Notícias

comunidades terapêuticas

Responsáveis cometiam sequestros

publicado: 19/11/2024 09h07, última modificação: 19/11/2024 09h07
MPPB aponta crimes e violações de direitos em instituições de acolhimento que foram interditadas pelo estado
1 | 2
Conforme Fabiana Lobo, alguns dos locais inspecionados atuavam como cárceres privados, impedindo os residentes de partirem | Fotos: Divulgação/MPPB
2 | 2
Fotos: Divulgação/MPPB
Fabiana Lobo, promotora do MPPB - credito ascom MPPB (2).jpeg
10-09-2024-comunidade-terapeutica fiscalizada em puxinana- credito fabiana-lobo.jpeg

por Samantha Pimentel*

Duas comunidades terapêuticas foram interditadas, em Campina Grande, na semana passada. Ao todo, as intervenções, que ocorreram em estabelecimentos do Bairro das Nações e do Jardim Tavares, resultaram no resgate de 46 pessoas, encontradas em condições que incluíam a violação dos direitos humanos.

As operações foram fruto da atuação do Grupo de Trabalho Interinstitucional de Fiscalização de Comunidades Terapêuticas, coordenado pelo Ministério Público da Paraíba (MPPB), com participação da Secretaria de Estado da Saúde (SES-PB), da Agência Estadual de Vigilância Sanitária (Agevisa-PB) e dos conselhos regionais de saúde. Durante este ano, o esforço conjunto já identificou irregularidades em outras comunidades terapêuticas pela Paraíba — em cidades como João Pessoa, Boa Vista, Puxinanã, Lagoa Seca e Santa Rita —, chamando atenção para a falta de cumprimento da legislação vigente, que determina as normas e requisitos a serem seguidos por esses espaços.

As comunidades terapêuticas são entidades privadas, sem fins lucrativos, que devem oferecer acolhimento contínuo, em caráter residencial e de forma transitória, por um período de, no máximo, nove meses. O foco de atendimento desses lugares são maiores de 18 anos, em situação de vulnerabilidade social, que apresentem necessidades clínicas estáveis em decorrência do uso de drogas, como crack, cocaína e álcool, entre outras substâncias.

Conforme especifica Fabiana Lobo, promotora de Justiça e coordenadora do Centro de Apoio Operacional da Saúde (CAO Saúde), órgão auxiliar do MPPB que coordena o Grupo de Trabalho dedicado à fiscalização das comunidades terapêuticas, a atuação desses espaços é determinada por lei.

“A própria Lei Antidrogas prevê a existência dessas comunidades, que não são estabelecimentos de saúde, mas prestam serviço no acolhimento de pessoas com transtornos decorrentes do uso de drogas. Não se trata de internação, que é possível em estabelecimentos de saúde, mas de um acolhimento que deve funcionar em regime de ‘porta aberta’ — ou seja, não pode haver permanência contra a vontade da pessoa”, destaca a promotora.

 Finalidade desvirtuada

De fato, segundo Fabiana Lobo, durante as fiscalizações do Grupo de Trabalho coordenado pelo MPPB, as autoridades envolvidas nessa iniciativa têm percebido que algumas comunidades terapêuticas paraibanas estão desvirtuando sua finalidade e chegam a cometer crimes de sequestro e de cárcere privado.

“Estão acolhendo pessoas em internação forçada, ou seja, contra sua vontade, o que não é possível pela legislação brasileira. Temos visto, também, que as famílias [dos residentes] chegam, muitas vezes, a pagar um resgate, porque pessoas que não são da área de saúde colocam a vítima em um carro — muitas vezes, com o uso de força, ou se passando por um policial civil — e levam-na contra sua vontade. Ela fica lá, trancada, por meses, até mesmo anos”, relata a promotora de Justiça.

Entre outras irregularidades identificadas durante as inspeções desses estabelecimentos, as autoridades registraram a aplicação de “garapa”, como se denomina uma mistura de medicamentos dada a acolhidos que querem deixar as comunidades. “É uma espécie de contenção medicamentosa. Quando a pessoa se agita e tenta sair, um interno mesmo ministra essa ‘garapa’. A pessoa perde a consciência e dorme por dois ou três dias”, explica a representante do MPPB.

Fabiana ressalta que, para tratar os casos de dependência química que necessitam de internação, pode-se buscar diretamente o suporte especializado oferecido por instituições autorizadas a prestar atendimento de saúde. “Com o laudo médico, a família do paciente pode buscar internação em um estabelecimento de saúde. O próprio Sistema Único de Saúde (SUS) prevê uma série de equipamentos, como o Centro de Atenção Psicossocial. Também há clínicas particulares que prestam esse serviço”, orienta a promotora.

Segundo a lei, residência deve ser voluntária 

No Brasil, o funcionamento das comunidades terapêuticas foi normatizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) na Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) no 29, de 30 de junho de 2011.

De acordo com o documento, as instituições dessa categoria devem acolher pessoas que buscam, de forma voluntária, tratamento para dependência química, não sendo permitida a residência involuntária e compulsória dos acolhidos  —  como foi registrado durante o trabalho de fiscalização do MPPB na última semana.

Ainda segundo a resolução da Anvisa, o principal instrumento terapêutico a ser utilizado nesses locais deve ser a convivência entre os pares, que precisam ter uma rotina diária bem estruturada. Entre suas atividades, podem-se promover: práticas esportivas; atendimentos em grupo ou individuais; participação em trabalhos de limpeza e de organização do ambiente; ações voltadas ao estudo para alfabetização ou profissionalização; momentos lúdicos; e esforços para facilitar a reinserção social dos acolhidos.

Para funcionar, as comunidades também precisam, conforme os termos da RDC no 29/2011, manter uma equipe de profissionais em tempo integral e em número compatível com as atividades desenvolvidas, além de possuir mecanismos de encaminhamento dos residentes à rede pública de saúde, para casos clínicos que necessitem de assistência médica especializada. Além disso, o grupo responsável pelo funcionamento do estabelecimento deve contar com um membro de referência para se encarregar dos medicamentos que tenham sido prescritos para o uso dos acolhidos.

Quanto à estrutura desses espaços, a resolução da Anvisa exige a existência de alojamentos, refeitório, lavanderia e salas de atendimento, entre outros equipamentos. Também é permitido aos residentes receber visitas de familiares, e seu tratamento pode ser interrompido a qualquer momento, conforme sua vontade (exceto em casos de risco imediato de vida para si mesmo e/ou para terceiros, ou de intoxicação por substâncias psicoativas, avaliadas e documentadas por um profissional médico).

Além de manter atualizada sua autorização de funcionamento, de acordo com a legislação sanitária local, as instituições devem preservar sigilo sobre as informações pessoais dos acolhidos e respeitar a diversidade religiosa, étnica, de orientação sexual e ideológica dessas pessoas e de seus familiares.

 Para denunciar

Aqueles que tenham conhecimento de comunidades terapêuticas com atuação irregular podem denunciá-las, anonimamente, por meio dos canais do MPPB, como a Ouvidoria. É possível acessar o setor através da seção Fale Conosco do site https://www.mppb.mp.br.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 19 de novembro de 2024.