha família e me redimir dos meus erros”, conta Fernando.
Ser professora - As professoras se emocionam ao ouvirem as histórias de vida dos meninos. Convivendo diariamente com os estudantes, elas contam que, muitas vezes, os enxergam como filhos. “Muitas vezes a gente tem que sentar e respirar, porque a gente se emociona com algumas histórias. Ás vezes a gente reclama de momentos pequenos da vida e quando escutamos algumas histórias, a gente repensa. Eu costumo dizer a eles que nós estamos sempre trocando valores, a gente dá e recebe”, explica a professora Drielly Gregório, uma das responsáveis pela disciplina de Projeto de Vida.
Francisca de Fátima, também professora de Projeto de Vida, explica que essa disciplina tenta resgatar valores esquecidos pelos meninos. “O Projeto de Vida é o eixo central da vida do sócio educando. Como trabalhar com esses jovens se a gente não retoma o seu Projeto de Vida? Fazer com que eles repensem sobre suas práticas e assim poder contribuir de uma forma positiva ao retorno”, afirma a professora.
Fátima, como prefere ser chamada, explica que as dinâmicas do Projeto de Vida estão sempre voltadas para os eixos temáticos relacionados a valores sociais, morais e éticos. “A gente sabe que tem muitos jovens que não tiveram esses valores. O Projeto de Vida é constante e diário, mas muito desafiador. As nossas dinâmicas são trabalhadas através de árvores dos sonhos e dos desejos - o que eu era, o que eu sou e o que eu gostaria de ser”, ressalta.
SOMOS - Além do trabalho com os alunos, os diretores das unidades, junto à equipe escolar, desenvolveram o projeto SOMOS, uma formação que tem sido desenvolvida para sensibilizar os agentes socioeducativos que, muitas vezes, se sentem desvalorizados.
“Nós resgatamos um aluno com depressão graças à ajuda de um agente, e hoje esse menino está na universidade. A ressignificação precisa acontecer em toda a escola. Tentamos mostrar que aqui não é uma cadeia, mas sim uma unidade socioeducativa”, explica Tatiana Pinangé.
Rosa Virgínia é agente no sistema há 38 anos. Ela percebeu na iniciativa, a concretização de um lema que traz consigo desde o início de seus dias de trabalho. “Sensibilizar, humanizar e valorizar. É isso que eu trago comigo, e sei que, com respeito, a gente chega a qualquer lugar”, explica feliz.