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FUTURO DO TRABALHO

Ordem social reconfigura ofícios

publicado: 09/09/2024 09h25, última modificação: 09/09/2024 09h25
Avanço acelerado da tecnologia e do digital transforma estrutura do emprego tradicional e traz novas demandas
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Janaildo, que conserta alicates e malas, amola facas e tesouras e ainda é sapateiro e engraxate, diz que movimento diminuiu muito | Fotos: Roberto Guedes

por Marcella Alencar*

O mundo do trabalho vive em permanente mudança. Algumas profissões perdem força, outras se ressignificam — e outras, simplesmente, desaparecem. No Centro de João Pessoa, é possível perceber algumas dessas mutações. Parte dos trabalhadores informais, como sapateiros e amoladores de tesouras, procuraram novas formas de sustento, enquanto outros ainda resistem às alterações do tempo e permanecem oferecendo os seus serviços em pontos específicos da cidade, como a Praça Vidal de Negreiros.

Segundo os trabalhadores dessa praça, antes, havia mais de 20 engraxates e sapateiros ali; hoje, esse número caiu para apenas seis. Os que continuam, trabalham há décadas na região. Como “seu” Antônio Pereira, que é sapateiro e engraxate há 56 anos, no mesmo local. “Comecei aos 13 anos de idade. Muitos deixaram o ramo sem se aposentar. Não aparece mais conserto”, lamenta. Ele diz que criou os filhos com esse trabalho, mas não vê mais “futuro” no ofício. “Eu disse a meus filhos para estudarem, que isso aqui só dá para mim. Hoje em dia, eles todos têm carteira assinada”, conta.

"Comecei aos 13 anos de idade. Muitos deixaram o ramo sem se aposentar. Não aparece mais conserto"
- Antônio Pereira

Na Travessa Frutuoso Barbosa, mais conhecida como Rua dos Sapateiros, no Centro de João Pessoa, trabalha Janaildo Nascimento. Ele oferece uma gama de serviços: conserta alicates e malas, amola facas e tesouras e ainda é sapateiro e engraxate. Como “seu” Antônio, ele também começou aos 13 anos, consertando e costurando calçados. Mas, nos últimos 20 anos, tudo mudou. “Hoje em dia, está muito diferente, bem mais parado. Nem todo mundo tem dinheiro para consertar e, às vezes, é melhor jogar fora do que mandar ajeitar”, observa.

Esta preferência por descartar um objeto não pode ser creditada somente à velocidade exigida pelas novas tecnologias e à falta de interesse da população, mas às mudanças verificadas na fabricação dos produtos, como aponta o sociólogo Roberto Véras, professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e pesquisador do Núcleo de Trabalho, Desenvolvimento e Políticas Públicas (TDEPP), da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). “Alguns itens, como bacias, copos e jarras, passaram a ser produzidos em larga escala, a partir de outros materiais. Panelas são feitas com lâminas de alumínio tão finas e a preços tão baixos, que não justificam mais o seu conserto”, exemplifica.

Extinção

Para compreender a relação entre um período e as suas profissões, é necessário analisar as transformações sociais. Em sua carreira, Véras analisou parte dessas mudanças — e como elas também modificam os hábitos da população.

“Sempre que variam as condições de incorporação da força de trabalho, surgem e desaparecem postos de trabalho e formas de ocupação. Por exemplo, não existe mais a figura do caixeiro-viajante, que percorria o interior do país, muitas vezes, no lombo de um animal, com um mostruário de produtos, tomando anotações dos clientes”, aponta. “No seu lugar, temos hoje redes de distribuição no atacado e no varejo, representantes comerciais e venda pela internet, que atingem todos os quadrantes do país”, acrescenta.

As modificações de caráter estrutural são as que mais atingem os postos de trabalho. Com as transições do capitalismo, elas ganham velocidade e intensidade — sobretudo, com o incremento de novas tecnologias, configurando o que é chamado de capitalismo 4.0. “Esse capitalismo se sustenta, principalmente, nas tecnologias digitais”, define Eugênio Pereira, também sociólogo e pesquisador do Núcleo TDEPP.

Segundo ele, o capitalismo já nasceu extinguindo uma série de ofícios, que eram próprios do velho ordenamento feudal. “É típico do capitalismo produzir esses desconfortos em relação ao trabalho e aos saberes”, observa. A isso, junte-se a herança colonial brasileira e chega-se às relações de trabalho que vigoram hoje, no país.

Em paralelo, Véras pontua que, muitas vezes, quando um produto industrial se modifica ou se torna mais barato, provoca forte impacto em antigas profissões. Como exemplo, ele cita o sapateiro. “Antes, os calçados eram fabricados fundamentalmente de couro; hoje, eles estão sendo feitos, cada vez mais, com material sintético. Com isso, passam a ser descartáveis e levam à inviabilidade da profissão, que é dedicada aos consertos”, aponta.

Extinção de profissões é típica das mudanças do capitalismo

Segundo Véras, as mudanças tecnológicas, especialmente as que se inscrevem na denominada revolução informacional, mudaram a oferta de serviços. “Muitas vezes, sob o pretexto da modernização, pode prevalecer a precarização do trabalho”, diz ele, referindo-se, por exemplo, ao trabalho de entregadores e de motoristas de aplicativos.

"Muitas vezes, sob o pretexto da modernização, pode prevalecer a precarização do trabalho"
- Roberto Véras

Em alguns setores, no entanto, o mercado pode ficar desabastecido de profissionais que supram a necessidade do empresariado. Em entrevista ao Jornal A União, em julho passado, o diretor do Sine-PB, Flávio Costa, falou sobre a falta de alguns profissionais no mercado. “Basicamente, não temos açougueiro em João Pessoa. No interior, o jovem aprende o ofício com o pai e vem morar na capital. Aqui, precisa lidar com várias despesas, e o salário de açougueiro, que varia entre R$ 2 mil e R$ 2,5 mil, muitas vezes, não compensa”, explica.

Conforme Eugênio, esse descompasso é comum, no modelo de produção. “Daí a importância da função do Estado no desenvolvimento de políticas públicas para os diferentes setores, com formação profissional e capacitações que possam corrigir essas distorções momentâneas”, analisa.

De pai para filho

Assim como a profissão de açougueiro citada pelo diretor do Sine-PB, outros ofícios, antigamente, eram passados de uma geração para a outra. O faz-tudo Janaildo ainda vive nessa configuração. “Tenho três filhos, e um deles já segue o mesmo caminho. Mas é por necessidade. Eu preciso que alguém chame cliente para cá, porque o movimento caiu bastante, então ele me ajuda muito”, explica.

Já a costureira Edna Richene, que tem um ateliê no Bairro de Oitizeiro, na capital paraibana, atua há mais de 20 anos na função e revela ter muito zelo por suas máquinas de costura. Mas o filho não quer nem mesmo aprender a costurar. “Ele trabalha na área do Direito, já é casado e tem a família dele”, diz.  

Informais lamentam pouca clientela e dizem que, hoje, muitos preferem descartar a consertar | Foto: Roberto Guedes

Edna conta que a demanda mudou muito, nos últimos anos. “Antigamente, as pessoas prezavam por uma costura mais refinada e detalhada. Hoje, o básico é o melhor, principalmente para a juventude”, diz. Segundo ela, nos últimos anos, a procura pelos seus serviços aumentou para fazer ajustes e consertos de roupas. Ou seja, o ofício de Edna passou por uma ressignificação.

A relação geracional depende do contexto e varia conforme a classe social e o modelo de trabalho. De acordo o professor Mário Ladosky, também sociólogo e pesquisador do Núcleo TDEPP, essa configuração ainda é comum no ramo de confecções do interior do Brasil, a exemplo do que ocorre em Caruaru, Agreste pernambucano. “No polo de confecções de Pernambuco, tem muita gente costurando dentro de casa, com filho, sobrinho, vizinha, todos fazendo roupas para grandes marcas”, pontua.

Outras profissões que persistem em uma configuração que prioriza a reprodução geracional de um trabalho estão circunscritas em grupos de elite. “São profissões que se associam à posição de status, como médicos, profissionais da área jurídica e empresários, entre outros”, diz Véras.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 08 de setembro de 2024.