Agenda exaustiva, cansaço e irritação são, geralmente, vistos como dissabores comuns da vida adulta. No entanto, atualmente, esses problemas também têm afetado a rotina de muitas crianças, sobrecarregadas por toda uma sorte de atividades escolares e extracurriculares. Para além de apelar ao equilíbrio e censurar os excessos, especialistas chamam atenção para uma necessidade fundamental à infância: tempo para “fazer nada” e aprender a lidar com o tédio.
De acordo com Gabriela Pires, psicóloga especializada no público infantojuvenil, a partir dessa experiência, os pequenos podem, por exemplo, criar brincadeiras novas ou brinquedos com objetos inesperados. “Ser criança é ter tempo para brincar, ter tempo para desenvolver a imaginação e a criatividade. Para isso, ela precisa se sentir entediada. Ela precisa se ver diante de uma situação em que ela não tenha nada para fazer e, então, ela vai desenvolver essa criatividade e essa imaginação”, explica.
"O ritmo das nossas vidas está cada vez mais desalinhado com o ritmo da infância"
- Maria Luíza Cavalcanti
A especialista relata já ter observado exemplos de limitação criativa entre seus próprios pacientes. “A criança chegou a dizer: ‘Ah, eu usei todos os jogos que têm na sala, não tem nada para fazer’. Ela não sabia criar novas brincadeiras a partir daqueles jogos, a partir de um brinquedo, a partir de uma folha de papel”, exemplifica Pires, ressaltando que até mesmo os recém-nascidos precisam de tempo ocioso, para observar as cores e formas ao seu redor ou brincar sozinhos em berços e carrinhos.
De fato, para os menores, que se encontram em uma fase sensível de desenvolvimento, reproduzir os vícios de uma vida adulta, focada em valores como produtividade, revela-se uma prática danosa. “Na verdade, a gente tem vivido em uma sociedade de excessos: ‘Tem que ser muito produtivo. Se você está descansado, é sinal de que seu dia não foi bom’. Muitos pais vivem esse excesso e acreditam que isso vai ser benéfico para a criança”, diz a profissional de saúde mental.
Sinais de estafa
Apesar de a redução das capacidades de imaginação e criatividade serem os efeitos mais explícitos do impacto de uma rotina cheia, a raiva, o cansaço e a ansiedade também podem ser alertas de sobrecarga no dia a dia infantil. “Muitas vezes, a raiva expressa esse cansaço da criança, até porque o cérebro dela ainda está em desenvolvimento. Ela tem dificuldade de entender o que está sentindo e expressar isso. Por isso, ela se mostra mais cansada e mais ansiosa no cotidiano”, aponta Gabriela Pires.
A psicóloga infantojuvenil Maria Luíza Cavalcanti concorda, indicando que a exaustão entre as crianças pode, ainda, manifestar-se por meio de transtornos alimentares e comportamentos voltados a chamar a atenção dos pais. Para Cavalcanti, “o ritmo das nossas vidas está cada vez mais desalinhado com o ritmo da infância”, e os menores deveriam ser preservados de rotinas mais intensas, principalmente, até os seis anos, considerada uma etapa fundamental de seu desenvolvimento — embora a especialista ressalte que excessos precisam ser evitados em qualquer idade.
Não são apenas as múltiplas atividades que podem cansar os pequenos. A estafa pode resultar, por exemplo, de um gerenciamento ineficiente do tempo no dia a dia familiar. “Os pais reclamam da criança, dizendo: ‘Esse menino é muito apressado, quer tudo na hora, quer tudo para ontem’. Mas é o mesmo pai ou mãe que diz, quando a criança senta para comer: ‘Corra, coma logo, coloque a roupa logo’. Tudo tem que ser rápido, urgente, e a criança vai aprendendo a viver assim”, alerta Cavalcanti, reforçando a importância de se cultivar o ócio e o tédio em favor da imaginação e da criatividade.
Momentos “zero tela” estimulam criatividade e contato familiar
É verdade que programar muitas atividades para os filhos costuma ser uma estratégia dos pais para mantê-los distantes das telas (de celulares, computadores, TVs e tablets). Mas, assim como o uso excessivo delas, a agenda intensa também pode ser nociva ao ócio criativo infantil, conforme frisa Gabriela Pires.
Uma das recomendações da psicóloga para contornar o problema da distração com os dispositivos digitais é que sejam adotados momentos “zero tela” na rotina familiar, inclusive, como forma de estimular mais interações presenciais entre pais e filhos. “O ideal seria [reservar horários de “zero tela”] todos os dias. Tem família que separa uma hora por dia. Tem famílias que priorizam o momento à mesa, em que não se pode usar telefone”, descreve. Quem não pode abandonar o celular em razão do trabalho deve escolher o melhor momento para priorizar a atenção dos outros. “O tempo dos pais com os filhos é insubstituível, não tem como colocar uma atividade extracurricular ali, tem coisas que só os pais podem fazer pelos filhos”, destaca Pires.
Durante essas interações, os pais podem, ainda, utilizar-se de práticas simples para contribuir com o desenvolvimento cognitivo das crianças — aproveitando, por exemplo, perguntas que elas possam lhes fazer. “Nem as respostas são para dar prontas. Isso faz parte do desenvolvimento. Questione, leve a criança a refletir sobre aquela situação, porque ela precisa disso”, ressalta a especialista.
Diálogo e equilíbrio
Aulas de inglês, música, natação, futebol e musculação, além da escola. Esses são alguns dos compromissos da agenda semanal do estudante Guilherme Medeiros, de 12 anos. Sua mãe, a psicóloga Daniela Medeiros, salienta que toda essa programação foi definida ao lado do menino, incluindo atividades que considera essenciais à sua formação, mas também respeitando suas preferências. “Essa rotina, eu não criei sozinha, criei com ele do meu lado. Ele tem que participar, porque é a vida dele”, relata, assegurando que o dia a dia do filho reserva, ainda, momentos de descanso e tempo livre — que incluem o uso limitado de telas digitais.
Na casa da família, há até um “estacionamento” para celulares, utilizado especialmente no horário das refeições, quando todos aproveitam a companhia mútua. Daniela afirma que sempre prezou pelo equilíbrio no cotidiano de Guilherme. “Entendo muito essa necessidade de brincar. A brincadeira, em si, é tão valiosa para a criança quanto o trabalho do adulto”, enfatiza Medeiros.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 28 de novembro de 2024.