por Lúcio Vilar
Especial para A União*
Série “Desterrados” conversa com a filósofa sobre o momento atual e as ameaças que lhe obrigaram a morar no exterior
Filósofa, docente, artista plástica, ativista e escritora bem-sucedida - com mais de vinte livros publicados sobre filosofia e também no campo da ficção - Marcia Tiburi resolveu não esperar a posse do então capitão Jair Bolsonaro e deixou o Brasil em dezembro de 2018. Razões não lhe faltaram. Afinal, desde a campanha eleitoral (ela foi candidata ao Governo do Rio pelo PT), sua vida pessoal havia ‘virado um inferno’, conforme desabafou. Ela se tornou um dos alvos preferenciais de ‘fake news’ que se misturaram a ameaças constantes e reais de morte, não lhe permitindo, sequer, ir na padaria sozinha. Durante todo o período eleitoral andou com forte aparato de segurança, incluindo carro blindado, para se ter uma noção da gravidade da situação. Encontra-se, hoje, nos Estados Unidos, em uma ‘residência literária’ a partir de convite de um grupo de pessoas que abriga e apoia escritores perseguidos do mundo inteiro. Ao seu término, o plano é seguir para a França nesse périplo forçado e, o que é pior, sem previsão de retorno. “Eu amo o meu país, nunca pensei em sair do Brasil na minha vida, é muito triste e difícil ter que sair do meu país por não me sentir segura e não poder fazer mais o meu trabalho”, declarou logo que a imprensa brasileira tomou conhecimento de sua decisão, em março deste ano. Nesta, que é a segunda entrevista da série ‘Trilogia Desterrados’, Marcia Tiburi discorre sobre seu novo livro em que desvela o conceito de ‘psicopoder’, e também do ‘delírio coletivo’ em marcha, no Brasil, do discurso de ódio que alimentou a política nos últimos anos, de ‘capitalismo de destruição’ patrocinado pelo governo vigente e do que chama, categoricamente, de “eterna covardia e corrupção da grande mídia brasileira”. Confiram principais trechos da entrevista.
A ENTREVISTA
A UNIÃO - A questão da ‘sobrevivência em meio a paranoia delirante que assola o país’ é o pano de fundo de seu novo livro (Delírio do Poder), com apresentação de Luiz Inácio Lula da Silva. O que é exatamente o “psicopoder” e a “loucura coletiva” na era da desinformação, abordados na obra?
MÁRCIA TIBURI - Há algum tempo muitos vem estudando o que se chama de “biopoder” que significa o cálculo que o poder faz sobre a vida. Isso quer dizer, o poder não é mais como antigamente, só o que violenta e mata, que pune ou castiga, mas é também o que governa as pessoas por meio do controle da vida de um modo geral. Entra aí o controle do modo como se trabalha, do preço que se paga pelos alimentos ou pelo plano de saúde. O poder moderno seduz muito e engana, e por seu caráter mais fluído, parece ser menos violento. Mas não deixa de ser muito próximo da violência ao mesmo tempo que se apresenta como sedução. É como se o poder violentasse e seduzisse ao mesmo tempo, mas deixando a possibilidade da dúvida como acontece em todos os mecanismos de cominação. Claro que o poder age conforme as necessidades de sua própria manutenção. O que temos que notar é que o poder muda no tempo histórico e se organiza conforme um cálculo. O poder é sempre um cálculo, sempre um projeto, mais ou menos sedução e violência em um cálculo pragmático. Agora o cálculo é ainda mais complexo porque se trata de um cálculo sobre o espírito, sobre a linguagem, sobre a vida mental e emocional das pessoas. Piscopoder é isso, o cálculo sobre a vida subjetiva das pessoas. Sobre o que elas pensam e sentem, sobre aquilo no que elas creem. Sobre a fé, inclusive. O que eu chamei de “loucura coletiva”, por sua vez, é um efeito produzido pelo psicopoder, pois o poder no método usado pelo governo atual está precisando que as pessoas se comportem, pensem e ajam como “loucas”. Loucura é um conceito genérico, mas que tem validade política. O que vemos Jair Bolsonaro fazer todos os dias é plantar delírio na cabeça dos que o seguem e também dos que não o seguem. Hoje, no Brasil, as pessoas estão totalmente pautadas pelo Ubu Rei (personagem de Alfred Jarry que fez sucesso no teatro desde o começo do século 20) brasileiro que ele é.
AU - No que consiste essa ‘residência literária’, ora em curso nos Estados Unidos, e como foi seu acolhimento nesse país?
MT - Residências literárias são comuns no mundo todo. No caso, eu fui convidada para ficar em uma casa adequada para receber a mim e a minha família (embora minha família não tenha ido comigo) por um grupo que apoia escritores perseguidos em todo o mundo. Um tipo de generosidade que vai precisar se desenvolver no Brasil, justamente porque teremos que sobreviver sob um regime fascistoide que prega a violência e não será fácil para ninguém, não vem sendo para ninguém. Lá eu terminei o ‘Delírio do Poder’, depois comecei outros projetos. Atualmente, concluo a ilustração de um livro infantil escrito por minha irmã.
AU - Pelas lentes da filosofia, sua área de formação, é possível encontrar respostas plausíveis ao estado de coisas vigente no país que experimenta retrocessos em todas as áreas? Seria o caso de atestar que o Brasil está gravemente enfermo?
MT - A hipótese do meu livro Delírio do Poder é que a mentalidade fascista que avança no Brasil foi produzida a partir da implementação de um discurso de ódio que serve ao poder. Se os brasileiros estão doentes é porque foram envenenados. A maior parte do ódio que as pessoas sentem hoje não lhes pertence e sequer tem objeto. O ódio ao PT, aos comunistas, por exemplo, é carregado de ilusão, é um ódio flutuante que precisa de um inimigo imaginário. Qualquer um pode ser esse inimigo. Os nazistas tinham os judeus, os ciganos, os negros. O Brasil da “elite do atraso” (na expressão de Jessé Souza) tem minorias políticas, negros, índios, feministas, LGBTQs como inimigos. As pessoas se entregam ao ódio por muitos motivos. Nem sempre sabem o que estão odiando. Por trás de todo ódio, quando ele existir, haverá muito desejo recalcado. E talvez seja mais complexo do que isso. A meu ver, as pessoas estão sendo incitadas a odiar. São estimuladas para isso diariamente há tempos e não é só por Bolsonaro. Ele é apenas o mestre atual. As pessoas aprenderam a falar com ódio, a praticar uma “performance” linguística nesse sentido, mas a maior parte das pessoas provavelmente não sinta o ódio que diz sentir. Elas agem como robôs, são vazias e o ódio é que lhes dá uma sensação de existência. É como se fossem incapazes de sentir e o ódio, por sua força, produzisse essa sensação. Nesse livro eu discuto também o conceito de doença, não quis usá-lo em nenhum sentido relacionado à nada que fosse natural. Toda essa dircurssividade, esse comportamento, está sendo produzido por grupos que são os donos dos meios de produção da linguagem, das igrejas às TVs, dos jornais às redes sociais, as pessoas estão sendo bonecos de um grande ventríloquo. Falam sem saber o que dizem e não sabem que seus discursos foram preparados por outros com objetivos de poder. É evidente que vivemos na época do pensamento baseado na regra do “copia e cola”. Pensar é algo urgente, mas muitos não tem como pensar porque o ambiente da vida, dos meios de comunicação e das redes raramente criam condições para isso. Pense, como exemplo, na guerra contra a educação que vemos hoje, e na guerra à filosofia que todo governo autoritário leva a cabo. É uma espécie de envenenamento psíquico o que vivemos atualmente em nosso país. Sairemos vivos?
AU - Em sendo verdade que o Brasil ‘adoeceu’, o mundo também parece andar na contramão da história, com a ascensão conservadora nos EUA e uma onda direitista que ameaça varrer outros países latino-americanos e até a Europa. Reeditar o discurso iluminista, de matriz frankfurtiana, seria um imperativo para fazer frente à ‘nova idade média’, como dizia o poeta Cazuza duas décadas atrás?
MT - A meu ver, não há outra saída senão insistir na crítica, na análise, no esclarecimento, buscar criar espaços de resistência. Mas é complicado fazer isso hoje quando vemos ser eleito por vias “democráticas”, o governo mais destrutivo de que se tem notícia em nosso país. O mundo está estarrecido. Há ótimas teorias que podem nos ajudar a pensar, mas se trataria também de tentar atingir a mentalidade do povo e fazê-lo raciocinar. Mas como se os meios de comunicação são parte desse psicopoder de que estamos falando? As pessoas caíram em um delírio. E como você pode fazer alguém acordar de um delírio? O Brasil está vivendo um grande e imenso delírio coletivo. E Bolsonaro é o hipnotizador mor. Mas o delírio não foi inventado hoje. Hoje ele é apenas especializado em termos digitais. O racismo já era um delírio usado pelos donos do poder para manter o seupoder. Há algo de racional na atitude da “supremacia branca”? Não, esse tipo de ideologia apenas se sustenta produzindo personalidades capazes de reproduzir seu “vírus”. Chamo de delírio um tipo de fantasia que não tem sentido, mas que tem uma lógica interna e traz algum tipo de compensação seja emocional, seja financeira, seja social para quem delira. O mesmo podemos dizer do capitalismo e do machismo. Aqui acho que fica fácil entender que um homem branco e capitalista leva vantagens com o racismo, sua compensação é, sobretudo, econômica. Mas o que levaria alguém que não é branco, nem rico, nem heterossexual a bancar esses p r e c o n c e i t o s que não lhe favorecem? Esse é o lugar onde o delírio fica ainda mais evidente do ponto de vista da perversão do poder capaz de fazer com que gente ingênua ou mentecapta caia na sua teia. Por que as vítimas em potencial usam a máscara do seu algoz?
Candidata ao governo do Rio de Janeiro, no ano passado, a filósofa Marcia Tiburi se viu obrigada a deixar o Brasil diante de tantas ameaças a sua vida. Durante toda a campanha, andou em carros blindados, com seguranças, mas não quis seguir a vida dessa maneira. Hoje, residindo nos Estados Unidos, ela comenta como o mundo tem visto os acontecimentos no Brasil nesses primeiros meses de governo Bolsonaro e analisa programas como o Future-se.
AU - Como passamos a ser vistos, no exterior, nesses primeiros seis meses, uma vez que você tem tido a oportunidade de observar ‘in loco’ tais reações?
MT - O Brasil preocupa quem sabe o que está acontecendo. Mas para a maioria das pessoas o Brasil volta a ser aquele país gigante e atrasado que era no passado com ditadores cafonas no poder. Nesse exato momento, Bolsonaro já não é mais motivo de piada, mas de preocupação, pois os estrangeiros se deram conta de que ele é um flagelo antiecológico. Eu vejo alguma esperança nisso. Talvez ele acabe porque quer destruir a Amazônia, algo que afeta o mundo todo.
AU - Além dos traumas vividos na campanha (andar sempre com escolta por conta das ameaças de morte, ente outros problemas), que lições ficaram dessa experiência de se candidatar ao governo do Rio em 2018?
MT - Eu não uso a palavra trauma para falar da minha experiência. Penso que as pessoas escolheram errado e muito mal e que vão sofrer as consequências de suas escolhas, como eu sofro as minhas. Isso é lógico. Votaram em um dos piores candidatos do Rio, embora houvesse vários candidatos bem ruins, mas talvez não tão loucos. Lastimo que o povo tenha votado ao ser levado por mistificadores profissionais. Lastimo que falte uma cultura política democrática e preocupada com o bem comum entre nós, que queira uma sociedade mais justa realmente, mais amorosa e acolhedora, capaz de tornar a vida de todos mais feliz. E falo isso tendo em vista não apenas o Estado do Rio, mas também o nosso país. Fora do Brasil, todos perguntam, como é possível que o Brasil tenha escolhido quem escolheu para o cargo máximo da nação? Sabemos das campanhas publicitárias envolvendo manipulação de dados, a questão das empresas que comandam uma publicidade ilegal, que manipulam desejos de consumidores e também de eleitores. Então, mergulhados na ignorância, os brasileiros caíram nessa. Uma pena.
AU - O site The Intercept, de repente, se tornou um alento na perspectiva da retomada do Estado democrático de direito. Ao mesmo tempo, STF, grande mídia e parlamento parecem inclinados a ‘naturalizar’ as ilegalidades cometidas pelo ex-juiz da Lava Jato. Como tem acompanhado esse ‘paradoxo estendido na areia’?
MT - Há muita coisa para se pensar sobre esse novo capítulo da história. Mas podemos começar pensando na eterna covardia e corrupção da “grande mídia” brasileira. Tenho esperança de mudanças, mas não a curto prazo, nem mesmo a médio prazo no que concerne à política. Sobre o Judiciário, sabemos de juízes e promotes que se mantêm fiel à Constituição e às leis são hoje perseguidos, enquanto que canalhas recebem cargos como “prêmios” e são protegidos pelo governo. Sobre o ministro da Justiça, sobre o promotor mais famoso da Lava-Jato, o que dizer? São pessoas que atuam ligadas a um projeto de poder espertísismo: usaram o discurso da corrupção para acobertar a própria corrupção. Se você pensar como um perverso é simplesmente genial, mas é tão triste que as pessoas tenham caído nesse conto do vigário. É como se alguém pregasse contra o assassinato enquanto mata pessoas. O poder do discurso na contramão da prática deve ser levado mais a sério. O cinismo é a tática performática que personagens como Moro e Dalagnol utilizam. Um cínico é alguém que deixa os demais calados, ele consegue interromper a capacidade de responder do outro. O cinismo é uma força fundamental ao populismo. Embora haja algo de paranoico no cínico, ao mesmo tempo há algo de heroico. Ele encanta por sua indestrutibilidade.
AU - Sobre o projeto ‘Future-se’ e a recente escalada de impropérios vocalizados pelo presidente (que chegou a apelar para a escatologia), seria essa verborragia provocativa uma estratégia ou apenas a expressão de uma personalidade doentia e perversa?
MT - Os projetos do governo são todos de destruição do Brasil. O governo de Jair Bolsonaro segue a ideologia neoliberal radical pela qual se considera que é preciso provocar a total destruição de um país ou território para alcançar sucesso econômico. É o “capitalismo de desastre” pelo qual se produz problemas e horrores para a população para depois oferecer qualquer tipo de solução mesmo que aparente – e constantemente aparente - e lucrar muito com ela. É preciso, por exemplo, no caso da educação, destruir a instituição da educação pública, mas até mesmo a ideia de uma educação pública de qualidade e, mais ainda, é preciso fazer com que as pessoas odeiem a educação. O ódio, nesse sentido, é uma energia muito valorizada por esse tipo de governo porque ele serve para lixiviar a racionalidade que faria com que as pessoas considerassem importante a formação para o todo da sociedade para o bem de suas vidas como seres humanos. É verdade que pouca gente considera a educação desnecessária, mas esse número cresce. O culto da ignorância tem história e sempre foi importante em regimes autoritários. Um aspecto importante a não deixar de lado é que a maldade e a loucura não são a mesma coisa, evidentemente, mas nem sempre andam separadas.
AU - Quanto a verborragia...
No caso do personagem Jair Bolsonaro, ele dá todos os sinais de condição psíquica: um homem perverso, mau e louco ao mesmo tempo. Aqui uso o conceito de loucura em um sentido genérico, como quadro geral de perturbação mental que exigiria tratamento.
AU - Por último, como você recebeu a indicação de que é semifinalista do Prêmio Oceanos com o romance “Sob os Pés, Meu Corpo Inteiro”?
MT - Fico feliz que você tenha prestado atenção nessa notícia cultural nesse momento. É uma indicação que é importante por si só. Fiquei muito contente. Pouca gente sabe que me dedico a escrever romances. Essa história de duas irmãs me comove muito e fala do nosso país, da cidade de São Paulo como eixo da história ecológica, social e política que estamos construindo. É um livro pesado, mas com sinais de esperança e um delicado fio suavemente feminista que costura a narrativa. Tenho recebido muitas notícias de leitura e fico realmente contente.
*publicado originalmente na edição impressa de 18 de agosto de 2019