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combate ao preconceito

Fé na luta contra a discriminação

publicado: 22/09/2025 08h49, última modificação: 22/09/2025 08h49
Alvos recorrentes de racismo e intolerância, adeptos de religiões de matrizes africanas clamam por respeito e justiça
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Representantes de tradições como o candomblé lamentam que ocorrências se repitam no dia a dia; na capital, um terreiro foi invadido e depredado, no último dia 13 | Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

por Bárbara Wanderley*

O caso de um terreiro de candomblé que foi invadido e depredado, durante uma celebração religiosa no fim de semana passado, em João Pessoa, chamou a atenção para um problema que não é novo, na Paraíba ou no Brasil: a intolerância religiosa. Representantes de religiões de matrizes africanas, alvos recorrentes desse tipo de ato, afirmam que a luta contra o preconceito é constante e as ocorrências de intolerância sempre se repetem.

Somente na capital paraibana, o Ministério Público do estado (MPPB) recebeu, até o momento, nove denúncias de crimes desse gênero neste ano, incluindo o episódio do dia 13 de setembro — também considerado o mais violento. O ataque aconteceu quando o terreiro, localizado no Bairro das Indústrias, estava cheio de pessoas reunidas, para uma festa no espaço, e assustou todos os presentes.

A promotora de Justiça Fabiana Lobo, que atua na área de Cidadania e Direitos Fundamentais, explicou que, sobre esses casos, o MPPB instaura um procedimento para acompanhar as investigações criminais, até o momento da eventual distribuição do processo criminal e, quando cabe à situação, atua na defesa cível de direitos coletivos.

Um exemplo disso é a ação judicial por dano moral coletivo, interposta contra a empresa de aplicativo de transporte Uber Brasil, por racismo religioso praticado contra uma mãe de santo em João Pessoa. Esse episódio, ocorrido no ano passado, foi denunciado após um motorista vinculado à plataforma recusar-se a prestar serviços para a mulher. Na ocasião, a vítima estava vestida com roupas típicas usadas no candomblé e recebeu mensagens de cunho preconceituoso por parte do condutor. Em decorrência do caso, o acusado foi banido da Uber.

Outro exemplo da intolerância religiosa são os repetidos ataques à imagem de Iemanjá, situada na Praia de Cabo Branco, na orla pessoense, que já foi vandalizada diversas vezes, ao longo dos anos, chegando a ter sua cabeça arrancada em 2016. Atualmente, a estátua, que passou por uma restauração, está protegida por uma redoma de vidro, na tentativa de inibir novas depredações.

Casos são investigados por delegacia especializada

De acordo com o sociólogo Stênio Soares, professor convidado em uma disciplina sobre a Jurema Sagrada, na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), sempre houve intolerância contra as religiões afrobrasileiras. “Esse fenômeno não é novo, mas repercute mais hoje, porque se trata de um crime tipificado. A intolerância é estrutural, expressão do que chamamos de racismo religioso, afinal, falamos de religiões de matrizes africanas e indígenas”, comentou.

Ele frisou que essas atividades religiosas chegaram até a ser censuradas no país. “Antes de 1966, essas práticas eram proibidas no Brasil e reprimidas pelo Estado, sobretudo pela Polícia Militar. Durante a Ditadura, mesmo após a legalização, a perseguição continuou. Apenas com a Constituição de 1988 conquistamos a liberdade religiosa, mas os cultos ainda sofrem preconceito e discriminação há séculos. Esse problema é estrutural e não se resolve em poucos anos. O Estado precisa garantir políticas públicas de proteção, punir atos de violência religiosa e, ao mesmo tempo, educar a sociedade para o diálogo inter--religioso”, opinou.

O delegado Marcelo Falcone, da Delegacia de Repressão aos Crimes Homofóbicos, Étnico-Raciais e Delitos de Intolerância Religiosa (Dechradi), explicou que os casos de intolerância podem compreender a injúria religiosa e o racismo religioso.

Nas ocorrências da primeira categoria, palavras depreciativas são direcionadas a uma pessoa em relação a sua religião ou crença. “Já se a atitude envolver um impedimento, um obstáculo, uma supressão de direito por causa de uma religião, por exemplo, pode ser compreendida como racismo religioso, bem como se esse preconceito for direcionado a praticantes de uma religião, e não apenas a uma única pessoa”, esclareceu o delegado.

As penas para esses crimes variam de dois a cinco anos de reclusão, pois a lei prevê algumas circunstâncias agravantes.

Educação e conscientização são aliadas

Guardião da Jurema Sagrada, Pai Beto apontou que a intolerância está presente no cotidiano das pessoas que seguem religiões de matrizes africanas e relatou situações de preconceito que ele mesmo sofre. “A minha casa tem algumas artes que eu coloquei, colunas, cabeças de leão. Tem uma imagem também do próprio Jesus Cristo na frente. Mas, pelo fato de as pessoas saberem que ali mora um pai de santo, tem gente que, quando passa na porta da minha casa, sai da calçada e faz o sinal da cruz várias vezes”, revelou.

Pai Beto lamenta e questiona o comportamento hostil de pessoas que encontra na rua | Foto: Roberto Guedes

Ele também lembrou que, ao andar na rua trajando as roupas brancas tradicionais da religião, percebe muitos olhares de reprovação. “As pessoas ainda julgam muito pela maneira de se vestir, pela escolha religiosa”, desabafou.

Ainda a respeito do tema, Pai Beto destacou o caso recente de um padre paraibano que, após a morte da cantora Preta Gil, no fim de julho, falou de forma preconceituosa sobre a fé do pai dela, Gilberto Gil. Enquanto celebrava uma missa, o sacerdote Danilo César, da Paróquia de Areial, vinculada à Diocese de Campina Grande, questionou por que os orixás da religião seguida pela família dos artistas não salvaram Preta de um câncer. O padre foi denunciado e um inquérito foi aberto para investigar o episódio, que ganhou repercussão nacional.

“Muitos desses crimes são praticados por pessoas que deveriam estar trabalhando a paz, a união, de maneira coletiva. Algumas lideranças religiosas prestam-se ao papel de falar de outra cultura, de outra tradição, de outra religião, para se sobrepor ou colocar a sua religião como verdade absoluta em um estado laico”, lamentou.

Ele ressaltou que esse tipo de situação traz abalos psicológicos às vítimas do preconceito. “Eu paro durante alguns momentos e fico pensando o porquê de tudo isso. Os praticantes de religiões de matriz afrobrasileira não vivem na porta de ninguém, não vivem aviltando ninguém na rua, nem atacando outra religião, de maneira nenhuma. Pelo contrário, nós só queremos respeito”, resumiu.

Mobilização

A presidente da Federação Independente dos Cultos Afro do Estado da Paraíba, Mãe Renilda, salientou que os casos de intolerância são comuns, não apenas em João Pessoa, mas também em cidades circunvizinhas, como Bayeux.

Ela detalhou que, como presidente da entidade representativa, vem discutindo o problema junto a órgãos como a Secretaria das Mulheres e da Diversidade Humana (Semdh) da Paraíba e com os ministérios públicos Federal e Estadual. “A gente vem fazendo formações com agentes das polícias Civil e Militar, para melhorias enquanto pessoas, enquanto humanos, para cuidar dessas questões étnicas e raciais”, pontuou.

“Essa não é uma questão só da Paraíba, mas do Brasil, onde as pessoas se acham não intolerantes, não racistas, mas, no fim, são racistas, intolerantes e desrespeitosas”, complementou a ialorixá, frisando as ações que a federação tem adotado e o que ainda pode ser feito para reverter esse cenário. “Temos seminários, encontros, oficinas e debates, mas o que nos falta é pegarmos a comunicação audiovisual e colocá-la para funcionar como um ponto de luta contra a intolerância religiosa”, refletiu.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 21 de setembro de 2025.