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Oito bebês são registrados sem pais

publicado: 22/04/2024 09h40, última modificação: 22/04/2024 09h45
Em 2024, um a cada 17 recém-nascidos no estado só tem nome da mãe na certidão; DPE faz alerta sobre a situação
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Das quase 734 mil crianças nascidas em 2024 no Brasil, mais de 50,3 mil ainda esperam reconhecimento de paternidade | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil - Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

por Lílian Viana e Thaís Cirino*

Ter a certidão de nascimento com o nome do pai é um direito fundamental garantido pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Mesmo assim, na Paraíba, dos pouco mais de 15,4 mil nascimentos ocorridos neste ano, 904 foram registrados sem a informação sobre a paternidade. Isso significa que, por dia, oito bebês chegaram ao mundo sem o reconhecimento de seus genitores no estado.

Em todo o Nordeste, dos 189 mil nascimentos registrados até a última sexta-feira (19), 14,7 mil não tinham o nome do pai. Na Paraíba, o total de crianças que têm apenas o nome da mãe na certidão é de quase 6%, menor que a média brasileira e da região Nordeste, que giram em torno de 7% e 8%, respectivamente, segundo a página Pais Ausentes, do Portal da Transparência do Registro Civil. A plataforma, administrada pela Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil), reúne as informações referentes aos nascimentos, casamentos e óbitos registrados nos 7.654 cartórios de Registro Civil do Brasil, presentes em todos os municípios e distritos.

De acordo com os dados, no país, a situação só é melhor nos estados do Paraná, Minas Gerais e Santa Catarina, com 5% cada.

Embora o cenário da Paraíba seja considerado menos grave em relação a outros estados do Nordeste, ainda é alarmante, já que os números têm crescido a cada ano. Em 2022, o percentual registrado no estado foi 5,01%. No ano passado, o dado subiu para 5,29%.

 “É preocupante, porque estamos em uma escalada. Esse número já foi de 4%. Precisamos agir para diminuir esse percentual e, quem sabe, zerar de vez”, alerta o defensor público, Rodrigues Júnior, que também é coordenador do Núcleo de Proteção à Infância e da Juventude (Nepij) da Defensoria Pública do Estado da Paraíba (DPE-PB).

A comerciante Elza Lima faz parte das estatísticas das mulheres que não conseguiram registrar sua filha com o nome do pai. Sua luta começou há 35 anos, época em que, socialmente, a figura da mãe ainda era condicionada ao estado civil da mulher. “Antes, a sociedade virava as costas para a mulher e o seu filho, em vez de punir aquele que deveria estar presente e, simplesmente, escolheu não ser pai. Pelo visto, parece que isso não mudou muito, porque minha filha passou pelo mesmo problema. Só que ela conseguiu registrar meu neto com mais facilidade”, relata Elza, mãe de Juliana e avó de Joaquim.

Morando com a filha, também mãe solo, Elza comenta que sente um pouco mais fácil a questão do registro de nascimento e a pressão social sofrida pelas crianças com pais ausentes e mães solo. “Minha filha também é mãe solo, mas, na hora do registro, ela conseguiu colocar o nome do pai no meu neto. Na minha época, eu não consegui. Fui expulsa de casa e fiquei sozinha, com a minha filha. Acho que essa facilidade maior para registrar acaba diminuindo os casos de crianças sem o nome do pai, né?”, avalia.

Realidade nacional

Em todo o país, dos quase 734 mil nascimentos registrados em 2024, até a última semana, cerca de 50,3 mil não tinham o nome do pai na certidão. Entre as regiões, destaque para o Norte, onde em 9,48% dos documentos não consta o nome do genitor. O Nordeste aparece em segundo lugar com quase 7,8%, seguido pelo Centro-Oeste, 6,69%. Sudeste e Sul registraram 6,07% e 5,53%, respectivamente.

Bayeux lidera percentuais na Grande JP

Waldir Alves procurou o pai, Manoel, por 40 anos | Foto: Arquivo pessoal
Waldir Alves procurou o pai, Manoel, por 40 anos | Foto: Arquivo pessoal

Dos 223 municípios do estado, 142 tiveram casos de crianças registradas sem o nome do pai neste início do ano. O percentual mais alto foi verificado em Vista Serrana, no Sertão, onde 40% dos documentos foram emitidos com o dado do genitor ausente. O município de Coxixola aparece em segundo lugar, com 33% dos casos. Já na Região Metropolitana de João Pessoa, o maior percentual ficou com Bayeux (15%).

Em números absolutos, a capital paraibana lidera com 208 registros em situação de ausência paterna dos 4.135 documentos emitidos, ou seja, 5% do total. Santa Rita vem em segundo lugar, com 41 dos 536 nascimentos ausentes (8%). Na sequência, estão Bayeux, com 29 dos 197 registros emitidos sem a informação; Conde, com 15 dos 177 registros sem os dados completos (8%); e Cabedelo, com 10 dos 114 nascimentos sem o nome do pai (9%).

No interior do estado, em Patos, dos 516 nascimentos, 52 estavam com a informação ausente (quase 10%), situação que se repete em Cajazeiras (9%), Sousa (5%) e Catolé do Rocha (4%). Em Campina Grande, dos 2.268 nascimentos registrados neste ano, 132 não incluíram o nome do pai (6%).

Consequências

Para a psicóloga e psicanalista Naiara Cavalcanti, a ausência do pai no registro de nascimento tem impactos relevantes na vida da criança, mesmo que a mãe seja presente. “Para a psicanálise, a função paterna busca oferecer segurança, proteção e limites claros. A ausência desse papel deixa uma marca profunda, que persiste ao longo da vida, apesar dos esforços das mães para preencher esse vazio”, destaca.

A profissional ressalta, ainda, que a ausência paterna pode prejudicar o desenvolvimento psíquico e social, desde a infância até a vida adulta. “Cada indivíduo e cada família têm uma dinâmica única, tornando impossível prever exatamente como cada criança reagirá à ausência paterna. Mas é inegável que essa falta é uma variável central no desenvolvimento do psiquismo. A experiência clínica nos mostra que crianças com figuras paternas ausentes podem apresentar inseguranças, baixo rendimento escolar, problemas de autoestima, dificuldades em lidar com normas; e podem apresentar comportamentos desafiadores. Em casos extremos, podem desenvolver tendências antissociais, além de se envolverem precocemente em relacionamentos disfuncionais e abusivos”, alerta Naiara.

O pessoense Waldir Alves sabe bem como é o sentimento da ausência paterna. Mesmo com uma infância feliz, ao lado da mãe e dos irmãos, ele carregou o vazio da convivência com o pai por 40 anos. “Eu ficava muito triste na escola, quando tinham as festas, as reuniões, e eu não tinha meu pai para ir comigo, e nem para brincar comigo, como acontecia com os meus colegas”, relata.

Determinado a encontrar seu pai, Waldir pesquisou em redes sociais e iniciou um processo de investigação da paternidade, na Defensoria Pública da Paraíba. Até que, em 2020, ele achou Seu Miguel, morador de Sertãozinho, a cerca de 113 km de distância de João Pessoa.

“Eu e minha filha entramos em contato com a rádio comunitária da cidade dele, que conseguiu achá-lo. Na mesma hora, ele se identificou e entrou em contato comigo e me chamou para ir até lá. Foi o dia mais feliz da minha vida. A gente se emocionou muito. Depois, a Defensoria nos encaminhou para fazer o exame de DNA e confirmar tudo”, detalha.

Situação impede direitos

A falta do reconhecimento paterno não provoca apenas a perda afetiva. Além do conhecimento da ancestralidade e origem familiar, o direito ao auxílio material, financeiro, alimentos, direitos previdenciários e sucessórios das crianças ficam comprometidos com a ausência da informação.

“O reconhecimento paterno garante diversos direitos à criança, a exemplo da pensão alimentícia e a plano de saúde corporativo – quando a empresa do pai oferece como benefício aos funcionários”, explica o defensor público Rodrigues Júnior.

O reconhecimento da paternidade é um direito da criança, independente da vontade do pai querer conviver ou dos pais serem casados. O defensor esclarece, ainda, que existem duas maneiras de realizar o registro da paternidade: voluntariamente ou por meio judicial.

“Nós incentivamos, sempre, o reconhecimento voluntário da paternidade. Mas, quando não é possível, é muito importante que a mãe procure a Defensoria Pública, para podermos dar entrada no processo de investigação da paternidade”, detalha o defensor. Em João Pessoa, a DPE funciona na Rua Monsenhor Walfredo Leal, 503, Tambiá.

Para facilitar o acesso a esses registros, a DPE-PB realiza, periodicamente, o mutirão “Meu Pai Tem Nome”. Durante a ação, a instituição atende famílias que desejam reconhecer a paternidade, seja de forma voluntária ou através do exame gratuito de DNA, ofertado pelo Hemocentro. Na ocasião, também é realizado o reconhecimento da paternidade (ou maternidade) socioafetiva, reconhecimento jurídico do laço familiar com base no afeto.

O último mutirão foi realizado na semana passada e encaminhou 26 famílias ao processo de reconhecimento de paternidade. “A gente busca estagnar esse número e reduzir para que essas crianças possam ter direitos garantidos”, conclui o defensor.

Saiba Mais

O registro de nascimento, quando o pai for ausente ou se recusar a realizá-lo, pode ser feito somente em nome da mãe que, no ato de registro, é orientada a indicar o nome do suposto pai ao cartório, que dará início ao processo de investigação judicial de paternidade. Uma vez notificado, caso o homem se negue a comparecer ao exame, a Justiça entenderá que há presunção da paternidade e autorizará a emissão do registro de nascimento com o nome do suposto genitor.

 *Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 21 de abril de 2024.