No dia 30 de agosto de 2024, a vida da estudante Ana Patrícia Barbosa Cavalcanti — à época, com 16 anos de idade — virou alvo de chacota cruel nas redes sociais. Imagens da adolescente circularam em grupos de WhatsApp, ao lado da de outros jovens, em uma montagem de cunho racista, acompanhada da legenda em inglês “the planet of the six monkeys” (“o planeta dos seis macacos”). O caso, transformado em Boletim de Ocorrência (B.O.), nunca avançou na esfera judicial.
O impacto da cena atravessou a tela e atingiu a família em cheio. “Essa imagem com essa frase te choca? Imagina em mim o estrago que ela faz”, escreveu a mãe, a técnica em Radiologia Ana Carolina Brito, em uma postagem virtual emocionada e carregada de dor e indignação. “O transtorno e a dor machucam famílias. Eu não permitirei que o racismo seja legitimado. Enquanto em mim tiver veia que pulse, vou me manter viva para combater as justificativas infundadas de quem age inconsequentemente”, desabafou.
O B.O. foi registrado um mês depois, em 30 de setembro de 2024, na Delegacia de Polícia Civil de Campina Grande. No entanto, até hoje, segundo Ana Carolina, nada evoluiu no processo. “Um ano já se passou e minha filha nunca foi chamada para depor. Isso martela diariamente na minha cabeça. Para onde eu vou? Com quem eu falo? O que eu faço? Só tento proteger minha filha”, lamenta a mãe.
A história de Ana Patrícia não é isolada. Ela faz parte de uma estatística dolorosa: de janeiro a agosto deste ano, o Disque 100, canal do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), registrou 2.442 denúncias de violência contra crianças e adolescentes, no ambiente virtual, em todo o país. Só na Paraíba, foram 194 casos, colocando o estado em segundo lugar no ranking nacional, atrás apenas de São Paulo.
O salto observado em agosto impressiona: foram 178 denúncias na Paraíba, frente a apenas uma em julho. João Pessoa concentra o maior número de registros (115), seguida por Cajazeiras (39) e Campina Grande (4). Os municípios de Juazeirinho, Lagoa Seca, Monte Horebe e Puxinanã também aparecem na lista, com duas denúncias cada. Já as cidades de Santa Rita e Serra Redonda registraram, igualmente, uma ocorrência. Há, ainda, 26 denúncias sem origem especificada no estado.
O crescimento não somente expõe a gravidade da violência, mas também indica a fragilidade de algumas instâncias que compõem a rede de proteção contra ocorrências desse tipo. “A escola nos prometeu ações periódicas de combate ao racismo, mas nada foi feito. Parece que tudo é minimizado, como se fosse uma etapa da vida com a qual ela precisa aprender a conviver. Mas eu não aceito isso”, reforça Ana Carolina.
Salto de relatos, em agosto, acompanha “efeito Felca”
O crescimento das denúncias no mês passado coincide com a repercussão nacional de um vídeo publicado pelo youtuber Felipe Bressanim Pereira, conhecido como Felca. Na postagem, datada do dia 6 de agosto, ele denunciou o fenômeno de “adultização” infantil e a exploração de crianças em plataformas digitais, criticando o funcionamento dos algoritmos que monetizam conteúdos sexualizados e a atuação de influenciadores digitais que expõem menores de idade.
A mobilização foi imediata: as reflexões e os questionamentos de Felca chegaram ao Congresso Nacional, que aprovou a tramitação urgente de um projeto contra a “adultização” nas redes. Também resultou na prisão preventiva do influenciador paraibano Hytalo Santos e de seu esposo, Israel Vicente, acusados de exploração de adolescentes e tráfico humano. Felca listou, ainda, outros efeitos práticos positivos da repercussão de seu vídeo: um aumento de 2.600% em doações para instituições de proteção infantil e uma maior conscientização da sociedade a respeito do assunto.
Mas, enquanto a pressão em nível nacional gera respostas rápidas, casos locais, como o de Ana Patrícia, seguem em outro ritmo. O Boletim de Ocorrência registrado em 30 de setembro de 2024 não se desdobrou em depoimentos, audiências ou encaminhamentos, segundo a mãe da estudante. “Procurei a escola, a Justiça, conversei com políticos e nada foi feito. A única consequência foi a saída da agressora da escola, mas nunca soubemos se foi decisão da direção ou se a mãe dela resolveu tirá-la”, conta Ana Carolina.
De fato, a postura da escola também preocupa a mãe da vítima. Em vez de implementar campanhas educativas ou criar espaços de diálogo sobre o racismo, os diretores da instituição limitaram-se a oferecer uma bolsa de estudos após a repercussão do caso. “Minha filha aceitou ficar, dizendo: ‘Aonde eu for, vai existir gente assim’. Mas nossa condição era de que a instituição promovesse ações periódicas de combate ao racismo. Estamos quase no fim do terceiro bimestre e, até agora, nada aconteceu”, pontua.
Na avaliação de Ana Carolina, sem a atuação do Poder Público ou ações concretas por parte da escola, o combate à violência virtual continuará restrito a números frios, incapazes de proteger crianças e adolescentes que vivem o trauma de serem expostos em um ambiente “sem dono” como a internet. “O racismo não pode virar rotina, mas é isso que acontece quando a escola não age, quando o processo judicial não anda e quando o Poder Público não fiscaliza”, observa a técnica em Radiologia.
Poder Público reforça ações contra crimes
Abuso, exploração sexual, aliciamento e cyberbullying figuram entre as principais ocorrências que chegam ao Ministério Público da Paraíba (MPPB). Segundo a promotora de Justiça da Infância e Juventude de João Pessoa, Soraya Nóbrega, a internet tornou-se um ambiente de riscos significativos. “As redes sociais como WhatsApp, TikTok, Instagram e jogos on-line são usados para crimes como pornografia infantil, chantagem e exploração. Como a maioria dos jovens está conectada diariamente, isso amplia a exposição a situações abusivas”, afirma.
Para enfrentar esse cenário, o MPPB tem adotado estratégias de prevenção e conscientização, especialmente em parceria com escolas. Palestras, rodas de conversa e oficinas fazem parte de um trabalho contínuo de formação cidadã, que se soma à capacitação de professores e à criação de protocolos internos para lidar com denúncias. “A proibição do uso de celulares em sala de aula e a formação de educadores para lidar com os desafios digitais têm mostrado resultados práticos”, aponta a promotora.
Além da atuação institucional, o fortalecimento da relação entre pais e filhos é indicado como uma das medidas mais eficazes. Soraya salienta que o monitoramento das atividades on-line não deve ser visto como uma invasão de privacidade. “É proteção, cuidado e zelo. O ideal é que esse acompanhamento aconteça às claras, com conhecimento dos filhos, mostrando que é papel dos pais cuidar da segurança deles”, orienta.
Outro desafio é desconstruir a ideia de que agressões virtuais são “brincadeira”. Para a promotora, é essencial reforçar a gravidade desses atos. “Não se trata de diversão, mas de crime, e a omissão é uma forma de cumplicidade. É necessário incentivar crianças e adolescentes a reportar casos de cyberbullying e garantir que os responsáveis sejam punidos”, ressalta.
Do ponto de vista jurídico, a responsabilização dos agressores ainda enfrenta obstáculos, como a dificuldade em identificar perfis falsos e em preservar provas digitais. A promotora reconhece que a legislação brasileira precisa avançar. “Há brechas que dificultam a prevenção e a punição. É urgente atualizar a lei e investir na capacitação de profissionais especializados”, defende.
Entre as iniciativas em discussão, está o Projeto de Lei nº 4.474/2024, que altera o Marco Civil da Internet, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), com foco em maior controle parental e responsabilidades para as plataformas digitais. Para Soraya, o enfrentamento só terá sucesso com a soma de esforços: “Garantir os direitos de crianças e adolescentes é responsabilidade compartilhada. O Estado, as famílias, as escolas e as próprias empresas de tecnologia precisam assumir seu papel na construção de um ambiente virtual mais seguro”.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 7 de setembro de 2025.