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“Falta uma vivência profunda sobre os direitos humanos”, diz Luiz Couto

publicado: 25/06/2019 11h04, última modificação: 25/06/2019 11h04
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"Quando dizem ‘a turma dos direitos humanos’, eu entendo que todo cidadão tem que ser da ‘turma’ dos direitos humanos" - Foto: Foto: Edson Matos

tags: luiz couto , andré cananéa , Conselho Estadual de Política Cultural da Paraíba , direitos humanos

por André Cananéa*

O presidente Jair Bolsonaro exonerou os integrantes do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura através do Decreto 9.831, publicado no Diário Oficial da União do último dia 10 de junho. Em uma canetada, ele extinguiu os 11 cargos de peritos do programa, que integra o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (SNPCT).

O Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura existia desde 2013 e era responsável pelas vistorias e intervenções quando haviam denúncias de tortura, crueldade ou tratamento degradante. As inspeções eram feitas em penitenciárias, hospitais psiquiátricos, casas de idosos ou de recuperação de menores infratores, por exemplo.

Na entrevista a seguir, o padre, professor na área de Humanas e ex-parlamentar Luiz Couto fala sobre direitos humanos e da sua luta por políticas públicas de inclusão que tornam a sociedade mais igualitária

Qualidades

Luiz Couto reúne três qualidades que lhe conferiram, por duas vezes, a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minoria da Câmara dos Deputados, em Brasília: é padre, professor na área de Humanas e foi parlamentar (três vezes como deputado federal e duas, deputado estadual).

A mais recente delas foi no ano passado, quando voltou a ocupar a cadeira que deixou em 2012, lutando por políticas públicas de inclusão que tornam a sociedade mais igualitária. “Os direitos humanos estão presentes em todas as dimensões do ser humano”, resume.

Atual secretário de Agricultura Familiar e Desenvolvimento do Semiárido, depois de quase 25 anos atuando no Legislativo, Couto reflete, nesta entrevista, o papel dos direitos humanos na sociedade moderna, mostra como o tema da fraternidade deste ano está inserida nesse contexto e mostra como a educação é fundamental para uma nova sociedade, mais igualitária, fraterna e respeitosa.

A entrevista


- O povo brasileiro, de maneira geral, tem uma visão muito reducionista dos direitos humanos, concorda?

Direitos humanos é tudo aquilo que leva as pessoas a terem qualidade de vida e a exercerem as suas dignidades de ser humano, que deve ser valorizado, respeitado e amado. Essa é uma dimensão mais ampla de Direitos Humanos. Quando dizem ‘a turma dos direitos humanos’, eu entendo que todo cidadão tem que ser da ‘turma’ dos direitos humanos. Ou seja, é fazer com que o ser humano viva com dignidade. Dom Helder (Câmara, 1909- 1999) tinha uma frase sobre aquela expressão ‘O meu direito termina onde começa o do outro’; ele dizia: ‘O meu direito termina onde termina o do outro e começa onde começa do outro’. É uma outra dimensão sobre os direitos humanos. A gente ainda tem uma visão muito egoísta do direito: é sempre o meu direito, quando, na verdade, trata-se de um direito coletivo. Por exemplo, o direito de respeitar a natureza, é um direito que a gente tem. Novamente: Dom Helder Câmara: ele colocava quatro elementos que são importantes na realização plena do direito à vida, do direito à liberdade, do direito a uma sociedade que respeite o ser humano. Ele dizia: justiça e paz devem estar sempre abraçadas; e verdade e amor devem estar numa relação mais profunda de amor.

- O senhor fala muito em Dom Helder. Ele foi um dos grandes defensores dos direitos humanos?

- Sem dúvida! Dom Helder era um defensor dos direitos humanos não apenas no discurso, mas também na prática. Tenho várias histórias dele para ilustrar isso. Por exemplo: ele costumava visitar moradores de rua e, num belo dia, ele soube que prenderam um deles. Dom Helder não contou conversa, foi até a delegacia e disse para o delegado: ‘Delegado, vim visitar meu irmão que o senhor prendeu’, e disse o nome da pessoa. O delegado retrucou: ‘É seu irmão? Irmão de sangue??’ ‘Sim, é meu irmão de sangue!’. ‘Mas ele nem parece com o senhor!’ ‘É delegado, o senhor não entende isso não. Ele é irmão de sangue porque corre nas veias dele, assim como nas minhas, o sangue que Cristo derramou por nós’. E assim ele conseguiu libertar o homem de lá!

- Também, com um advogado desses…

- Dom Helder costumava dizer que o ser humano, para ser livre, ele precisa do humor, da ironia, da mística e do que ele chamava de ‘ousadia-esperança’. E ele tinha muito essa dimensão do humor, da alegria que o papa Francisco fala tanto. O papa diz: cristão que não tem uma mística, não é cristão. E Dom Helder costumava dizer que quem alimenta isso é a ousadia-esperança.

- Quando a Igreja estabelece como campanha ‘Fraternidade e Políticas Públicas’ e evoca como lema as palavras do profeta Isaías ‘Serás libertado pelo direito e pela justiça’, ela está atentando também para os Direitos Humanos?

- Certamente. A dimensão dos Direitos Humanos deve estar presente em todas as ações humanas. Se não estiver, é desumano. Tem um teólogo, José Antonio Pagola, ele escreveu um livro chamado ‘Jesus e a Riqueza’ e nele, ele diz que a crise que nós passamos não é uma crise econômica, nem financeira, porque os bancos continuam ganhando muito, os empresários também continuam faturando...Também não é política, porque os políticos brigam, mas depois se recompõem. Ele diz que a maior crise é a crise de humanidade! Nós perdemos a dimensão do humano...

-...Em todo o mundo?

- Em todo o mundo… Nós temos uma sociedade que é inumana, desumana, desumanizante e desumanizadora. É justamente o direitos humanos que dá esse elemento para que as pessoas tomem consciência para que, no momento em que eu desrespeito o direito do outro, eu não vou poder ter esse direito aqui. Tem que haver um compartilhamento, a partilha daquilo que é produzido. Por isso que a política pública dá a dimensão de que aquilo vale para todo mundo, não só para uma pessoa ou um grupo. E essa dimensão coletiva é muito importante. Não existe direitos humanos sem uma economia solidária, sem uma sociedade igualitária, sem uma ecologia que possa ser respeitada.

- Esse tema vem bem a calhar no Brasil de hoje, não é verdade?

- Sim. A cada momento a gente vê a Igreja cada vez mais preocupada com aquilo que o ser humano está distante. A política fica atendendo interesses corporativistas, ou interesses do mercado financeiro, do mercado de petróleo, e esquece de investir em políticas públicas na área de Saúde, que é saúde para todos, para que as pessoas possam ter qualidade na saúde, uma educação de qualidade, que forme um cidadão, e não apenas um técnico, mas um cidadão que reconhece os seus direitos, mas também os seus deveres. Nós somos uma sociedade que olha muito para os direitos pessoais e esquece dos direitos coletivos, econômicos e sociais. - Na sua visão, que deixou recentemente a presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal, como está o Brasil, hoje, nessa matéria? - Infelizmente, nós verificamos que há uma posição, de segmentos da religião, que olha muito mais para o fundamentalismo, parte para a defesa de alguns interesses e esquece do conjunto maior da sociedade. O machismo, a idolatria - em que você dá mais valor aos ídolos do que a seres humanos -, isso tudo vai de encontro aos direitos humanos. Assim como a questão da vida, onde há um investimento para a morte, onde as pessoas que não aceitam que alguém que cometeu um crime possa se recuperar. Ou seja, nutrem aquele pensamento de que bandido bom é bandido morto.

- Jair Bolsonaro, na pré-campanha, chegou a dizer que considerava os direitos humanos um empecilho para o desenvolvimento social e econômico do pais. O senhor chegou a rebater essa afirmação na época… - Isso… aí, depois, coloca uma ministra (Damares Alves, da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos) que está mais preocupada em vestimenta, se é azul ou rosa. Os direitos humanos estão presentes em todas as dimensões do ser humano. Se faltar isso, a pessoa está capenga. Quando ele (Bolsonaro) diz que é empecilho, o que é empecilho é, efetivamente, um sentimento de dominação, de opressão, um desejo de querer oprimir o outro, esmagar o outro. A gente está vendo no Brasil de hoje a onda de segmento da polícia, que vinha para assegurar o direito do cidadão, mas hoje a gente vê as milícias tomando conta. Nesse aspecto é que nos consideramos que precisamos recuperar aquilo que o profeta Isaías diz, que a gente vai ser libertado, mas pela justiça e pelo direito.

- Qual o principal entrave que o Brasil precisa superar na questão dos direitos humanos?

- Primeiro, as comunidades tradicionais, os ribeirinhos, os quilombolas e as comunidades indígenas estão sendo desrespeitadas frequentemente. Eles é que são os donos das terras. Segundo, a violência contra as mulheres. O feminicídio é uma prova de que o machismo ainda é muito forte, de achar que as pessoas são donas da outra. Além do mais, a violência contra a criança e do adolescente.

- A reforma da Previdência, segundo a ótica do Governo Federal, é outro entrave?

- É para matar os direitos humanos! Veja só: você pegar uma pessoa que ganhava um salário mínimo na Prestação Continuada, e querer que ele sobreviva com menos que isso?! Nesse sentido, nós estamos vendo que quem comanda a Economia, e que quer comandar a Educação e a Saúde, é o mercado financeiro. É o capital. O capital que vai dominando. É aquilo que Jesus dizia: não podeis servir a Deus e ao dinheiro. O dinheiro é bom quando é partilhado, no sentido de construir uma sociedade solidária, libertada, e não quando ela começa a excluir. O que estamos vendo aí é a exclusão. Um segmento grande da sociedade que está sendo oprimido, esmagado, desvalorizado. Eu sempre digo que educação é para todos: educação de qualidade, educação para a cidadania devem ser elementos fundamentais. É essa educação que começa na relação familiar, mas que vai para a sociedade. É muito claro aquele ditado que diz: o bom exemplo de casa vai à praça. Mas o mau exemplo também vai à praça.

- Embora seja um conceito muito amplo, os direitos humanos estão intrinsecamente ligados à questão prisional. Já conseguimos avançar um pouco nesse quesito, ou ainda estamos longe do ideal?

- O Congresso só pensa em aumentar a pena. Numa sociedade em que o sistema carcerário que não ressocializa, que não recupera e que não reeduca, que são os elementos fundamentais… porque a pena é a restrição de liberdade. Essa é a pena. Mas um sistema onde a tortura se faz presente, onde os maus-tratos se fazem presentes. E ai é que os agentes da segurança pública é que teriam a função de ajudar aquele preso a se recuperar, a se ressocializar, a se reeducar. É possível fazer isso? É, afinal isso é feito em outros países e até mesmo em certos lugares do Brasil, onde os próprios presos é que organizam e gerenciam essas iniciativas. Agora, colocar numa cadeia, numa cela para 3 ou 4 pessoas, colocar 40, aí é desumano! O sistema penitenciário brasileiro, assim como a segurança pública, deveria passas por uma revolução; não uma reforma. A reforma é sempre um remendo que se faz e que não muda o todo!

- E o que falta para dar início a essa revolução?

- Primeiro, perceber que a vida é o principio básico. A dignidade humana se expressa numa sociedade na qual as pessoas têm o direito a ter uma casa digna para morar, de ter a saúde de qualidade, um trabalho digno para viver, de ter uma aposentadoria para poder desfrutá-la. É esse o princípio básico, que é aquilo que está na Revolução Francesa: igualdade, fraternidade e liberdade.

- O que é que nós, pessoas do dia a dia, o trabalhador, a dona de casa, enfim, o cidadão comum pode fazer para tornar o país mais humano?

- A primeira coisa é investir na educação. Educação é um elemento f u n d a m e n t a l ; educação de qualidade para todos e educação para cidadania. Porque as pessoas precisam ter a consciência de que não pode destruir o direito que o outro tem. A segunda é uma formação que dê uma dimensão… eu não diria de fé, mas de uma espiritualidade que possa alimentar e fortalecer laços de afeto, laços de respeito. Esse aspecto é muito importante. Eu diria que essa sociedade estaria apoiada em quatro elementos: justiça, paz, verdade e amor. Esses quatro elementos, sendo vivenciados e realizados, a sociedade será diferente.

- E como fazer isso num país que caminha para tirar as crianças do convívio da escola para isolá-las dentro de casa? Além de tantas outras que vivem fechadas em seu próprio celular, alheias ao que se passa ao redor?

- É aquilo que o José Antonio Pagola diz: perdemos a dimensão humana. E precisamos resgatá-la. O ser humano, sendo educado, e essa educação começa na educação familiar mas passa, também, pela relação com a escola, no convívio com o coletivo. É assim que o indivíduo aprende a respeitar o próximo e, também, aquela praça que foi feita para a coletividade, então ele aprende que não pode chegar lá e pixá-la, depredá-la. Afinal, tudo que há de políticas públicas é que é para todos! Está faltando uma vivência profunda sobre os direitos humanos. É preciso compreender que mais do que defensores dos direitos humanos, nós precisamos ser executores dos direitos humanos! Afinal, defender é fácil. Mas no dia que praticarmos esse respeito ao outro, seremos uma sociedade diferente.


*matéria publicada orignalmente na edição impressa do dia 23 de junho de 2019