Um dia, eles nos pegam no colo e nos ajudam a construir nossas maiores memórias. Em outro, somos nós que precisamos cuidar deles, retribuindo tudo o que nos deram ao longo de décadas – sejam como avós, pais, mães ou tios. Seria, teoricamente, o ciclo natural da vida, mas, aqui na Paraíba, muitos idosos vivenciam o contrário de todo o sossego que deveriam ter. Justo em seu momento mais vulnerável, em que o corpo e a mente, muitas vezes, sequer respondem como antes, eles têm recebido, em vez de gratidão e paciência, agressões.
De 1o de janeiro a 2 de junho deste ano, 1.110 pessoas acima de 60 anos foram agredidas no estado, segundo o Painel de Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. O número é 29% maior que o registrado no primeiro semestre de 2023.
Por dia, mais de sete idosos sofrem violência; em um mês, são, em média, 222 casos. Se considerarmos que junho apenas começou, essa taxa tende a ser mais preocupante. Seguindo a tendência, haverá mais de 1.300 ocorrências até o fim do mês, quase 55% mais casos que no semestre inicial do ano passado.
"No momento em que deveriam descansar e ser acolhidos, são tratados como entulho ou mina de ouro, quando possuem patrimônio"
- Risalba Cavalcanti
O aumento de agressões a idosos tem acompanhado o crescimento do percentual da população composta por pessoas com 60 anos ou mais. Na década de 1990, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), esse grupo representava 7,31% dos brasileiros. No último Censo, de 2022, a porcentagem subiu para 15,82%, uma alta de 8,5 pontos percentuais. “Aumentou a quantidade de idosos? Sim! Mas esse crescimento absurdo de casos só mostra que não estão dispostos a retribuir tudo o que recebemos dos idosos, quando eles eram ativos”, avalia a defensora pública Risalba Cavalcanti, coordenadora do Núcleo Especial de Defesa e Promoção dos Direitos das Pessoas com Deficiência e Idosas (Neped).
Segundo ela, os tipos de violência variam muito, mas todos os casos começam com o abandono e a negligência. Pior: em grande parte, a agressão é praticada por filhos, netos e sobrinhos. “No momento em que deveriam descansar e ser acolhidos para aproveitar o descanso merecido em vida, eles são tratados com agressividade pelas pessoas mais próximas que, simplesmente, consideram o idoso um entulho ou uma mina de ouro, quando possui patrimônio”, lamenta Risalba.
Medo de denunciar agrava subnotificação de casos
Desde 2006, o dia 15 de junho passou a ser uma data voltada à sensibilização da população para o combate à violência contra a pessoa idosa. Definido pela Organização das Nações Unidas (ONU) e pela Rede Internacional de Prevenção à Violência à Pessoa Idosa, o Dia Mundial de Conscientização da Violência Contra a Pessoa Idosa deveria ser um momento de maior reflexão para garantir a segurança das pessoas com mais de 60 anos.
Entretanto, segundo o defensor público Ianco Cordeiro, que atua no Neped, o que se percebe é um aumento expressivo no número de casos de agressão desde a pandemia, agravado por uma subnotificação dessas ocorrências. “A maioria dos casos de violência contra a pessoa idosa é silenciosa e ocorre no ambiente familiar. Dificilmente, a vítima busca ajuda, porque sente vergonha de ter sido violentada de alguma forma, e também para não perder o vínculo com o familiar. Mas é importante dizer que, ao denunciar, o idoso receberá todo o apoio para sair da situação”, alerta Ianco.
A técnica de enfermagem Euzari Sancho, de 66 anos, foi uma dessas vítimas; ela sentiu medo de denunciar seus próprios irmãos por violências psicológica e patrimonial. Euzari cuidou da mãe durante 16 anos, sem qualquer apoio dos irmãos e, juntas, construíram uma casa conjugada. Nesse endereço, compartilhavam o quintal, a rotina e muito amor. “Minha mãe era tudo na minha vida. Eu a levava ao trabalho, quando não tinha com quem deixar, levava para passear. Eu vivia para fazê-la feliz – e ela era”, relata.
Mas, após a morte da genitora, há cerca de três anos, a rotina feliz de Euzari foi transformada por violência psicológica e uma tentativa de violência patrimonial, quando seus irmãos passaram a pressioná-la a sair do terreno que ela ajudou a comprar e se apossaram do aluguel de dois imóveis de sua mãe. Mesmo em processo de luto, ela arranjou coragem para denunciar a situação. “Eles nunca quiseram ajudar a cuidar da minha mãe, com a conversa de que só eu saberia cuidar dela. Mas, quando ela partiu, correram para conseguir a herança. Se não fosse a defensoria pública para me defender, eu não sei como conseguiria lidar com a situação”, complementa, sem conter as lágrimas.
Em grande parte dos casos, a agressão é praticada por familiares, como filhos, netos ou sobrinhos
João Pessoa lidera número de processos no MPPB
Casos como o de Euzari chegam, diariamente, à Promotoria de Justiça de Defesa dos Direitos do Idoso do Ministério Público da Paraíba (MPPB), que age tanto nas demandas individuais como na esfera coletiva – por exemplo, ocorrências envolvendo instituições de longa permanência de idosos.
Só neste ano, o órgão atua em 119 processos relativos a crimes previstos no Estatuto do Idoso. João Pessoa é a cidade onde há mais casos de violência sendo investigados, somando 42,6% do total, seguida por Campina Grande (19,1%), Bayeux (11,8%) e Cabedelo (8,9%). Os municípios de Bananeiras, Serra Branca e Mamanguape têm, juntos, 17,6% desses registros.
Além de negligência, abandono e agressões (verbal e física), os casos mais corriqueiros têm sido de violências financeira e patrimonial, conforme a promotora de Justiça do MPPB, Fabiana Lobo, que acrescenta: “É uma denúncia recorrente, infelizmente. Mas o Ministério Público tem garantido a proteção do idoso, com uma atuação em rede com diversos órgãos, como o Conselho Municipal de Idosos, os Cras [Centros de Referência de Assistência Social], os Creas [Centros de Referência Especializados de Assistência Social], a Delegacia de Proteção ao Idoso e os órgãos de saúde”.
Penas previstas
Quem pratica crimes contra pessoas acima de 60 anos está sujeito às penas previstas no Estatuto do Idoso (Lei no 10.741/2003). Em vigor há 17 anos, a legislação assegura direitos fundamentais a saúde, dignidade, respeito, alimentação, liberdade e outras áreas da vida dessa parcela da população. As penas incluem pagamento de multas, prestação de serviços comunitários e até prisões, que variam de dois meses até 12 anos – sendo que o responsável pode ter a sentença agravada se for familiar da vítima.
Onde denunciar
Denúncias de violações contra idosos podem ser feitas, pela vítima ou por testemunhas, por meio do Disque 100, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. A população de João Pessoa também pode ligar para o Disque 156, da Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania, ou para o Conselho Municipal dos Direitos do Idoso (83 3218-9816), que funciona de segunda a sexta-feira, das 8h às 17h. Já a Delegacia Especializada no Atendimento ao Idoso fica na Av. Francisca Moura, 36, no Centro, com o telefone 83 3218-6762. Pode-se denunciar, ainda, a Polícia Militar (190), Polícia Civil (197), e em outras delegacias ou Creas.
Conheça os diferentes tipos de violência contra idosos:
- Violência física: uso da força física;
- Violência psicológica: agressões verbais ou gestuais;
- Violência sexual: relacionada à prática de ato ou jogo sexual, utilizando pessoa idosa;
- Violência financeira ou econômica: exploração imprópria ou ilegal dos idosos ou o uso não consentido de seus recursos financeiros ou patrimoniais;
- Abandono: ausência ou deserção dos responsáveis (governamentais, institucionais ou familiares) de prestar socorro a uma pessoa que necessite de proteção;
- Negligência: relacionada à recusa ou à omissão de cuidados devidos e necessários aos idosos, por parte dos responsáveis familiares ou institucionais.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 09 de junho de 2024.