O recente anúncio da viagem do prefeito de João Pessoa, Cícero Lucena, à França para finalizar um contrato de empréstimo tem provocado uma situação, no mínimo, curiosa no cenário político da capital: justamente no ano de eleições municipais, o cargo de prefeito da capital paraibana se transformou em uma “batata quente” passada de mão em mão.
Isso porque tanto o vice-prefeito Léo Bezerra como o presidente da Câmara dos Vereadores de João Pessoa (CMJP), vereador Dinho Dowsley — os dois sucessores regimentais em caso de ausência do prefeito — pretendem ser candidatos nas Eleições 2024 e, de acordo com especialistas em Direito Eleitoral ouvidos por A União, ambos se tornariam inelegíveis caso ascendessem ao cargo de prefeito dentro do prazo de seis meses que antecede o pleito.
Diante do impasse, a solução sugerida até o momento pela Prefeitura é de que o posto de chefe do Executivo municipal fosse assumido temporariamente pelo presidente do Tribunal de Contas do Estado da Paraíba (TCE-PB), Nominando Diniz. Em entrevista a uma rádio local, o próprio presidente confirmou, na segunda-feira (3), que recebeu o convite de Cícero e que aceitaria o desafio de comandar a administração da capital.
A questão, nesse caso, é que, conforme apontaram os especialistas, diferente de outras capitais do país, a Lei Orgânica de João Pessoa não prevê a hipótese de um terceiro substituto, tampouco que venha do Judiciário. Portanto, para que Nominando assuma, será necessário que a CMJP aprove uma mudança na legislação que autorize a inclusão do presidente do TCE na lista de substitutos.
Ontem, o presidente da CMJP informou que a Casa já começou a trabalhar em “um projeto para sanar essa falha”. Contudo, segundo Dowsley, a Mesa Diretora ainda não definiu quem, de fato, seria o terceiro substituto.
“Desde o início da nossa legislatura que o nosso regimento já é arcaico. Não há substituto na ausência do vice-prefeito e do presidente da Câmara para assumir o Executivo. Dentro da reforma administrativa da Casa, junto à mudança da Lei Orgânica e do regimento interno, já há a previsão de uma mudança nessa legislação. Como a gente não tem Tribunal de Contas do município, há uma ideia de que quem assumiria é o presidente do TCE. Mas a gente ainda está amadurecendo essa ideia juridicamente. Estamos vendo essa possibilidade, ou do próprio procurador do município, ou outro membro do Judiciário. A gente está justamente formatando essa lei para, em breve, colocar em votação”, explicou.
Ao Jornal A União, Léo Bezerra disse que ainda não foi comunicado oficialmente sobre a viagem de Cícero e ainda avalia qual atitude será tomada. “Vamos conversar com nossa equipe jurídica para saber quais as possibilidades que vou ter de assumir ou não a Prefeitura”, resumiu.
Legislação
Sobre o risco de inelegibilidade de Léo Bezerra e Dinho Dowsley, caso assumissem a Prefeitura na ausência de Cícero, os advogados ouvidos por A União são unânimes: de fato, os dois são impedidos pela legislação eleitoral e pela Constituição Federal de assumir o Executivo municipal até seis meses antes do pleito.
“Se o vice-prefeito de qualquer município assumir o cargo neste período dos seis meses anteriores ao pleito, ele ficaria inelegível. Como ficaria também o presidente da Câmara. Porque, desta forma, eles ascenderiam a um outro cargo, mesmo que provisoriamente”, pontuou o professor de Direito Constitucional da Universidade Federal da Paraíba, Solon Benevides.
De acordo com o advogado especialista em Direito Eleitoral, Edísio Souto, tal impedimento busca prevenir o mau uso dos cargos, ainda que por tempo curto.
“É uma preocupação que a legislação tem para que a máquina [pública] não seja utilizada [para fins eleitorais]. O que a Justiça Eleitoral não quer, sob nenhuma hipótese, é que o jogo seja jogado de forma desigual”, sublinhou o jurista.
Os advogados também concordam que, embora polêmica, a proposta de alteração da Lei Orgânica de João Pessoa para incluir uma terceira alternativa na linha sucessória do Executivo é lícita.
“Se a emenda passar na Câmara, o presidente do Tribunal de Contas pode assumir, cumprindo o que determina a Constituição Municipal, que é a Lei Orgânica. Agora, essa emenda pode ser discutida, questionada e poderá, amanhã, um tribunal declarar alguma inconstitucionalidade. Mas a lei só não valerá quando houver a declaração. Não havendo, ela é lícita”, analisou Edísio Souto.
O advogado eleitoral e doutor em Direito, Ricardo Sérvulo, reforça que, ainda que seja futuramente questionada, a alteração legislativa “não traz problemas imediatos”.
“O que pode acontecer em relação a essa alteração é que, lá na frente, possa ser ajuizada uma Ação de Inconstitucionalidade ou alguma coisa dessa ordem. Mas os efeitos até então produzidos terão plena validade”, destacou.
Solon Benevides — que, além de professor de Direito, é advogado do prefeito Cícero Lucena, junto com o também advogado Valter Agra — classifica a emenda à Lei Orgânica do município como uma solução legislativa para impasses como esse, vividos em anos eleitorais.
“Em várias capitais brasileiras, existe essa solução. Ora é o presidente do Tribunal de Justiça, ora é o presidente do Tribunal de Contas. Só João Pessoa que não tinha essa solução ainda. Em Pernambuco, por exemplo, é o presidente do Tribunal de Justiça”, argumentou.
Sobre a provável escolha do presidente do TCE como possível substituto, o jurista aponta que é uma “opção legislativa” da CMJP que, ainda que seja passível de questionamentos, não representa ato de inconstitucionalidade.
“Não há um impedimento para essa matéria porque é uma legislação de competência estritamente do município. Do ponto de vista genérico, toda e qualquer lei ou emenda pode ser questionada juridicamente. Mas, nesse caso, eu, Solon, não vislumbro nenhuma inconstitucionalidade”, concluiu.
A viagem de Cícero Lucena ainda não tem data confirmada, mas deve ocorrer após o dia 15 de junho.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 05 de junho de 2024.