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obstáculo para gestores

Baixo orçamento compromete Saúde

publicado: 20/10/2025 08h55, última modificação: 20/10/2025 09h04
Municípios paraibanos ampliam investimentos, mas ainda dependem de recursos externos para garantir serviços
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Rede pública é a única opção para quase 75% da população brasileira, segundo levantamento da Agência Nacional de Saúde | Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

por Eliz Santos*

Obter atendimento médico de qualidade é um dos maiores anseios da população brasileira. Seja na fila por uma consulta, na espera por exames ou na busca por leitos hospitalares, milhões de pessoas dependem diariamente do Sistema Único de Saúde (SUS). Não por acaso, pesquisas históricas apontam o setor como prioridade nacional, e a Constituição Federal de 1988 determinou percentuais mínimos de investimento na área para assegurar o direito básico à dignidade.

Pela Constituição, o financiamento do SUS é uma responsabilidade compartilhada entre entes da Federação, e cada esfera deve aplicar um percentual mínimo da sua receita corrente líquida na área: 15% para os Municípios, 12% para os Estados e, desde 2016, 15% para a União. Na tentativa de atender à crescente demanda, algumas Prefeituras ultrapassam o piso constitucional. Na maioria dos casos, porém, os recursos seguem sendo um dos maiores desafios da gestão pública. Um levantamento da Confederação Nacional de Municípios (CNM) mostra que, mesmo aplicando além do exigido por lei, as Prefeituras enfrentam déficits significativos, especialmente na Média e Alta Complexidade (MAC). Na Paraíba, as administrações municipais acompanham este cenário: ampliaram os gastos, mas ainda não conseguem atender plenamente às necessidades da população.

O peso dos números

Conforme a CNM, os Municípios paraibanos destinaram, em média, 20% de suas receitas para a Saúde, em 2024, e 22,6%, em 2023. Os índices superam o mínimo de 15% exigido pela Constituição, mas ficam abaixo da média registrada em outros estados, que comprometem fatias ainda maiores de seus orçamentos.

No recorte sobre Assistência Hospitalar e Ambulatorial, os Municípios paraibanos aparecem entre os que menos empregaram recursos próprios: apenas 25,8%, em 2024. A maior parte do financiamento veio da União, do Estado e de convênios (71,1%), além de recursos vinculados (3,2%). Mesmo assim, os Municípios paraibanos desembolsaram R$ 66 milhões a mais em MAC do que receberam de fontes externas no último ano. Em outras regiões, o esforço municipal chega a superar 60% do orçamento total da Saúde.

Em João Pessoa, a Secretaria Municipal de Saúde (SMS-JP) informou que a Prefeitura tem aplicado percentuais superiores ao mínimo constitucional nos últimos anos: 25,55%, em 2023; 22,72%, em 2024; e, 21,7%, de janeiro ao início de outubro de 2025.

De acordo com Roussean Montenegro, diretor administrativo e financeiro da SMS-JP, uma das principais dificuldades enfrentadas é o alto número de usuários de outros municípios atendidos na capital, o que impacta, diretamente, o orçamento destinado à rede local. “João Pessoa é referência em diversos serviços de saúde, o que faz com que muitos pacientes de outras cidades busquem atendimento aqui. Isso pressiona nossa rede e aumenta os custos, mas seguimos buscando otimizar o uso dos recursos públicos, alinhando investimentos às principais demandas da população”, destacou.

Responsabilidade pública

A dimensão desse desafio fica mais clara diante de um dado da Agência Nacional de Saúde (ANS): apenas 24,5% dos brasileiros possuem plano de assistência médica. Ou seja, 74,5% da população — quase 164 milhões de pessoas — depende, exclusivamente, do SUS. E mesmo os que têm plano privado, do mais simples ao mais completo, muitas vezes, recorrem à rede pública, o que amplia a sobrecarga. Por isso, os percentuais definidos pela Constituição representam um piso e não um teto. Eles indicam o mínimo necessário para garantir o funcionamento do SUS e a manutenção dos serviços básicos à população.

Espera por atendimento

Esse desafio é sentido, dia após dia, por quem depende integralmente do SUS. Na Paraíba, onde os Municípios ainda enfrentam dificuldades de equilíbrio orçamentário, o reflexo é sentido na demora por consultas, exames e cirurgias.

A aposentada Ivonete Franco, de 76 anos, já teve plano de saúde, mas precisou cancelar por não conseguir mais arcar com as mensalidades. Hoje, depende totalmente do SUS e relata as dificuldades enfrentadas para conseguir atendimento especializado.

“Tenho muita dificuldade em utilizar os serviços do SUS. Recentemente, fraturei o braço e precisei passar por uma cirurgia. Fui encaminhada para um hospital público e fiquei lá aguardando, mas não havia previsão por não ser algo tão urgente. Terminei optando por fazer particular, pois não aguentava mais esperar”, afirmou.

Casos como o de Ivonete repetem-se em várias cidades paraibanas e revelam a distância entre o aumento dos investimentos públicos e as reais necessidades da população. O esforço dos Municípios em ampliar recursos para a Saúde ainda esbarra em desafios de gestão e na dependência de repasses federais, impactando o acesso da população aos serviços básicos e de média complexidade.

Falta de reajustes em transferências federais piora cenário

A Federação das Associações de Municípios da Paraíba (Famup) alerta para o crescente desequilíbrio nas contas locais. Segundo o presidente da entidade, George Coelho, o aumento das despesas próprias com Saúde decorre da falta de reajustes nas transferências da União e da limitação no uso de emendas parlamentares, o que sobrecarrega os cofres municipais — sobretudo nos municípios de pequeno porte.

Para a Famup, maior eficiência no atendimento está atrelada à atualização de valores repassados pelo SUS | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

“Os Municípios estão aplicando quase 35% de recursos para que a Saúde funcione, quando a exigência constitucional é de 15%. Isso acontece porque não há recurso suficiente: há mais de duas décadas, o SUS não tem reajuste, e as Prefeituras precisam manter programas, postos de saúde, policlínicas e, em muitos casos, até hospitais municipais. É uma dificuldade imensa, pois 60% dos municípios paraibanos são de pequeno porte e sobrevivem basicamente do FPM [Fundo de Participação dos Municípios] e do ICMS [Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços]”, destacou George Coelho, reforçando a necessidade de revisão urgente no financiamento do setor.

Para o dirigente, a solução para equilibrar o sistema e garantir um funcionamento mais justo do SUS entre União, Estados e Municípios passa, necessariamente, por uma revisão da pactuação federativa. “O que falta para o SUS funcionar de uma forma equilibrada é justamente termos uma pactuação reajustada. Os valores pagos pelo SUS e os repasses aos Municípios estão defasados há duas décadas. Precisamos rever isso com urgência, e há uma proposta em tramitação no Congresso que prevê reajustes no financiamento federal para fortalecer o SUS”, afirmou.

Desafios

De acordo com a CNM, a falta de repasses suficientes para custear a produção assistencial leva os Municípios a déficits bilionários. Apenas em 2023, o saldo negativo somou cerca de R$ 3 bilhões em todo o país. “Essa situação gera repercussões negativas em outras áreas cruciais da gestão municipal, como a Atenção Primária à Saúde, que pode sofrer com a limitação de investimentos e o redirecionamento de recursos para cobrir déficits em outros níveis de atenção”, afirmou o presidente da CNM, Paulo Ziulkoski, em comunicado oficial, emitido no início do mês.

No comunicado, ele alegou que, embora exista um piso mínimo constitucional, Estados e União, raramente, são responsabilizados quando descumprem a regra, ao contrário das Prefeituras. “Os prefeitos são muitos cobrados. São, inclusive, seguidamente processados, condenados, o que não acontece com a União nem com os Estados”, disse.

No primeiro semestre, em entrevista à Folha de S.Paulo, o secretário-executivo do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), Jurandi Frutuoso, comentou que a discrepância na contribuição dos entes federativos decorre de razões estruturais e políticas. Uma delas é o fato de os municípios serem responsáveis pela Atenção Primária à Saúde, conforme determinado constitucionalmente, o que os coloca na linha de frente do financiamento e da prestação de serviços básicos. “Isso leva a uma maior alocação de recursos próprios pelos municípios para atender às necessidades imediatas da população”, analisou.

Ele acrescentou que na Média e Alta Complexidade, os Estados arcam com mais de 50% do financiamento, mas a redução da participação da União nos últimos anos adiciona uma nova camada de dificuldade. “Com a União reduzindo sua participação no financiamento, tanto Estados quanto Municípios enfrentam desafios adicionais para manter e expandir os serviços necessários, tendo que depender mais significativamente de suas próprias receitas”.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 19 de Outubro de 2025.